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3 O JORNALISMO PARTICIPATIVO E A QUESTÃO DA

3.2 Participação do ouvinte: diálogo e multiplicação de vozes na

3.2.1 Interação e diálogo

O avanço das conquistas individuais e da cidadania, especialmente nas últimas duas décadas no Brasil e na maioria dos países ocidentais, tem proporcionado uma ampliação de possibilidades de participação do cidadão nos meios de comunicação, facilmente verificável mesmo antes da popularização das novas ferramentas de interação, como é o caso hoje das redes sociais na internet. O desenvolvimento da chamada consciência cidadã antecede, em poucos anos, porém, esse renascimento tecnológico corporificado pela ascensão da Web 2.0 e a proliferação de múltiplos canais e formatos de interatividade.

No entanto, mesmo autores que investigam as mutações dos meios e das linguagens, como é o caso de Roger Fidler (1998), reconhecem que as características embrionárias da interatividade atual estão localizadas em tempos muito distantes, notadamente no período denominado como a primeira grande midiamorfose e a aparição da linguagem falada. Foi nessa fase, compreendida entre 40.000 e 90.000 anos atrás, que houve o desenvolvimento acelerado do domínio interpessoal, favorecendo também o processamento e a difusão da informação de maneira mais prática (FIDLER, 1998, p.101). Se no período anterior, quando havia o predomínio da linguagem expressiva25, os humanos modernos já exibiam sua capacidade de transmitir, trocar e assimilar ideias, foi com o desenvolvimento de novas formas de

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Segundo Fidler (1998), a linguagem expressiva inclui sinais e símbolos na arte, na música e na dança.

narração - com o compartilhamento de histórias - que as interações grupais foram potencializadas em comunidades cada vez maiores, com menor distinção entre intérpretes e público (FIDLER, 1998, p.104).

Esta interação face a face, restrita ao alcance geográfico, mas alargada no espaço temporal pelas figuras dos recordadores26

, compelia os indivíduos a se deslocar fisicamente para que ocorresse a interação.

É inegável que com o surgimento e o desenvolvimento dos meios de comunicação, “novas formas de ação e de interação e novos tipos de relacionamentos sociais” são criados (THOMPSON, 2008, p. 77). Essa complexa reorganização dos padrões de interação humana através do espaço e do tempo a partir da influência sofrida pela intervenção dos meios de comunicação fez com que Thompson sugerisse três tipos de interação: a interação face a face, a interação mediada e a quase- interação mediada (THOMPSON, 2008, p.78).

De acordo com o autor, a interação face a face acontece em um contexto de copresença, onde os participantes partilham um mesmo sistema referencial de espaço e tempo. Mantendo vínculos com nossa herança da primeira midiamorfose apontada por Fidler (1998), as interações face a face tem um caráter, sobretudo, dialógico, “no sentido de que geralmente implicam ida e volta no fluxo de informação e comunicação” (THOMPSON, 2008, p. 78). Diferem das interações mediadas, já que estas necessitam do uso de um meio técnico para possibilitar a interação. Este tipo de situação interativa é comum através do uso de cartas, de conversas telefônicas e outros, segundo Thompson, estendendo-se no espaço e no tempo, mas permitindo a manutenção do diálogo, principalmente no caso da conversa telefônica, que preserva e até acentua as deixas orais.

Já as “quase-interações mediadas” são apontadas pelo autor como “relações sociais estabelecidas pelos meios de comunicação de massa (livros, jornais, rádio, televisão, etc.)” (THOMPSON, 2008, 79). Para Thompson, esta forma de interação possui um caráter monológico, mas resguarda alguns aspectos de interatividade apoiando-se na “situação social na qual os indivíduos se ligam uns aos outros num processo de comunicação e intercâmbio simbólico” (THOMPSON, 2008, p.80).

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Os recordadores eram pessoas que controlavam o conteúdo e o fluxo de comunicação de difusão dentro de cada sociedade durante o período de domínio da linguagem falada (Fidler, 1998, p.105).

Apesar da distinção sugerida, o autor defende que em muitas interações desenvolvidas no fluxo da vida diária há um caráter híbrido, misturando estas diferentes formas de interagir.

E é exatamente nestes pontos de fusão entre as modalidades apontadas que as características da conversação tradicional – presencial ou à distância - são convertidas em uma conversação através da mídia.

