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A gestão democrática do ensino público supõe a transparencia de processos e de atos. Ao caráter público e aberto se opõe o privado e o secreto. O segredo é a dimensão daquele que se tem como a sede e a fonte de poder e, portanto, nada deve à cidadaia.

opção pela realização de entrevistas deve-se ao reconhecimento de sua potencialidade para revelar significações, ressignificações desta política educacional por parte dos diferentes sujeitos nela envolvidos, em relação aos sentidos que lhe são atribuídos nas diferentes formações discursivas a que se referem.

Nesse sentido, concordamos com Lang (1996, p. 3), que o depoimento “busca obter dados informativos e factuais, assim como o testemunho do entrevistado sobre a vivência em determinadas situações ou a participação em determinadas instituições”. Ele nos permite conhecer as interpretações de indivíduos sociologicamente qualificados e inseridos num determinado contexto social.

Estamos convencidas de que as entrevistas feitas mobilizam sentidos. Diferenças, semelhanças, composições, recomposições, relações de conflito e relações de antagonismo foram explicitadas no que concerne à concepção e implementação do Fundo como mecanismo democratizante da educação, manifestando aderência, resistência ou antagonismo a esta política de financiamento educacional.

Buscamos nas falas dos entrevistados captar como diferentes práticas discursivas concorreram para fixar sentidos de democracia, no âmbito do sistema educacional, que disputas por hegemonia aí se explicitam, elucidando as que se aproximariam das teorias hegemônicas, bem como das teorias não hegemônicas, com ênfase na apreensão de indícios da democracia radical e plural.

Nesta análise, ênfase é dada à interdiscursividade porque nos permite captar a presença de formações discursivas80 que podem indicar identificação com o discurso fixado pelo MEC sobre o FUNDEF, ele mesmo decorrente de processos articulatórios e, de outro, aquelas formações discursivas que a ele se contrapõem, recompondo-o ou compondo novas práticas discursivas que incorporam novas significações. Estas podem contribuir para a manutenção ou para a reestruturação das relações de poder existentes localmente, a depender dos processos hegemônicos em curso.

O interdiscurso é entendido como uma “complexa configuração interdependente de formações discursivas” (FAIRCLOUGH, 2001, p.95), podendo abranger unidades discursivas de várias dimensões. Nesse sentido, o interdiscurso nos permite enxergar como composições distintas se relacionam, ou seja, como ocorre a negação de um discurso e a afirmação de um novo discurso. Permite-nos, também, identificar os eixos em torno dos quais determinados discursos podem ser inseridos numa mesma formação discursiva.

Considerando que o discurso do MEC corresponde a uma fixação provisória, sendo, por conseguinte, suscetível de reinterpretações nos níveis subnacionais, procuramos identificar nas diversas falas, traços comuns e traços diferentes que aparecem e reaparecem evidenciando dissensos e consensos, apontando rupturas nas formações discursivas.

80 A noção de formação discursiva foi inicialmente utilizada pelo francês Michel Foucault. Segundo

Maingueneau (1997: 51), “O conceito de formação discursiva [...] designa todo o sistema de regras que fundam a unidade de um conjunto de enunciados sócio-historicamente circunscritos: ao falar de formação discursiva, parte-se, pois, do princípio de que, para “uma sociedade, uma localização, um momento definido, só uma parte do dizível é acessível, que esse dizível forma sistema e delimita uma identidade”.

A atenção à interdiscursividade poderá, por conseguinte, evidenciar como as diferentes posições dos sujeitos produzem semelhanças, divergências, conflitos, antagonismos, haja vista que a afirmação de um sujeito está sempre relacionada à afirmação de um outro sujeito que marca posições semelhantes ou diferentes, engendrando práticas articulatórias que poderão integrar diferentes formações discursivas.

O que permite a existência de processos diferenciados na implementação do FUNDEF, em estados e municípios, é a introdução de novos elementos que foram excluídos do discurso no momento de sua fixação pelo MEC, dando lugar à fixação de novos sentidos. Os depoimentos poderão, justamente, evidenciar as rearticulações efetivadas, a partir da inclusão desses novos elementos, entendidos “como qualquer diferença que não seja discursivamente articulada” (LACLAU e MOUFFE, 1985, p. 105), explicitando tendências diferentes, grupos diferentes, com perspectivas diferentes, que podem estar em posição de conflito ou de antagonismo.

