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A leitura: da simples descodificação ao diálogo com o imaginário e a abertura para o desenvolvimento das competências da literacia da leitura

2.4. As diferentes direções dos modelos teóricos de leitura

2.4.1. A leitura: da simples descodificação ao diálogo com o imaginário e a abertura para o desenvolvimento das competências da literacia da leitura

Indo ao encontro do que frisámos no início deste capítulo, não podemos deixar de salvaguardar que atualmente é exigida a todos os cidadãos a aquisição e o desenvolvimento das competências da leitura e da escrita. Torna-se, assim, natural que o desenvolvimento destas competências permita a cada indivíduo crescer em sociedade e desenvolver outras proficiências. Mas para falarmos de competências de leitura precisámos entender primeiro este último conceito, falando neste caso concreto da leitura do livro, da leitura do texto escrito.

Tradicionalmente a leitura é encarada, tal como pudemos constatar pelo exposto anteriormente no ponto 2.4., como um processo de codificação/ descodificação e a sua aprendizagem incide, essencialmente, no papel da decifração dos símbolos gráficos. O leitor comporta-se como recetáculo inerte da informação que é facultada pelo texto (Rafael, 1994). Aliás, Prole ilustra bem a conceção deste modelo mais teórico e

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tradicional de leitura, salientando que esta “não era mais do que o acto de transformar, ou converter, uma sequência gráfica numa sequência fónica e o leitor um agente passivo, ou neutral, face a um sentido inerente ao texto ou à intencionalidade do emissor/ escritor”, fazendo com que esta surgisse com uma simples oralização assente numa análise visual (2005, p. 31; Veloso, 2005; Sim-Sim, 2006). Pensar na leitura deste modo é circunscrevê-la a uma leitura meramente “funcional ou de trabalho: uma leitura para… e de sentido único” (Prole, 2005, p. 31).

Considerando esta visão mais tradicionalista de que falamos observe-se a Figura 2.1, na qual se pode constatar que o leitor procura o sentido do texto, que é transposto posteriormente para a sua mente, ou seja, o leitor ia esgravatar no texto o sentido que o autor lhe tinha atribuído (Giasson, 1993).

Fonte: Giasson, 1993, p. 19 Figura 2.1 Visão tradicional da leitura

Todavia, as perspetivas mais recentes consideram como objetivo fulcral da leitura a compreensão, a interpretação dos sentidos, resultando o ato de ler de “um conjunto de estratégias, de operações de processamento complexo”, remetendo-nos para um modelo mais interativo (Prole, 2005; Rafael, 1994, p. 108). Desta forma, compreende-se que a leitura de um determinado texto ou livro está muito para além da mera apreensão das palavras, das frases ou mesmo dos parágrafos. Tal como salientam Santos e Sardinha, ela é “muito mais do que reconhecimento de sons, de sílabas ou palavras num contexto” (2009, p. 115). Neste sentido, a leitura não pode ser vista tão-só como intelectual, uma vez que a parte emocional e afetiva estão muito presentes neste processo (Vale, 1999).

Aliás, a leitura abarca muito mais do que a mera movimentação dos olhos. Na verdade, ler envolve “construir” e “trocar sentidos. E os sentidos são resultado do compartilhamento da visão do mundo do homem” porque quando abrimos um livro estamos a abrir “perspectivas, informações” e a incentivar “sentimentos, sensações e

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criatividade” (Sousa, 2009, p. 53; Pereira & Gardin, 2010, pp. 484-485). Mas, na leitura, não podemos limitar-nos a sentir e a compreender aquilo que está no texto, mas também aquilo que não vemos na mancha que preenche as páginas do livro, aquilo que se esconde nos espaços em branco, o que está entre as palavras e debaixo delas (Castro, 2007). Daí que ela possa suscitar uma infinidade de sentimentos e possa fazer rir ou chorar, criar momentos de ansiedade, reacender lembranças e memórias e/ou muitos outros sentimentos. Na verdade, a

Por tudo isto, cada leitor é diferente do outro, uma vez que a forma como vai compreender o texto vai depender dos seus conhecimentos, de todas as experiências vivenciadas anteriormente, dos seus valores socioculturais e também do lugar que ocupa na sociedade. Não podemos esquecer, naturalmente, a presença do leitor como “coprodutor de texto, na medida em que reúne uma série de efeitos de sentido” (Bellemin-Noel, cit. por Reis & Lopes, 1998, p. 221). Torna-se, assim, evidente que o leitor, de acordo com esta perspetiva, acarreta consigo não só o conhecimento que adquiriu previamente, mas também o seu acervo psicológico, social e moral, transpondo para a leitura as suas vivências e recolhendo dela novos saberes. Perante esta perspetiva, Manguel considera que a leitura é “cumulativa e avança numa progressão geométrica” (1998, p. 32).