Cabe então distinguir interação de conversação ou mesmo de participação. Se a conversação pode estar mais ligada às linguagens do que aos meios, a interação pode estar mais voltada às ferramentas de participação, como defendem Ribeiro e Meditsch:

É importante destacar que interatividade e participação, apesar de estarem diretamente associadas, não são sinônimos. A participação do público na produção e emissão de conteúdo se dá, geralmente, através de ferramentas interativas – analógicas ou digitais. Mas nem sempre o uso dessas ferramentas gera um conteúdo novo, com grau significativo de autoria do usuário (ou receptor), requisito necessário para considerá-lo resultado de uma produção compartilhada, ou participativa (RIBEIRO; MEDITSCH, 2006, p. 4- 5).

Para Sodré (2006), no entanto, interação é a forma operativa do processo mediador, o que difere das mediações simbólicas, já que estas seriam linguagens, leis, artes, etc. e estariam presentes em todas as culturas.

Neste sentido, convém lembrar Santaella (2007), que considera que os meios não são necessariamente responsáveis únicos pelas mediações sociais, mas que impactam em um ambiente sociocultural suportado pelas mudanças na própria natureza da linguagem.

Para Fidler (1998), até mesmo as novas máquinas de realidade virtual devem dar às pessoas a capacidade de compartilhar ideias e emoções diretamente, sem necessidade de mecanismos e interfaces intermediários, mas seu efeito transformador sobre a sociedade não é mais profundo quanto os desenvolvimentos da linguagem ao longo dos tempos. Tanto que o autor adverte que as novas tecnologias não podem por si só garantir a adoção generalizada de um novo meio.

Fidler (1998) e Santaella (2007) concordam que o que está em constante transformação não é exatamente o meio de comunicação amparado em si mesmo, mas as possibilidades de adaptação das linguagens ao surgimento de novas formas de interação.

Pertinente também considerar um aspecto da concepção dialética de Platão, abordado por Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996) no seu clássico estudo sobre os âmbitos da argumentação, que é a preocupação com a concordância do interlocutor durante cada passo da exposição de seu raciocínio. De acordo com os autores, a possibilidade que é oferecida ao interlocutor para formular perguntas ou apresentar objeções, oferece-lhe a impressão de que as teses a que adere são mais solidamente alicerçadas do que as conclusões do orador que desenvolve um discurso contínuo.

Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca, “para argumentar, é preciso ter apreço pela adesão do interlocutor, pelo seu consentimento, pela sua participação mental. [...] Cumpre observar, aliás, que querer convencer alguém implica sempre certa modéstia da parte de quem argumenta” (1996, p.18).

Mas antes que se comemore um triunfo da dialética sobre a retórica, há que se considerar tanto a adesão do interlocutor – não como vitória sobre um opositor, mas como convencimento diante da discussão estabelecida – quanto à adesão do auditório universal. Até porque o diálogo “real” estabelecido com o interlocutor, através da argumentação perante um único ouvinte, ampliaria as chances da eficácia de um diálogo “mental” com o auditório universal. Para Perelman e Olbrechts- Tyteca “a adesão do interlocutor no diálogo extrai seu significado do fato de este ser considerado uma encarnação do auditório universal” (1996, p.41).

Um outro aspecto a ser observado está dentro da dimensão temporal da conversa, onde um locutor não pode falar ao mesmo tempo do que outro, gerando a necessidade que Belo (1991) descreve como uma “pertinência para responder”, ao interagir ou mesmo para iniciar uma conversa. O autor compartilha o entendimento que “conversar [...] não obedece nenhum ‘contrato de cooperação’ em que cada cooperante ‘contribui’ com a sua parte” (p.44). Neste sentido, enfatiza que durante uma conversa ou discussão, o conflito é mais geral do que a cooperação: “qualquer conversa é pois um conflito, institui uma relação de forças que é prévia a qualquer princípio de cooperação [...]. Quando se deixa o outro falar ou, pelo contrário, se interrompe, é sempre de uma relação de forças que se trata”. (BELO, 1991, p.44-45)

Mas é no conceito de diálogo de Paulo Freire (1987) que encontramos a essência para uma comunicação dialógica construída na relação do sujeito com outro sujeito. Para o pedagogo, o diálogo estabelecido entre as pessoas não pode ser uma imposição de “um” para “outro” dentro de uma relação de poder:

O diálogo é este encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, na relação eu-tu. [...] Diálogo é uma exigência existencial. [...] Não pode reduzir-se a um ato de depositar idéias de um sujeito no outro, nem tampouco tornar-se simples troca de idéias a serem consumidas pelos permutantes. Não é também discussão guerreira, polêmica, entre sujeitos que não aspiram a comprometer-se com a pronúncia do mundo, nem a buscar a verdade, mas a impor a sua. Porque é encontro de homens que pronunciam o mundo, não deve ser doação do pronunciar de uns a outros. É um ato de criação. (FREIRE, 1987, p. 78-79, grifo do autor)

Para Freire, o homem dialógico é crítico e “somente o diálogo, que implica um pensar crítico, é capaz, também, de gerá-lo. Sem ele não há comunicação e sem esta não há verdadeira educação” (FREIRE, 1987, p.83). E é justamente neste pensar crítico que Freire aborda a essencialidade da relação dialógica, pois, segundo ele, este “pensar” não aceita a dicotomia mundo-homens e reconhece entre eles uma “inquebrantável solidariedade” (p.82).

