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2 A MÍDIA NOS DESASTRES E A QUESTÃO DO

2.1 Papel da mídia e do rádio na cobertura de desastres naturais

2.1.1 Os desastres na agenda da mídia

Não é de hoje que as informações sobre catástrofes atraem um público considerável aos diversos meios de comunicação de massa. Acessos, tiragens e audiências que chegam a atingir picos históricos durante a cobertura de eventos baseados na calamidade ou no conflito revelam certa cumplicidade entre veículos de comunicação e seu público, apoiados em um contrato invisível de audiência e leitura que, de certa forma, prevê a substituição do conteúdo noticioso rotineiro pelas revelações do imprevisível.

Luiz Beltrão (2006) lembra que o leitor (ouvinte, telespectador) reivindica sempre informações sobre guerras, catástrofes, conquistas, competições e julgamentos, já que o conflito é objeto de interesse do homem, justamente por revelar a manutenção de um dos mais arraigados instintos de sua natureza (p.38). Há, segundo o autor, esse “amor à luta”, com o objetivo de se libertar das pressões sociais que rechaçam nossos instintos profundos e frustram “o animal que vive em nós” (BELTRÃO, 2006, p.38).

Essa busca por tudo o que signifique choque e conflito, como motivação psicológica para a leitura de jornal, citada por Beltrão, coincide com a sugestão de Lorenzo Gomis, que acredita que as informações que abordam acidentes, catástrofes e outros chamam bem mais a atenção, principalmente dos telespectadores, do que as demais notícias diárias (GOMIS, 1991, p.22).

Entretanto, Gomis coloca um ingrediente a mais nessa análise, ao perceber que a divulgação de ações não terminadas, em tempo presente (exemplo da cobertura de desastres) favorece a participação na audiência, já que o presente é mais direto e próximo. Há uma expansão do tempo presente, segundo o autor, ampliando a reflexão e possibilitando as várias formas de participação (GOMIS, 1991, p.32).

Já Liriam Sponholz (2009) vê nas catástrofes naturais um exemplo de realidade que se refere ao mundo natural, distinto da realidade que comumente é resultado de ações humanas, como é o caso

da maioria das notícias veiculadas (p.87). A autora apoia sua explicação nos mundos de Karl Popper8, onde observa dois tipos de realidade: “a sobre a qual se noticia (realidade física e social) e a que o jornalismo produz (realidade midiática)” (p.86). No entanto, há um cruzamento entre essas duas realidades pelo fato de que as consequências de um terremoto ou de uma enchente envolvem as ações das pessoas ligadas ao desastre.

Neste sentido, cabe afirmar que esta conjunção de realidades ou de “mundos” retira o caráter puramente objetivo da realidade apreendida. A realidade das catástrofes naturais ganha a participação de sujeitos agentes e conhecedores nela envolvidos, transformando-se no que Sponholz defende como “realidade social” sem nenhum status ontológico objetivo.

Importante considerar, então, as transformações que o acontecimento em estado bruto sofre desde o seu surgimento. Tomando como exemplo o ataque aéreo às Torres Gêmeas nos Estados Unidos em 11 de setembro de 2001, Charaudeau (2009) explica a pluralidade de efeitos de sentidos na cobertura jornalística do evento:

O acontecimento midiático, no caso, é objeto de uma dupla construção: a de uma encenação levada a efeito pela transmissão, a qual revela o olhar e a leitura feita pela instância midiática, e a do leitor- ouvinte-telespectador que a recebe e interpreta. Os efeitos resultantes são múltiplos, ligados à maneira pela qual as encenações visuais, os relatos e os comentários jornalísticos influenciam- se mutuamente. (CHARAUDEAU, 2009, p.243) Mas a tentação por transformar o palco dos acontecimentos em um espetáculo tem ampliado o coro que pesquisadores fazem às críticas a supostas atitudes sensacionalistas “desnecessárias” por parte dos

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Baseada no filósofo austríaco Karl Popper (1984), Sponholz expõe o mundo sistematizado da seguinte forma: o mundo 1, abrangendo os objetos físicos, como vulcões, terremotos, etc; O mundo 2 é composto por estados de consciência ou por comportamentos e disposições para agir; O mundo 3 é formado pelos resultados das ações humanas, como por exemplo, uma música, um quadro ou uma poesia (SPONHOLZ, 2009, p.81).

veículos de comunicação. Para Couto (2004, p.2), “a abordagem desse aspecto da realidade está a um passo de cair no sensacionalismo, uma vez que o campo de imagens ao se cobrir conflitos e catástrofes encontra-se repleto de cenas de forte impacto emocional”. Para a autora, em muitos casos os jornalistas se veem pressionados a divulgar materiais que causem impacto no receptor.

