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2 A MÍDIA NOS DESASTRES E A QUESTÃO DO

2.2 Jornalismo Público: jornalismo do cidadão

2.2.1 Essência original do Jornalismo Público

O conceito de jornalismo público surgiu nos Estados Unidos no final da década de 1980 diante da constatação de um crescente desinteresse dos cidadãos norte-americanos pela vida pública, ao mesmo tempo em que estes já não reconheciam mais nos meios de comunicação o instrumento para ligá-los às questões julgadas importantes para a sua comunidade. Como um dos fatores de origem desta corrente, estava a pretensão de estancar a queda da credibilidade dos veículos de comunicação norte-americanos, que afetava especialmente a leitura de jornais, já em visível declínio desde as décadas anteriores.

O desencantamento por parte do público com a cobertura da mídia na campanha presidencial americana de 1988 revelava como a imprensa se situava distante das grandes aflições da população. “Muitos acreditaram que os media foram transformados pelas táticas de campanha negativa, obcecados com a cobertura do tipo corrida de cavalos e esquecidos em relação às questões julgadas importantes pelos eleitores” (SHEPARD, 1994 apud TRAQUINA, 2003, p.10). Foi então que o veterano jornalista Davis Merritt passa a sustentar que tais coberturas precisavam promover uma discussão mais séria e mais ampla sobre os temas envolvendo a coletividade.

No jornal dirigido por Davis Merritt, o Wichita Eagle, foi lançado em 1990 um projeto de jornalismo cívico intitulado “Voter Project”. Em consórcio com uma estação radiofônica e um operador televisivo, o jornal utilizou sondagens de opinião e focus groups para identificar as questões

principais que preocupavam os cidadãos.

Subsequentemente, as empresas jornalísticas envolvidas no projeto orientaram a sua cobertura da campanha eleitoral e destacaram essas questões, minimizando os ataques e contra- ataques dos candidatos. Nas seis semanas antes do dia das eleições, o Wichita Eagle publicou artigos aprofundados sobre as questões identificadas pelos cidadãos e apresentou a posição dos candidatos sobre cada questão. (TRAQUINA, 2003, p.11)

Com outros projetos semelhantes lançados posteriormente, tentava-se fazer com que os cidadãos participassem na resolução dos problemas. Para Merritt (1998, p.6), o “Jornalismo deve ser - e pode ser - uma das principais forças na revitalização da vida pública”15

. Mas o autor adverte que para isso é necessária uma mudança fundamental na profissão, onde o jornalista adotaria um papel para além de dar notícias. Desta forma ganha contornos o Jornalismo Público, que encontrou em Jay Rosen seu maior teórico expoente. Rosen (2000) defende o desenho do perfil do jornalista-participante no lugar do jornalista-observador, contrariando uma atitude clássica onde jornalistas tendiam a se ver como observadores com o seu trabalho e, muitas vezes, dizendo a verdade para não trazer novas verdades (ROSEN, 2000, p.54). Rosen buscou, inclusive, inspiração no trabalho de John Dewey, que defendeu no seu livro publicado em 1927 que a comunicação era a solução para os problemas da democracia norte-americana (TRAQUINA, 2003, p.14). A democracia torna-se para Rosen um conceito-chave dentro de sua percepção sobre a vida pública: “chamo ‘jornalismo público’ a uma teoria e a uma prática que reconhece a suprema importância que tem o melhorar a vida pública” (ROSEN, 2003b, p.83-84). Para o pesquisador americano “jornalistas são pessoas que fazem coisas”, princípio que chega a confundir com a crença habitual de que “os jornalistas são pessoas que descobrem coisas” (2003, p.84, grifo do autor). Se os jornalistas fazem de fato coisas, de acordo com o autor, “então o seu terreno é uma arte e não uma ciência” e então o jornalismo seria “uma das mais importantes artes da democracia, e que o seu objetivo final não é fazer notícias, ou reputações, ou manchetes, mas simplesmente fazer a democracia funcionar” (ROSEN, 2003b, p. 84).

Na perspectiva do jornalismo público, o principal objetivo é promover uma nova atitude de promoção para com os públicos. Os jornalistas públicos partem da premissa de que é necessário reanimar o debate público, encontrando a construção da cidadania como um de seus papéis fundamentais.

15

Tradução Livre: Journalism should be - and can be - a primary force in the revitalization of public life.

O jornalismo público é tratado como uma corrente alternativa para “reforçar o elo entre o jornalismo e a vida comunitária” (MESQUITA, 2003, p.19), trazendo à tona inúmeras implicações sobre a participação do público nos meios de comunicação e sua forma de colaborar com a produção do conteúdo jornalístico.

As denominações utilizadas para a corrente variam conforme os autores, as nacionalidades e a própria concepção construída em torno dos objetivos e da prática desta modalidade de jornalismo. Se na origem americana o Civic Journalism (jornalismo cívico) aproxima a ideia de civismo a uma construção coletiva de uma cidade, de uma região ou de um país, no Brasil o termo “civismo” remete mais ao patriotismo (FERNANDES, 2008), fazendo com que a denominação Jornalismo Público (Public Journalism) fosse mais apropriada. Mas apesar de os americanos Davis Merritt e Jay Rosen preferirem o termo Jornalismo Público, os portugueses Nelson Traquina e Mário Mesquita optaram por adotar a tradução literal para Jornalismo Cívico, embora a conceituação trabalhada seja exatamente a mesma.