Por outro lado, ao levarmos em conta que o discurso é uma prática social, estaremos, na medida do possível, remetendo a análises sobre o contexto sócio- econômico e político da sociedade brasileira, uma vez que o entendimento de uma prática discursiva está intimamente ligada a condicionantes macrossociais que caracterizam a conjuntura na qual tais práticas se inscrevem.

A análise das entrevistas está estruturada em dois eixos em torno dos quais foram aglutinadas as questões trabalhadas que pretenderam cobrir as dimensões do FUNDEF: sua concepção e sua implementação, com vistas a apreender se o mesmo constituiu um espaço de democratização da política educacional brasileira.

5.1- FUNDEF: ENTRE DIFERENTES SIGNIFICADOS “AS FACES DE SUA CONCEPÇÃO”

Partindo-se da premissa de que um discurso é socialmente produzido, podendo ser analisado a partir dos significados que lhe são atribuídos, admitimos a coexistência de heterogeneidades.

Nessa perspectiva, os diferentes sujeitos que falam sobre o FUNDEF transparecem diferenças e semelhanças quanto à concepção que têm a seu respeito porque as próprias posições por eles ocupadas lhes permite atribuir significados que são influenciados pela forma como são produzidas as relações sociais, como se configura a prática social, com suas orientações econômicas, políticas, culturais. Seu discurso é, pois, resultado de processos articulatórios contingentes e passíveis de deslocamentos.

Com efeito, observamos a presença de uma gama de concepções sobre o FUNDEF, a maioria delas convergente, em que pese apresentarem nuances peculiares de entendimento e óticas diferenciadas e outras divergentes, com base em diferenciados recortes de interpretação, apontando visões que, não obstante serem antagônicas ao Fundo, nos permitem obter visão mais ampla do que representou o FUNDEF nas instâncias em estudo e da dinâmica social e política por ele promovida, em especial a sua contribuição para a democratização da educação.

Para um dos estudiosos entrevistados, o FUNDEF tem origem remota na figura de Anísio Teixeira, lá nos idos da década de trinta do século passado, preocupado que

era em conferir racionalidade ao financiamento da educação brasileira, uma vez que a Constituição de 1934 não havia estabelecido um padrão objetivo de referência.

Anísio Teixeira tentou descobrir um algoritmo que pudesse contemplar, de modo racional e disciplinado, a distribuição de recursos destinados à educação. Ponto positivo para o FUNDEF, segundo este estudioso: “disciplinou esta distribuição de recursos, foi capaz de passar de uma vinculação genérica para uma vinculação específica”. Idéia que é ratificada por um conselheiro do FUNDEF da cidade de Contagem: “o FUNDEF veio organizar, sistematizar, disciplinar o uso e, pelo fato de ter disciplinado gerou a obrigatoriedade do investimento segundo a Constituição Federal de 1988”.

Esta é também a visão de um representante do MEC para quem o FUNDEF “é um mecanismo que, compulsoriamente, obriga o cumprimento da legislação, além de possuir aspecto redistributivo, que é justo”. Visão que indica representar o FUNDEF uma racionalidade conferida ao financiamento da educação, conforme historicamente vem sendo defendido pelos movimentos progressistas dos educadores. Sendo uma sistemática de financiamento redistributiva, de caráter contínuo e permanente, está isenta das vontades políticas e das constantes mudanças conjunturais.

Representa, assim, conforme os depoimentos, um mecanismo capaz de concorrer para a prevenção do desvio das verbas educacionais para projetos de interesses político-partidários, ainda prevalecentes em muitas das realidades brasileiras. Prática que colocava em xeque a garantia da aplicação real dos vinte e cinco por cento dos recursos constitucionalmente destinados à educação: “é aí que se encontra o seu grande mérito” (conselheiro - Conde-Paraíba).