Porém, havendo o equilíbrio para que um acontecimento singular não seja demasiadamente destacado dentro da cobertura de um desastre, o efeito poderia ser justamente o inverso, humanizando mais a notícia. Cristina Ponte (2005), ao citar Langer, lembra o processo de identificação que surge com o receptor durante as descrições jornalísticas de eventos não controlados humanamente, como acidentes e catástrofes, justamente pela acentuação do lado humano da vítima, como descrições de particularidades ou detalhes biográficos. “Uma boa vítima é acima de tudo uma pessoa/personagem com quem cada um pode compadecer-se ou identificar-se” (LANGER, 1992 apud PONTE, 2005, p.65, grifo do autor). Mas Ponte argumenta que na história de fatalidades normalmente não há contextualização das condições sociais ou históricas que estiveram na origem do evento. “Atribui-se a ocorrência a uma vontade externa ou a do destino” (PONTE, 2005, p.66).

Jorge Pedro Sousa (2002) entende que os diversos fenômenos genericamente denominados de acontecimento encontram-se dentro de um contexto histórico, social e cultural: “a percepção de que o acontecimento é concreto e delimitado é uma falácia, já que o real é contínuo e os fenômenos são estreitamente interligados” (p.22). Entretanto, o autor pressupõe que os “verdadeiros” acontecimentos seriam os imprevistos, como uma catástrofe natural, utilizando o critério da previsibilidade ou imprevisibilidade dos acontecimentos como uma marca distintiva. Cita o exemplo de uma guerra, como a Guerra do Golfo (de 1991), como um acontecimento previsível, embora contaminado por vários acontecimentos “verdadeiros”, os acasos da guerra (SOUSA, 2002, p.22).

A maioria dos desastres naturais é caracterizada por acontecimentos curtos, que rompem bruscamente o continuum da repetibilidade9 dos acontecimentos triviais, atraindo maior atenção e

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De acordo com Tuchman (1978) e Grossberg et al. (1998) apud Ponte (2005), a ruptura do continuum da repetibilidade dos acontecimentos faz parte do critério da imprevisibilidade como valor-notícia. Segundo Galtung e Ruge

exercendo grande fascínio tanto para jornalistas como para o público. Porém, o tempo curto de cobertura jornalística da maioria dos meios contrasta com a duração de tempo longa de um evento como a seca, que resulta em fome. Ponte (2005) cita o investigador canadense Paul Stryckman, que analisou a cobertura pela imprensa do Canadá de duas secas que afetaram o Saara nas décadas de 70 e 80. A análise de Stryckman (1993 apud PONTE, 2005) opõe as características de previsibilidade de eventos naturais que permitem aos meios de comunicação operar em diferentes registros de tempo na sua cobertura normal, como tempos de antecipação, primeiros alertas e previsões de evolução da ocorrência, visando à redução do seu impacto; tempos de coincidência, informação sobre os impactos materiais e humanos da passagem, definição da sua gravidade, avaliação das necessidades de urgência e informação sobre socorros; tempo de balanço, informação sobre o final do perigo e das ações a fazer para retorno à normalidade – e desastres lentos, que não irrompem de forma previsível num dado momento temporal, mas que vão se instalando sem um momento crítico, tornando difícil a sua apreensão por parâmetros da noticiabilidade jornalística. No caso das coberturas das secas, Ponte (2005) registra que: O autor (Stryckman) aponta a tendência na cobertura jornalística para a centração no evento em si, a sua construção como fatalidade, ocultando a contextualização espacial e a indexicalidade não apenas a factores de ordem social e econômica, mas também à ausência de solidariedade. Interpreta essa cobertura dentro dos quadros da cultura jornalística: desigualdade da cobertura geográfica, negatividade, consonância de imagens de fome com a imagem mental desse espaço outro, manifestação das regras da clareza e da simplicidade, qualidades de qualquer notícia para consumo imediato, digamos da sua naturalização e da sua reificação. (PONTE, 2005, p.195-196)

Diante do distanciamento da relação acontecimento-informação e acontecimento-enunciação, os desastres lentos dependeriam mais da (1965 apud PONTE, 2005), será o inesperado dentro do que tem significado e consonância o que atrai atenção, somando ao imprevisível os atributos de inesperado e raro.

ocorrência de acontecimentos curtos, ou seja, vários acontecimentos dentro de um grande acontecimento para serem midiatizados e percebidos pela opinião pública. E como lembra muito bem Jorge Pedro Sousa (2002, p.21-22), “os acontecimentos necessitam ser comunicáveis para se tornarem referentes dos discursos jornalísticos”.