Enquanto a denominação no Brasil não está até hoje bem definida, os estudos sobre a corrente também são escassos no país. Autores como Márcio Fernandes (2008) e Luiz Martins da Silva (2006) concordam que nem a denominação nem a aplicação da atividade estão bem resolvidas. Para Silva (2006) “o jornalismo público ainda não encontrou no Brasil nem uma tradução definitiva nem uma compreensão do que ele representa enquanto função, área de cobertura e campo profissional” (p.6). No entanto, acredita que já há alguns indicadores de que algumas práticas jornalísticas da chamada “grande imprensa” brasileira começa a se aproximar do que “poderia vir a se chamar de jornalismo público” (SILVA, 2006, p.6).

Já Beatriz Dornelles (2008) afirma que há casos no Brasil como diversos jornais no interior do Rio Grande do Sul praticando um jornalismo semelhante ao cívico, bem como na capital gaúcha, através dos jornais de bairro com enfoque comunitário (p.124).

No entanto, Loomis (2000) alerta para que não haja confusão entre o jornalismo público e o jornalismo comunitário, apesar de entender que ambos estão relacionados em conceito e na prática. Para o autor, o tamanho seria um diferencial, já que o jornalismo comunitário está mais presente em jornais pequenos, incluindo semanários. A amplitude da abordagem se somaria ao porte do veículo também, conforme Loomis, ao entender que enquanto o jornalismo comunitário mostra o problema e cobra soluções, o jornalismo público mostra como

os problemas podem ser tratados pelas políticas públicas (LOOMIS, 2000).

Outras denominações ora confundidas com o jornalismo público, como o jornalismo participativo, o jornalismo colaborativo, jornalismo cidadão ou o jornalismo de código aberto – fonte aberta - (jornalismo

open source) carregam características em comum com a raiz da corrente

promovida por Merritt, Rosen e outros expoentes, mas não são considerados sinônimos, merecendo, portanto, um subcapítulo à parte neste trabalho. Para fins de compreensão e padronização dos termos, mantemos a denominação de Jornalismo Público como corrente similar ao jornalismo cívico.

Para Traquina (2001), tanto Merritt quanto Rosen partilham a mesma visão de uma democracia participativa: “ambos defendem um papel mais ativo por parte do jornalismo na construção de um espaço público mais vibrante e na resolução dos problemas da comunidade” (p.179-180). Esta visão remete às origens da corrente, de acordo com Mesquita (2003):

Na origem da teorização em volta do movimento do civic ou public journalism estiveram, essencialmente, três ordens de factores: a influência das teorias do “comunitarismo”, no âmbito da filosofia política; a crítica ao comportamento dos jornalistas perante a política e os políticos, entendida como uma atitude de

“cepticismo” sistemático, susceptível de

contribuir para o desinteresse dos cidadãos pela vida pública; a “crise de credibilidade” da imprensa e, em geral, dos media, detectada através de estudos de opinião efectuados de forma

sistemática e subsidiados por empresas

mediáticas. (MESQUITA, 2003, p.21)

Mesquita entende a aproximação entre o jornalismo público e as causas comunitárias, baseada no fundamento do propósito de encorajar e acelerar a tomada de decisões no plano regional, de forma a que “o jornalismo possa ajudar a comunidade, não só a equacionar, mas também a descobrir os caminhos para a resolução dos seus principais problemas” (MESQUITA, 2003, p.20).

Desta forma, a diferença principal entre o jornalismo público e o modelo dominante do jornalismo seria a concentração nos “problemas das pessoas comuns, nas suas preferências quanto aos assuntos, e no fornecimento da informação que é de importância prática para aqueles

que estão interessados em envolver-se ativamente no processo político” (EKSTEROWICZ; ROBERTS; CLARK, 2003, p.98). Carey (1987 apud ROSEN, 2003a, p.40) escreve que “o problema real do jornalismo é que o termo que o fundamenta – o público – foi dissolvido, dissolvido em parte pelo jornalismo. O jornalismo só faz sentido em relação com o público e com a vida pública”.

No sentido de aproximar o jornalismo da população, Rosen (2003a) entende que o jornalismo público recomenda uma tarefa diferente: “operar bem as ligações, especialmente a ligação fundamental entre o jornalista e os cidadãos. Uma forma de definir o jornalismo público é chamar-lhe a arte em desenvolvimento de ligação às comunidades onde trabalham jornalistas [...]” (ROSEN, 2003a, p.55).

Para Coleman (2003), a prática do jornalismo público assemelha- se às boas técnicas tradicionais de reportagem de escuta sistemática, ao escrever sobre assuntos acerca dos quais as pessoas se preocupam (COLEMAN, 2003, p.61).

O desenvolvimento do jornalismo público, no entanto, coincide com o período de transformação tecnológica nos meios de comunicação. Eksterowicz, Roberts e Clark (2003), acreditam que a ascensão da corrente foi moldada pelas forças desta transformação, além das mudanças econômicas que configuravam um novo ambiente competitivo nos meios audiovisuais. “Assim, a disseminação das notícias foi revolucionada por um certo número de desenvolvimentos tecnológicos” (EKSTEROWICZ; ROBERTS; CLARK, 2003, p.88).

Observando o jornalismo público como uma corrente genuinamente norte-americana, nota-se que normalmente a iniciativa das ações é das próprias empresas de comunicação e não propriamente do cidadão. Organização de painéis, realização de pesquisas de opinião, discussão de uma pauta envolvendo mais o público, todas são iniciativas comuns dos próprios meios em sua performance cidadã. Para Carrasco (2002 apud FERNANDES, 2008, p.176), se realizadas essas e outras ações similares “haverá menos cobertura dos ruídos de uma comunidade e mais cobertura de seus silêncios, isto é, daqueles temas que normalmente a imprensa é incapaz de perceber, devido à cobertura superficial e supostamente objetiva que faz”.

2.2.2 Jornalismo Público e a revisão da objetividade e da