Podemos encarar a leitura como uma atividade que se compara ao modo como analisarmos a nossa vida, por isso “ao lermos construímos representações ou interpretações com base nas quais especulamos e formulamos hipóteses sobre o que pode acontecer a seguir, mantendo ou retificando as interpretações do que ficou para trás à luz do que lemos agora”, daí que o sentido do texto não seja unívoco, mas plural (Sousa, 1990, p. 117; Horellou-Lafarge & Segré, 2007).

A leitura não deve ser tão-só um ato mecânico, mas uma tarefa que exige atenção e concentração e um conhecimento prévio para alcançar a compreensão (Cerrillo, leitura, [é] um exercício humano complexo. Não é o consumismo do livro que inverte tendências. Não é esse o sentido primário de ler. A etimologia latina, legere, supõe a capacidade de «colher», mas implica também, e sobretudo, a capacidade de «escolher», o que conduz necessariamente ao exercício de julgar e de intervir – aliás, o termo grego anagnostes (e vale a pena aduzi-lo) que significa «leitor» reporta-se a «reconhecimento» – anagnorisis – e este está relacionado com anagignosco que significa «conhecer a fundo» – por reconhecimento direto, analítico e organizado (Nascimento, 2006, p. 293).

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Larrañaga & Yubero, 2002). Nesta lógica a leitura é “trabalho, é produção de significados, construção colectiva. Leitura é diálogo” (Vale, 1999, p.55). Com efeito, a partir da relação entre a leitura que faz do mundo e a leitura da palavra escrita, o leitor vai enriquecendo os seus conhecimentos e desenvolvendo-se enquanto pessoa humana e cidadão numa determinada sociedade. Daí considerarmos que não é possível interpretar a leitura pura e simplesmente como uma mera descodificação de signos. Segundo o Manifesto da Unesco, a leitura “fornece as condições básicas para a aprendizagem ao longo da vida, para uma tomada de decisão independente e para o desenvolvimento cultural do indivíduo e dos grupos sociais” (Gill, 1997, p. 117).

Na verdade, a memorização mecânica da descrição de um determinado objeto não traduz o conhecimento desse mesmo objeto, ou seja, uma não implica forçosamente a outra (Freire, 2000). Por isso, a leitura de um texto, encarada como pura descrição de um objeto materializa-se com a finalidade de memorização. Desta forma não se pode considerá-la uma leitura real e muito menos se pode retirar dela o conhecimento acerca do objeto a que o texto se refere. A leitura é, assim e antes de mais, um processo cognitivo que abarca a “interacção entre pensamento e linguagem, leitura e texto, conhecimentos linguísticos e extra-linguísticos. É, no fundo, um acto de criação permanente”, em que indivíduo concebe e reproduz o seu sentido do mundo, traçando a sua própria personalidade enquanto leitor (Sardinha & Relvas, 2009, p. 144).

Não podemos esquecer que leitura não é basicamente um “processo visual”, uma vez que quando lemos utilizamos dois tipos de informação, uma “visual e outra não- visual” (Smith, cit. por Ferreiro & Teberosky, 1986, p. 269). A informação visual é exequível pela organização das letras na página impressa ou manuscrita. Contudo, a informação não visual é despertada pelo próprio leitor. A informação não visual primordial é a competência linguística do próprio leitor. Todavia existem outras informações não visuais que influenciam o leitor, mormente o conhecimento acerca do tema, a identificação do suporte material do texto, que nos permite saber algo acerca do texto, mesmo antes de começarmos a lê-lo. Ferreiro e Teberosky acrescentam uma outra informação não visual: a identificação do suporte material do texto (1986).

Estando perante signos escritos que alinham uma mensagem, o leitor coordena o movimento dos olhos para seguir as linhas da esquerda para a direita e este mesmo movimento é interrompido em diversos momentos. Esta atividade percetiva conduz o leitor à atribuição de um determinado significado ao texto escrito. Após a realização do

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mesmo acaba por estabelecer uma comparação entre esse significado e o conjunto de experiências vivenciadas por si anteriormente. Aliás, o leitor “numa postura interactiva, constrói os significados do texto, modifica-o e recria-o” e “produz a leitura e cria o texto a partir do lugar social e histórico que representa” (Vale, 1999, pp. 54-55).

A leitura é um valor em si mesma (Cerrillo, Larrañaga & Yubero 2002). Na verdade, as pessoas necessitam da leitura, não somente no que esta tem de descodificador de símbolos, mas também como um meio para alcançar determinadas destrezas, atitudes, competências, que serão, na realidade, indispensáveis para a sua participação na vida quotidiana e para que cada indivíduo se integre, sem quaisquer problemas, na sociedade da qual faz parte. Daí que ela também permita atualizar disposições sociais (Lahire, 1993).

