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1. O MÚTUO CIVIL

1.2 O MÚTUO CIVIL NO CÓDIGO CIVIL DE 2002

1.2.1 Princípios informadores do mútuo civil sob a ótica do Código Civil de 2002

1.2.1.2 Princípio da boa-fé objetiva

O tema da boa-fé “anuncia-se complexo”95. Essa observação, feita por Antonio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, encontra justificativa pelo fato de a boa-fé não operar como um conceito comum, pois anuncia-se como uma criação do Direito com influências de diversas culturas, de diferentes épocas e, como tal, deve ser dimensionada e explicada em termos históricos, razão pela qual seu conceito encontra-se em progressão, até hoje96.

Apesar de não fornecer um conceito estagnado, Cordeiro afirma que “a cientificidade da boa-fé, tratando-se da Ciência do Direito, corresponde à possibilidade efectiva de, com ela, resolver questões concretas”97, razão pela qual está positivada em diversos códigos, inclusive no Código Civil brasileiro. Essa inclusão no código já era há muito reclamada. Teresa Negreiros, por exemplo, afirma, em obra datada de 1998, que a inserção da boa-fé no novo Código Civil serviria “como parâmetro de interpretação da vontade”98, sendo inadiável.

A par disso, e visando um maior dinamismo à abordagem do tópico em apreço, opta- se por fazer, aqui, uso da doutrina pátria, tendo em vista a realidade histórica e fática que compõe o conceito do princípio da boa-fé, consoante palavras de Cordeiro. Desse modo, tem-se, inicialmente, que o princípio da boa-fé “assegura o

94 MOREIRA, Carolina Xavier da Silveira. Função social do contrato: um limite imposto à liberdade contratual.

Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 2005. Disponível em: http://www.sapientia.pucsp.br//tde_busca/arquivo.php?codArquivo=1403. Acesso em: 19 de ago. de 2013. p. 103.

95 CORDEIRO, Antonio Manuel da Rocha e Menezes. Da boa fé no Direito Civil. Coimbra: Almedina, 1997. p.

17.

96 Idem, ibidem, p. 18. 97 Idem, ibidem, p. 18.

98 NEGREIROS, Teresa Paiva de Abreu Trigo de. Fundamentos para uma interpretação constitucional do Princípio da Boa-fé. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 72.

acolhimento do que é lícito e a repulsa do que é ilícito”99; repelem-se, assim, os contratos ilícitos100, mesmo porque:

“A contratação de boa-fé é a essência do próprio entendimento entre os seres humanos, é a presença da ética nos contratos. Sim, porque a aplicação do princípio da boa-fé traz para a ordem jurídica um elemento de Direito Natural, que passa a integrar a norma de direito.”101

Para Samantha Santos Conde, “A noção de boa-fé objetiva contrapõe-se à de má- fé, que genericamente pode ser percebida como um escopo de prejudicar alguém”102 e, ao contrário do que supõe a boa-fé subjetiva,:

“... detectada pelo comportamento psicológico do indivíduo, é o estado de consciência ou convencimento individual de operar em conformidade com o Direito. A boa-fé objetiva, que é exterior a ele, e relaciona-se com a conduta que o indivíduo teria numa determinada situação, um modelo de conduta social, atuando como deveria um ser humano correto: com honestidade, lealdade e probidade. Dessa forma, não se deve confundir a ideia de boa-fé com o princípio geral da boa-fé objetiva. A boa-fé objetiva como regra de conduta, como a honestidade, de forma que não frustre a confiança da outra parte.”103 Com base nisso, não se admite mais, hodiernamente, a interpretação literal das disposições contratuais, naquilo que os romanos chamavam de direito estrito. A interpretação do contrato decorre, hoje, muito mais da aplicação do princípio da boa- fé objetiva do que da interpretação a ser dada à estrutura do contrato104. Por este princípio,

“... se significa que o literal da linguagem não deve prevalecer sobre a intenção manifestada na declaração de vontade, ou dela inferível. Ademais, subentende-se, no conteúdo do contrato, proposições que

99 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria geral dos contratos típicos e atípicos: curso de direito civil. Ed. 2. São

Paulo: Atlas, 2004. p. 28.

100 “Sob a denominação de contratos ilícitos compreendem-se os estipulados como violação das leis imperativas

ou atentatórios da ordem pública e dos bons costumes.” GOMES, op. cit., 2001. p.154.

101 AZEVEDO, op. cit., p. 28.

102 CONDE, Samantha Santos. Das cláusulas abusivas nos contratos de consumo – a cláusula geral da boa-fé.

In: Novos rumos do direito contratual: estudos sobre princípios de direito contratual e suas repercussões práticas. Coordenadora: Renata Domingues Balbino Munhoz Soares. São Paulo: LTr, 2009. p. 119.

103 Idem, ibidem, p. 119.

decorrem da natureza das obrigações contraídas, ou se impõem por força de uso regular e da própria eqüidade.”105

Ressalte-se, também, que pelo princípio da boa-fé objetiva se faz exigível, das partes, um comportamento correto não só durante as tratativas preambulares, como também durante a formação e cumprimento do contrato. Aliás, “a boa-fé, no sentido de lealdade e confiança recíprocas, é princípio básico e inafastável da teoria dos contratos, que norteia o comportamento ideal das partes que pretendem contratar”106.

Como dito acima, tal princípio é adotado, expressamente, pelo Código Civil de 2002, ao passo que no Código de 1916 não havia um tratamento objetivo a respeito107. muito embora a boa-fé fosse tratada como princípio geral de direito e a doutrina a admitisse como regra de conduta108.

