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3. MÚTUO CIVIL: SOBRE A INFLUÊNCIA DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL NA

3.1 ORDEM PÚBLICA

3.1.4 Ordem pública como limitação à autonomia da vontade

3.1.4.4 Reflexão pontual

Dos apontamentos acima enumerados, surge uma ponderação que leva à seguinte reflexão: no que diz respeito à imperatividade das normas cogentes ou normas de ordem pública nos contratos de mútuo, existiria uma distinção a ser feita entre a forma e a força de imposição dessa cogência? E, neste caso, estar-se-ia diante de um processo de flexibilização desse tipo normativo?

Como se viu, parte da doutrina considera essas normas como coativas, ou seja, mandam ou proíbem alguma coisa de maneira peremptória, não podem ser modificadas pela vontade das partes, nem podem deixar de ser aplicadas, devendo ser conhecidas de ofício.

Nessa passagem reflexiva, existe a necessidade de se estabelecer, aqui, e somente para o fim de ilustrar as abstrações que daí decorrem, uma distinção de ordem prática, qual seja, a de denominar o caráter de algumas normas de cogência “absoluta” e outras de cogência “relativa”.

Assim, tratar-se-á da cogência “absoluta” ou não das normas utilizadas para justificar a nulidade do negócio jurídico entabulado entre os contratantes, como, por exemplo, a nulidade por simulação em fraude à lei e a nulidade por usura, no âmbito

do mútuo civil, e a nulidade das cláusulas abusivas e a hipossuficiência no âmbito do mútuo bancário.

Em termos técnicos, registre-se, o legislador excepcionou a norma de ordem pública que cuida da hipossuficiência ao estabelecer no Código de Defesa do Consumidor, artigo 6º, inciso VIII, a possibilidade de inversão do ônus da prova, “quando, a critério do Juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele [consumidor] hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiência”. Para alguns295, a inversão do ônus da prova deve ser concedida, ou não, no momento da dilação probatória, o que configuraria a relativização da matéria de ordem pública veiculada pelo dispositivo.

Note-se que, tendo em conta uma melhor visualização e tendo como parâmetro as regras da prescrição e da decadência no processo civil, o que se percebe é que a norma não traz, aparentemente, de per si, um comando que se imponha de imediato, como ocorre com as normas processuais. É preciso, em primeiro lugar, provocar o judiciário; o juiz não as reconhecerá de ofício, se o processo não estiver bem instruído, será preciso influenciar e convencer o magistrado sobre as alegações, ou seja, mesmo que se as invoque, é necessário fazer prova dos fatos. Isso pode estar ocorrendo, em grande parte, por causa do que acima se explicou, ou seja, “verifica-se que cada disciplina jurídica possui seu próprio núcleo de regras e

295 “Conclui, sem dúvidas, que a inversão do encargo probatório é regra de procedimento. É que sua prática

envolve requisitos (verossimilhança da alegação ou hipossuficiência do consumidor) que devem ser ponderados em cada caso concreto”. Voto-vista vencido do ministro Humberto Gomes de Barros no Recurso Especial 422.778 / SP. Relator ministro CASTRO FILHO. DJ 27/08/2007). BRASIL. Superior Tribunal de Justiça.

Recurso Especial 422.778. Relator ministro Castro Filho. Data da Publicação 27/08/2007. Disponível em:

https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/ita.asp?registro=200200323880&dt_publicacao=27/08/2007. Acesso em: 10 de ago. de 2013. “No art. 6º, nº VIII, o CDC não instituiu uma inversão legal do referido ônus, mas, sim, uma inversão judicial, que caberá ao juiz efetuar quando considerar configurado o quadro previsto na regra da lei. (...) É certo que a boa doutrina entende que as regras sobre ônus da prova se impõem para solucionar questões examináveis no momento de sentenciar. Mas, pela garantia do contraditório e ampla defesa, as partes, desde o início da fase instrutória, têm de conhecer quais são as regras que irão prevalecer na apuração da verdade real sobre a qual se assentará, no fim do processo, a solução da lide. Assim, o art. 333 do CPC em nada interfere sobre a iniciativa de uma ou de outra parte, e do próprio juiz, enquanto se pleiteiam e se produzem os elementos de sua convicção. Todos os sujeitos do processo, no entanto, sabem, com segurança, qual será a conseqüência, no julgamento, da falta ou imperfeição da prova acerca dos diversos fatos invocados por uma e outra parte.” THEODORO JUNIOR, Humberto. Direitos do Consumidor. 2. Ed. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 140 e 141.

princípios fundamentais e em cada disciplina será também diferente a eventual constatação de violação à ordem pública”296.

