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DESCENTRALIZAÇÃO , MUNICIPALIZAÇÃO E FINANCIAMENTO: SUAS INTERFACES

2.1 – DESCENTRALIZAÇÃO: REFLEXÕES TEÓRICO-CONCEITURAIS

descentralização, conceito que, historicamente, tem comportado posições diversas, vem adquirindo significativo espaço no cenário brasileiro, sobretudo, a partir dos anos oitenta, período em que aparece como uma reivindicação democrática, firmada na premissa de que o acentuado centralismo que caracterizou o regime militar dos anos setenta havia produzido uma cultura de ineficiência, corrupção e cerceamento da participação nos processos decisórios.

Nos tempos atuais, a descentralização constitui uma tendência que se observa em escala mundial. Cassassus (1999) salienta que a mesma, sobretudo na América Latina, vem representando um dos elementos que integram a chamada modernização da educação, visando à garantia da eficácia e da eficiência dos sistemas de ensino,

Para essa autora, tal fenômeno decorre do fracasso evidenciado pelos discursos e das práticas fundamentadas na defesa da centralização, especialmente nos países latino-americanos, explicitamente comprometidos com a defesa das identidades nacionais, da necessidade de fortalecimento dos processos de integração social, além do aceno à possibilidade de se obter uma maior equidade social.

Nesse sentido, o binômio centralização/descentralização tem sido objeto de profundas e divergentes reflexões acadêmicas, compondo a agenda de discussões dos formuladores das políticas públicas no âmbito dos diversos espectros políticos.

Advogando a necessidade da descentralização do Estado, Jordi (1988) faz a ela uma crítica pois, não obstante ter sido importante durante o expansionismo do pós- guerra, contribuiu para a expropriação das políticas das classes populares, ao passo que a descentralização é capaz de comportar o potencial de minimizar as disparidades

sociais. A virtude da descentralização, para ele, está em descentralizar o poder político na direção dos interesses das classes populares, podendo acenar para maiores possibilidades de democratização da gestão pública.

Ressalte-se que significativa parte da produção acadêmica disponível identifica que os modelos de descentralização vêm comportando diferentes experiências de gestão e de governança local, tanto nos países desenvolvidos, como nos chamados países emergentes, sob os mais distintos regimes políticos.

Por essa razão Leal (1994, p. 50) considera que

“é necessário ficar alerta para a ambigüidade da própria acepção do termo descentralização e para as características de orientação ideológicas diversificadas que vem, recentemente, sendo classificadas a partir de dois ideários principais: um de orientação neoliberal e outro de conotação progressista” .

É oportuno registrar a falta de clareza que tem sido evidenciada entre as categorias da descentralização e da desconcentração. Análises de documentos oficiais, programas, projetos de governos mostram que essas terminologias são adotadas, muitas vezes, como sinônimas, fazendo-se alusão à descentralização como sendo desconcentração, que implica no deslocamento da execução das ações, preservando-se o processo decisório original.

A ambigüidade com que têm sido tratados esses conceitos tem contribuído para encobrir as bases que os distinguem e que acarretam desdobramentos no processo de decisão e execução das políticas públicas e, sobretudo, quanto ao entendimento do papel de exercício do poder entre as instâncias governamentais.

Distinção teórico-conceitual entre essas categorias políticas nos é propiciada por Tânia Bacelar (2000, p. 146) ao evidenciar as características que lhe são próprias. Para ela, a descentralização é entendida

“como um processo de transferência de autoridade e de poder decisório de instâncias mais elevadas para instâncias de unidades espacialmente menores, entre as quais os municípios e as comunidades, conferindo capacidade de decisão e autonomia de gestão”.

Relativamente à desconcentração, Bacelar afirma ser impossível confundi-la com descentralização, uma vez que desconcentrar significa, tão somente, distribuir responsabilidades executivas, sem, no entanto, transferir autoridade e autonomia decisória.

Para ela, existem duas formas diferentes, porém complementares, de descentralização: a primeira que se opera entre Estado-estado, incluindo a transferência tanto de funções como de responsabilidades gestionárias de uma esfera mais ampla a outra inferior, e a segunda que se dá entre Estado – sociedade, por meio do repasse para esta última, da capacidade de decisão e execução de ações, envolvendo, portanto, decisão, deliberação e execução.

Assim considerada, a descentralização, em sua acepção e prática, produz uma transformação radical na distribuição do poder, ao mexer no aparato político- institucional de corte centralizador, tendo em vista produzir o movimento oposto- descentralizador. Descentralização atinge, assim, os núcleos de poder, tendo em vista a sua disseminação e sua democratização.