Jones Figueirêdo Alves afirma que “o princípio da boa-fé não apenas reflete uma regra de conduta. Consubstancia a eticidade orientadora da construção jurídica do novo Código Civil. É, em verdade, o preceito paradigma na estrutura do negócio jurídico”109. Em outras palavras,

“... pode ser considerado como um elemento a mais na interpretação dos negócios jurídicos. Havendo divergência sobre o conteúdo das cláusulas contratuais, e havendo necessidade de recorrer-se à interpretação como solução da divergência, a interpretação segundo a boa-fé objetiva terá um papel importante”110.

105 Idem, ibidem, p. 42.

106 GUERREIRO, José Alexandre Tavares. A boa-fé nas negociações preliminares. In: Contratos: formação e

regime. Organizadores Gustavo Tepedino e Luiz Edson Fachin. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. V. 4. p. 146.

107 ALVES, Jones Figueirêdo. Novo Código Civil Comentado. Coordenação de Ricardo Fiúza. São Paulo:

Saraiva, 2005. p. 533. PIZARRO, Sebastião Nóbrega; CALIXTO, Margarida Mendes. Contratos Financeiros:

leasing, agência, franchising, factoring, permuta, mútuo. Ed. 2. Coimbra: Almedina, 1995. p. 376.

108 NERY JUNIOR, Nelson; ANDRADE NERY, Rosa Maria de. Código Civil Comentado. Ed. 6. Rev., ampl. e

atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 504.

109 Idem, ibidem, p. 376.

110 BALBINO, Renata. O princípio da boa-fé objetiva no Novo Código Civil. In: Doutrinas Essenciais -

Obrigações e contratos: contratos: princípios e limites. Organizadores Gustavo Tepedino e Luiz Edson Fachin. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. V. 3. p. 861.

Essa função interpretativa da boa-fé é abstraída da leitura dos artigos 113111 e 422112 do Código Civil. A bem da verdade, a dicção do artigo 422 traz em si não apenas um princípio, mas também uma regra.

“A regra da boa-fé, [...], é uma cláusula geral para a aplicação do direito obrigacional, que permite a solução do caso levando em consideração fatores metajurídicos e princípios jurídicos gerais. O novo sistema civil implantado no país fornece ao juiz um novo instrumental, diferente do que existia no ordenamento revogado, que privilegiava os princípios da autonomia da vontade e da obrigatoriedade dos contratos, seguindo uma diretriz individualista. A reformulação operada com base nos princípios da socialidade, eticidade e operabilidade deu nova feição aos princípios fundamentais dos contratos, como se extrai dos novos institutos nele incorporados, verbi gratia: o estado de perigo, a lesão, a onerosidade excessiva, a função social dos contratos como preceito de ordem pública (CC, art. 2.035, parágrafo único) e, especialmente, a boa-fé e a probidade. De tal sorte que se pode hoje dizer, sinteticamente, que as cláusulas gerais que o juiz deve rigorosamente aplicar no julgamento das relações obrigacionais são a boa-fé objetiva, o fim social do contrato e a ordem pública.”113

Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery, a respeito da controvérsia sobre as diferentes concepções dadas ao sentido da boa-fé objetiva – se princípio geral, se conceito indeterminado ou cláusula geral114, assinalam que:

“... o que discrimina a expressão boa-fé, como princípio geral, conceito indeterminado ou cláusula geral, é a função que ela possui no contexto do sistema, positivo ou não, da qual decorre a aplicabilidade que se lhe dará o julgador (interpretação, solução) já

111 “Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua

celebração.” BRASIL. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. CASA CIVIL. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm. Acesso em: 17 de ago. de 2013.

112 “Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução,

os princípios de probidade e boa-fé.” BRASIL. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. CASA CIVIL. Subchefia para

Assuntos Jurídicos. Lei nº. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm. Acesso em: 17 de ago. de 2013.

113 GONÇALVES, op. cit., 2008. V. III. p. 32 e 33.

114 Segundo Nelson Nery e Rosa Maria de Andrade Nery, as cláusulas gerais “são normas orientadoras sob forma

de diretrizes, dirigidas precipuamente ao juiz, vinculando-o ao mesmo tempo em que lhe dão liberdade para decidir [...]. As cláusulas gerais são formulações contidas na lei, de caráter significativamente genérico e abstrato [...], cujos valores devem ser preenchidos pelo juiz, autorizado para assim agir em decorrência da formulação legal da própria cláusula geral, que tem natureza diretriz [...]. Distinguem-se dos conceitos legais indeterminados pela finalidade e eficácia, pois aqueles, uma vez diagnosticados pelo juiz no caso concreto, já têm sua solução preestabelecida na lei, cabendo ao juiz aplicar referida solução.” NERY JUNIOR e NERY, op. cit., p. 190.

prevista na lei ou construção de solução específica pelo próprio juiz)”115.

A doutrina, demais, faz a distinção entre duas espécies de boa-fé, a boa-fé objetiva, também denominada de concepção ética da boa-fé, e boa-fé subjetiva, também chamada de concepção psicológica da boa-fé116.

Nos dizeres de Silvio Rodrigues:

“Uma maneira objetiva, que se poderia chamar de boa-fé lealdade, e outra subjetiva, que se poderia chamar de boa-fé crença. No primeiro caso se cogita daquele dever de lealdade genericamente imposto aos homens; no segundo, na boa-fé crença, da persuasão, ou seja, do convencimento que está agindo de maneira correta.”117

A disposição principiológica retrotranscrita demonstra que as concepções clássicas do contrato já não impõem o paradigma liberal individualista que impregnava o Código Civil de 1916, mesmo porque hoje os contratos são vistos sob uma nova ordem econômica e social que prevê contratos voltados para uma conjectura diferenciada, com contornos abarcando preceitos de ordem constitucional que servirão como indicativo para a reflexão relacional, mais à frente enfrentada.