Em outras palavras, enquanto que na prescrição e na decadência o juiz extingue o processo com julgamento do mérito, sem a necessária provocação das partes, nas normas que cuidam de algumas matérias de ordem pública, embora cogentes, elas só serão aplicadas após a provocação do juízo como, por exemplo, a Súmula 381 do STJ, que estabelece: “Nos contratos bancários, é vedado ao julgador conhecer, de ofício, da abusividade das cláusulas"297. Tal Súmula sustém-se, segundo José Alcebíades de Oliveira Junior, por que tal matéria seria de iniciativa das partes e por versar sobre direitos patrimoniais; com o que o autor não concorda298.

Isso leva ao questionamento – sem maiores pretensões, que não a reflexão – de que existem normas cogentes “absolutas” e normas cogentes “relativas”, sendo que na aplicação das normas cogentes “absolutas” seria impossível qualquer maleabilidade na manifestação da vontade dos contratantes – muito embora a matéria de ordem pública tenha o condão de retirar “da esfera de autonomia privada das partes a possibilidade de derrogá-las”299.

Tudo isso, aliado ao fato de que em muitos casos o estabelecimento de normas de ordem pública decorre da ambiguidade do termo, leva à abstração de que as normas cogentes, muitas vezes, cedem espaço a uma maior participação das partes. Isto, é claro, quando as próprias normas cogentes e “condicionantes” não sirvam de escape a uma maior seguridade da relação contratual.

Essas possibilidades que se abrem, no caso das normas cogentes “relativas”, estariam indo ao encontro do que preestabelece a aura que orbita a própria ciência

296 APRIGLIANO, op. cit., p. 5 e 6.

297 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula 381. Data da Publicação DJe 05/05/2009. Disponível em:

http://www.stj.jus.br/SCON/sumulas/doc.jsp?livre=%40docn&&b=SUMU&p=true&t=&l=10&i=119. Acesso em 23 de jul. de 2013.

298 OLIVEIRA JUNIOR, José Alcebíades de. Novas reflexões sobre a impossibilidade de conhecimento de ofício, pelo juiz, de cláusulas nulas em contratos bancários. In: Revista de Direito do Consumidor. Ano 21, vol.

84, out.- dez./2012. Coordenação de Claudia Lima Marques. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais: 2012. p. 142.

jurídica? O caráter de transitoriedade e de mutabilidade constantes de suas disposições legais leva à consequente abstração de que as sociedades não permitiriam, no que tange às matérias jurídicas, o estabelecimento de verdades absolutas, mas, tão só, de verdades relativas, posto que aquelas, empreendedoras de dogmas, não se coadunariam com as permanentes transmutações e ebulições sociais, mesmo que de ordem pública?

Sem querer, de modo algum, extrair conclusões prematuras, os questionamentos apresentados, à primeira vista controversos, são dignos de atenção, pois inspiram ao observador reflexões de toda espécie, uma vez que, embora nas relações no mútuo bancário não impere o mesmo esquema legal civilista, já que existe a perspectiva de que prevaleça a ideia de a grande massa estar orientada unanimemente para uma direção, a interpretação dos contratos afeitos a esta área não pode deixar de observar o caráter cogente das matérias de ordem pública. A esse respeito, pode-se dizer que, além da abstração proporcionada pelas normas cogentes “relativas”, estas pululam em maior abundância nos contratos de mútuo bancário do que nos contratos de mútuo civil. Assim, por exemplo, nos contratos bancários, as normas são em maior número do que aquelas destinadas a orientar o mútuo civil, mas, mesmo ali, ocorre o fenômeno da ambiguidade dos termos e da “relatividade” das normas cogentes, v. g., o entendimento reiterado no Superior Tribunal de Justiça de que o pré-questionamento é requisito indispensável para a propositura do recurso especial, ainda que seja matéria de ordem pública300, ou seja, tem sua cogência “relativizada”.

Destarte, a “flexibilização” ou “relativização” da imperatividade e compulsoriedade das normas de ordem pública está se dando de maneira conjectural às suas ocorrências e ao ramo do direito ao qual está afeita, pois que, em alguns casos, sobrestadas a um incerto e ainda não concebido futuro.

300 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. EDcl no AgRg no REsp 1338808 / MG - DJe 01/08/2013; AgRg no

AREsp 303317 / SP - DJe 28/06/2013; AgRg nos EDcl no REsp 1375270 / MS - DJe 28/06/2013; AgRg no AgRg no AREsp 232600 / SP - DJe 01/08/2013.

3.1.5 Ordem pública econômica de direção e ordem pública econômica de