O conceito geral de comunicação estabelecido por Freire é resgatado por Meditsch e Faraco (2003), quando retomam o pensamento do pedagogo na década de 1970, defendendo que a comunicação é a coparticipação dos sujeitos no ato de pensar. Contudo, o pensar que Freire se refere não se encerra no pensamento, mas na extensão de um primeiro pensante a um segundo pensante, essencial para a existência do diálogo (FREIRE & GUIMARÃES, 1988).

Meditsch revisita Freire em outro momento ao observar que o pedagogo já demonstrava sinais de otimismo com a abertura da mídia ao diálogo com o público através das formas de interatividade disponibilizadas pelo rádio na década de oitenta (MEDITSCH, 2003).

Ao estudar a obra de Paulo Freire e sua relação com o conceito atual de comunicação, Venício Lima (2001) ressalta que:

No momento em que as potencialidades das tecnologias interativas acenam para a quebra da

unidirecionalidade e da centralização das

comunicações, o conceito de comunicação dialógica, relacional e transformadora de Freire oferece uma referência normativa revitalizada, criativa e desafiadora para todos aqueles que

acreditam na prevalência de um modelo social comunicativo humano e libertador. (LIMA, 2001, p.69)

Nesta análise, diante da “revolução digital”, Lima destaca a “redescoberta da comunicação humana como diálogo em oposição à comunicação como monólogo” (LIMA, 2001, p.71, grifo do autor).

Dentro desta perspectiva, o autor relaciona a tendência de um novo cenário tecnológico, integrado e integrador com a possibilidade de interação simultânea entre emissor e receptor. Lima expõe o contraponto suscitado no início do século XXI entre a chegada das chamadas “sociedades interativas” e a “sociedade de massas” do século XIX, que teria servido de referência aos modelos teóricos da Manipulação e da Persuasão27 (LIMA, 2001, p.56-57).

E contrariando as orientações voltadas à comunicação para uma sociedade de massas, Freire (1971) defende a concepção de um diálogo dentro de uma sociedade de classes, priorizando o encontro de sujeitos interlocutores em uma relação dialética:

O sujeito pensante não pode pensar sozinho. Não pode pensar acerca dos objetos sem a co- participação de outro Sujeito. Não existe um ‘eu penso’, mas sim um ‘nós pensamos’. É o ‘nós pensamos’ que estabelece o ‘eu penso’ e não o oposto. Esta co-participação dos Sujeitos no ato de conhecer se dá na comunicação. [...] A comunicação implica uma reciprocidade que não pode ser rompida. [...] O que caracteriza a

comunicação enquanto este comunicar

comunicando-se é que ela é diálogo, assim como o diálogo é comunicativo. (FREIRE, 1971 p. 66- 69)

Esta retomada dos conceitos elaborados por Freire nas décadas de 60 e 70 torna-se oportuna neste momento em que as interações ocorrem em código aberto e expõem o diálogo como algo colaborativo e

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De acordo com Lima (2001) o modelo teórico de Manipulação baseia-se na suposição que as mensagens são “todo-poderosas” e que os indivíduos são vulneráveis e facilmente manipuláveis (p.41). O Modelo teórico de Persuasão passou a considerar a influência que as comunicações teriam sobre o indivíduo (p.42).

articulado com as possibilidades de participação do público vistas em algumas escolas e tendências do jornalismo, como o jornalismo público e o jornalismo participativo.

Este caráter de interação simultânea entre emissor e receptor (que abandonam tais denominações para se tornarem sujeitos), defendida por Freire, pode ser identificado nos conceitos de interação face a face e interação mediada de Thompson (2008), mas não, necessariamente, pela quase-interação mediada, devido à sua predominância de distância temporal entre emissão e recepção, além do caráter soberanamente monológico, que resguarda apenas fragmentos de interação dentro de um intercâmbio simbólico, porém com pouca consistência na resposta instantânea da audiência.