Sim-Sim refere também, a propósito da leitura, que esta é um “acto complexo” e ao mesmo tempo linguístico, cognitivo, social e afetivo e que o seu âmago se encontra na conjugação do significado entre o leitor e os conhecimentos que este detém acerca de determinado tema que está a ler, entre o texto e o seu autor (2006, p. 8). Desta forma, a qualidade do texto pode ser maior ou menor tendo em conta também a qualidade do leitor que com ele se depara e é a partir do contacto entre cada leitor e cada texto que surge “o sabor da leitura” (Ibidem). Goulemot acrescenta que a leitura é revelação pontual de uma polissemia do texto literário (2003, p. 120).

A leitura leva-nos à descoberta do belo, ao prazer de viajar sem sair do sítio, no tempo e no espaço, informa-nos, faz-nos chorar, rir, pensar e empolgar. De acordo com Gomes, aprender a ler é “conquistar uma voz, desenvolver a capacidade de dialogar com o Outro” (2000, p. 10). Portanto, é essencial propagar essa mesma ideia de

explorar as páginas de um livro que dialogue com cada um de nós e que não se limite a

descrever, que seja capaz de estimular o espírito de descoberta e de interpelação contínuo para que a leitura não seja um ato mecanicista e destituída de qualquer significado (Chauveau, 1993; Foucambert, 1994). Se ela for encarada desta forma, o leitor pode senti-la como algo demasiado árduo que, de certo modo, ainda se vai aguentando, mas não é de forma alguma uma experiência que possa provocar uma determinada fruição. Falando precisamente em prazer, Morão defende uma conceção de leitura não só como instrumento do saber, mas também de deleite, ampliando os horizontes através da fruição de universos reais e imaginários (2010).

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Na realidade, todos precisamos de aprender a ler. Lemos porque é essencial, mas o importante será aprender a deslizar “pela leitura com o gosto e a apetência que criam o prazer em que se enraízam e solidificam as aprendizagens que, como andar de bicicleta, nunca se perdem” (Sim-Sim, 2006, p. 9). Não podemos descurar o facto de que se não praticarmos continuamente o ato de ler, vamos perdendo o jeito, se assim lhe pudermos chamar. Ora, isto acontece com muitas outras coisas, até mesmo andar de bicicleta. Por isso é que este deve ser um ato contínuo, até mesmo para que possamos ir desenvolvendo e aperfeiçoando outras competências porque, como rabisca Pedro Homem de Mello no seu poema Havemos de ir a Viana “quem pára perde-lhe o jeito e morre a todo o momento” (cit. por Sim-Sim, 2006, p. 9).De acordo com Poslaniec, ler é uma operação na qual um determinado leitor tem um papel a desempenhar, ocorrendo um diálogo com o imaginário (2004). No fundo, “saber ler é ter a possibilidade de dispor de um instrumento próprio para adquirir conhecimentos, um saber, informações sobre o mundo e os homens”, porque ler é “efectivamente entrar num universo de signos mortos, que a leitura torna vivos, activos” (Jolibert & Gloton, 1978, pp. 48-49).

A literacia está, portanto, relacionada com a atual definição da noção de leitura, que temos vindo a explanar. Não obstante, independentemente da evolução que os conceitos vão sofrendo, é necessário que aprendamos a compreender o texto escrito, mas isso, como outras atividades do nosso quotidiano, exige esforço. Se a leitura significa esforço, constitui igualmente trabalho, reflexão, investigação e ampliação do conhecimento (Grilo, 2009).

Pensando no caso concreto dos formandos que integram os cursos EFA, não basta assegurar que estes tenham um ambiente copioso em “produtos literácitos”, mas é essencial que, conhecendo os usos sociais da leitura e da escrita, na diversidade dos seus contextos, “tomem consciência das práticas e das oportunidades para a aprendizagem que a sociedade define e valoriza, acedendo ao conhecimento das estruturas ideológicas subjacentes a essas práticas” (Landis, cit. por Azevedo, 2009, p. 9).

Tal como salienta Azevedo, assimilar e saber desenvolver competências leitoras assegura aos seus “detentores a posse de uma chave capaz de os auxiliar na descoberta de domínios maravilhosos onde poderão beneficiar das mais fecundas viagens e encontros” (2009, p. 149). Ao longo da segunda metade do século passado saber ler tornou-se uma necessidade social. A leitura é uma atividade dinâmica em constante evolução, pelo que as maneiras de ler, de compreender, de interpretar variam consoante

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as competências e os investimentos individuais porque, na verdade, os livros não deixam de ser “portas e janelas que se abrem para universos infinitos de possibilidades, onde cada leitor decide o caminho a tomar” (Horellou-Lafarge & Segré, 2007; Taquelim, 2005, p. 91).

2.4.2. O modelo de compreensão da leitura e o papel do leitor, do texto e do

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