Já a desconcentração, segundo Bacelar, representa instrumento eficaz do aparelho estatal, sobretudo de governos de bases centralizadoras, deslocando para as instâncias subnacionais, a responsabilização pela execução de determinadas ações. Para Lobo (1990), a descentralização não deve ser vista como uma “forma mítica”, o que concorrerá para entravar os processos de mudança. Argumenta que a luta política em prol da descentralização tem conduzido à sua supervalorização frente às mazelas estruturais do Estado. Situa a descentralização

“como um instrumento de ação governamental, dentre outros, pois, por si só, utilizada de forma isolada, sem alterar outros aspectos do aparelho do Estado, (...) pouco se pode esperar da descentralização” (p. 7).

Lobo detecta a existência de três vertentes que se aproximam, em grande medida, das formas de descentralização apresentadas por Bacelar, quais sejam: da administração direta para a indireta; entre níveis de governo e entre o Estado e a sociedade civil. Ao se referir à primeira vertente, Lobo constata a expansão de “empresas públicas, sociedades de economia mista, autarquias, que, sob a justificativa da necessidade de agilização das ações governamentais, compõem, hoje, um corpo poderoso à margem do controle central” (idem).

Na segunda vertente, a viabilização da descentralização acontece entre as esferas intergovernamentais, em contrapartida ao histórico centralismo existente, constituindo uma saída para crônicos problemas como da subordinação financeira de estados e municípios com relação à esfera central. A autora, contudo, faz uma crítica à redistribuição de recursos públicos com vistas à autonomização dos entes subnacionais, uma vez que tal iniciativa não será capaz de resolver questões relativas às relações de poder.

Na terceira vertente estão incluídos os processos de transferência de funções que são executadas pelo poder público, cuja melhoria poderá ser obtida através da cooperação com a iniciativa privada. Havendo aqueles segmentos que defendem a privatização de uma série de atividades econômicas e outros que acreditam na possibilidade de articulação mais estreita entre Estado e sociedade civil, mediante o estabelecimento de um processo de cooperação mútua. Dentre esses últimos se encontram, como diz Lobo, os defensores da municipalização dos serviços básicos de atendimento à população.

A análise dessas três vertentes acima tratadas permitiu à autora conceituar a descentralização como sendo “uma distribuição mais adequada de poderes financeiros e funcionais entre os níveis de governo (...) envolvendo, precipuamente, uma questão de redistribuição de poder, de deslocamentos de centros decisórios” (p. 90).

Podemos inferir das análises encaminhadas que, mesmo se considerando as diferenças de enfoques, de concepções e de tipologias, a descentralização envolve os seus impactos, tanto de ordem financeira, como político institucional e organizacional. Bobbio (1997), ao estabelecer a relação entre descentralização e centralização, ressalta que ambas constituem fórmulas que possuem princípios e tendências, formas de ser de um aparelho político ou administrativo. Argumenta ele,

“se for verdade que elas representam dois tipos diferentes e contrapostos de ordenamentos jurídicos, é também verdade que se trata de figuras encontradas na sua totalidade somente na teoria”.

Para ele, a existência de um processo de descentralização total conduz ao rompimento da concepção de Estado, da mesma forma, admitir uma total centralização no Estado Moderno representa uma utopia face à complexidade das funções por ele exercidas.

Nesse sentido Bobbio diz

“que todos os ordenamentos jurídicos positivos são parcialmente centralizados e, em parte, descentralizados, isto é, que, considerada a centralização e a descentralização como dois possíveis valores, não existe um sistema político-administrativo que seja exclusivamente orientado para a otimização de uma ou de outra” (idem).

Com base nessas reflexões de Bobbio, pode-se falar em centralização quando a quantidade de poderes das entidades locais e dos órgãos periféricos é reduzida ao mínimo indispensável, de modo a que possam ser consideradas como entidades subjetivas de administração. Com relação à descentralização ocorre o inverso, o nível central detém o mínimo de poder necessário para executar suas ações.

Alinhado a outros pensadores, conforme visto anteriormente, Bobbio ratifica o valor da descentralização, admitindo a natural tendência da transferência de funções do nível central para os setores periféricos em qualquer administração que conseguiu transpor determinadas dimensões, quer se trate da esfera estatal, quer se fale de entidades privadas.

No entanto, Souza (1998, p.11) chama a atenção para os vários problemas envolvidos nas formulações teóricas acerca da descentralização, expondo três deles:

ƒ “a descentralização tem sido tributária das teorias normativas sobre o local;

ƒ a descentralização tem “significado um redirecionamento para o mercado e para os atores locais, reduzindo as instâncias de politização;

ƒ as formulações teóricas sobre a descentralização levam em conta a realidade dos países industrializados, conseqüentemente, a aplicação de suas bases teórico-metodológicas se torna inviável em realidades em desenvolvimento”.

Tomando por base esses problemas, Souza identifica, como outros autores o fazem, diferentes formas de conceber a descentralização, colocando, de um lado a formulação marxista que tem explicado a centralização x descentralização como inerentes aos movimentos mundiais do capitalismo e, de outro, a formulação da escolha pública, para a qual a descentralização constitui fator de limitação de despesas. Para a autora, a adoção de ambas as formas apresentam dificuldades em países em desenvolvimento, uma vez que a descentralização tem constituído ponto central quando se analisa o desenvolvimento, representando um de seus principais instrumentos e uma estratégia de redução do papel do Estado.

Souza ressalta alguns problemas de natureza teórica acerca da descentralização que ainda não foram resolvidos:

• “Para cada princípio a favor da descentralização pode-se, igualmente, identificar outro que o contrarie;

• A literatura trata a descentralização como uma política concedida para as esferas subnacionais, o que não se aplica a todos os países;

• Não existem garantias de que os beneficiários de políticas descentralizadoras sejam eqüitativamente distribuídos” (12).

As reflexões feitas até aqui conduzem à necessidade de se apreender a relação existente entre federalismo e descentralização, tendo em vista compreender como se efetiva a capacidade governativa em Estados Federados. Nessa discussão a primeira questão que se coloca é o que distingue um Estado Federado de um Estado Unitário é a forma de como se dá a distribuição da autoridade política dos Estados Nacionais. Contribuição relevante nessa temática nos é fornecida por Arretche (2002, p.28), segundo a qual os estados federativos constituem uma forma de governo exercido de modo vertical, em que os diferentes níveis possuem autoridade sobre sua área de jurisdição, havendo independência entre governo central e governos locais, gozando estes últimos de soberania, possuindo o status de atores políticos autônomos, capazes de gerir algumas de suas políticas. Essa soberania dos governos locais deriva do voto popular direto, da autonomia de suas bases fiscais e, em muitos casos, de uma força militar própria. (idem).

Com relação aos Estados Unitários, o que os caracteriza é a concentração da autoridade política, fiscal e também militar no nível central. A ele compete delegar autoridade política aos governos locais, uma autoridade, portanto, que lhes é concedida, restrita44.

Arretche (2002, p. 31) destaca algumas considerações a respeito da relação federalismo e capacidade governativa, ou seja, sobre os impactos do federalismo sobre o poder dos governos centrais, a saber:

44 Lijphart (1999) entra nesse debate afirmando que há, nos dias atuais, a adoção da descentralização pela

maior parte dos Estados Federativos, enquanto Riker (1975) mostra a existência do centralismo no que se refere à distribuição de funções administrativas, em níveis diferenciados, em países de natureza federativa, sem que isto tenha afetado a autonomia política das instâncias locais que caracteriza um Estado federativo.

• “Estados federativos tendem a restringir as possibilidades de mudança, porque a autonomia dos governos locais opera no sentido de dispersar o exercício da autoridade política, aumentando o poder de veto das minorias”;

• “A presença de um maior número de veto nas arenas decisórias aumenta o potencial de estabilidade das políticas existentes”;

• “Sistemas federativos restringem o potencial de mudanças de políticas porque as garantias institucionais dos Estados-membros no processo decisório tendem a produzir decisões políticas com base no mínimo denominador comum”.45

Referindo-se, de modo particular, ao federalismo brasileiro, Oliveira (2004) destaca que o mesmo passou de um “modelo federativo dual”, que se instalou ainda na primeira República, para um “modelo de corte cooperativo, segundo define a Constituição de 1988 e que, para outros estudiosos, conforme cita a autora, a exemplo de Almeida (2001), tem ensejado a vivência de um modelo de federalismo competitivo”. Apoiada em Kugelmas e em Sola (2000), Oliveira acrescenta que o federalismo brasileiro é assimétrico, descreve um movimento pendular entre os pólos autoritarismo/avanço democrático.

2.2 - DESCENTRALIZAÇÃO E MUNICIPALIZAÇÃO NA