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Com as constantes alterações que têm ocorrido na sociedade, tal como nos apercebemos no capítulo anterior, é solicitado, cada vez mais, às pessoas o desenvolvimento de tarefas com graus de complexidade distintos, que implicam, por sua vez, o aperfeiçoamento de diferentes competências. Por isso torna-se necessário que os indivíduos desenvolvam “processos de aprendizagem”, de modo a conseguirem acompanhar as transformações, as complexificações e a cadência constante e acelerada das mudanças que ocorrem no dia a dia porque se tal não sucede tornam-se paulatinamente mais vulneráveis e dependentes (Ávila, 2008, p. 36). De acordo com a OCDE, o investimento no capital humano, com base nos conhecimentos e nas capacidades, é essencial a diferentes níveis, particularmente para a coesão social, para o emprego e para a própria prosperidade económica (OECD, 1998).

C

Eu vivo hoje no mundo dos livros, mas não nasci no mundo dos livros.

(Grilo, 2009 p. 192)

Sou um bom leitor e um mau leitor. Cada vez pior porque cada vez mais difícil de convencer. Pertenço à espécie de leitores que não podem ler livros sem se lerem nos livros. Ou antes, sem que os livros os leiam. Não foi saber, foi a ânsia de possuir conhecimentos enfiando-os como contas do rosário no fio da memória aquilo que procurei e procuro ainda em cada romance, em cada poema, em qualquer coisa escrita ou não escrita. (…) Ler um livro é confrontá-lo connosco. (…)

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Neste sentido, no capítulo anterior fizemos também menção à alfabetização e às alterações que esta foi sofrendo ao longo dos últimos anos, a nível internacional. Também em Portugal foram ocorrendo mutações nesse sentido, decorrentes de todas estas alterações. A alfabetização é encarada tão-só como o ato de ensinar e de aprender a leitura, a escrita e o cálculo, daí a existência da convicção de que a escolarização poderia erradicar o analfabetismo. Não obstante, tornou-se percetível que a escolarização não é sinónimo de alfabetização e que as dificuldades persistiam. Como salienta Lahire, durante muito tempo saber ler e escrever foram sinónimo de decifrar, o simples oralizar, e saber copiar palavras, frases ou pequenos textos (2005, pp. 13-14).

Assim, emerge em Portugal, em 1995, um novo conceito, mais estruturado e alargado que nos remete para um novo tipo de analfabetismo, “dito funcional” principalmente com a concretização de um Estudo Nacional de Literacia  A literacia

em Portugal: resultados de uma pesquisa extensiva e monográfica (Benavente, 1996, p.

4). Fala-se, tal como o próprio nome do estudo o indica, do conceito de literacia, que emerge como a “capacidade de usar competências (ensinadas e aprendidas) de leitura, de escrita e de cálculo” (Benavente, 1995, p.3; 1996, p. 4). Todavia, este novo conceito entre nós era já usado nos Estados Unidos e em Inglaterra.

Tendo em consideração estes dois termos  literacia e alfabetização, importa salientar as suas distinções, até porque esta última está associada a um grau formal de escolaridade. Embora nas últimas décadas se venham realizando estudos em torno da análise destas competências na população adulta e se venha falando acerca destes temas, propomo-nos ao longo deste capítulo, sem nos querermos tornar demasiado enfadonhos ou repetitivos em torno destas temáticas, fazer uma abordagem relativamente a alguns aspetos que podem contribuir para melhor compreendermos o nosso objeto de estudo.

Tentamos antes de mais analisar de que forma estes termos são definidos no

Dicionário de Língua Portuguesa. Pegamos numa edição impressa, mas já com alguns

anos, e deparamo-nos com a alfabetização como “a acção de alfabetizar”, que por sua vez nos remete para um “ensinar o alfabeto, ministrar a instrução primária” (Costa & Melo, 1997, p. 79). Procuramos posteriormente o termo literacia e o mais aproximado que encontramos foi “literato”, mas que não tem propriamente a ver com aquilo que pretendemos e acaba por ser uma expressão demasiado redutora. Optamos, assim, por recorrer às novas tecnologias e fazer uma pesquisa num dicionário on-line. Aí encontramos as duas palavras e com um significado ligeiramente distinto. Apercebemo-

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nos que a alfabetização continua a surgir como a acção de alfabetizar, mas agora também como a acção de propagar o ensino da leitura e associa-a à escolarização e à instrução (Dicionário Priberam). Neste caso, a literacia aparece-nos como a capacidade

de ler e de escrever, mas também de compreender aquilo que é lido (Idem). Está aqui

também patente a entrada da expressão literacia no léxico português, bem como uma clarificação dos vocábulos.

Refletindo, de modo mais aprofundado, em torno destes dois conceitos acima mencionados, apercebemo-nos que enquanto a alfabetização está relacionada com a “condição de ser (ou não) iniciada na língua escrita, independentemente do grau de domínio”, a literacia está associada à capacidade de utilização da língua escrita (Delgado-Martins, Ramalho & Costa, 2000, p. 13). Deste modo, a alfabetização é considerada como um conhecimento adquirido e a literacia um conhecimento processual e amplo. Portanto, a partir do despontar deste novo conceito, começou a falar-se de um novo tipo de analfabetismo que evidencia incapacidades no âmbito da leitura e da escrita e diminui a capacidade de participação na vida social. O que realmente acontece é que as aprendizagens, em muitos casos, são deficientes, mal sedimentadas e pouco utilizadas ao longo da vida (Benavente, 1995; 1996). São precisamente essas aprendizagens deficitárias que fazem com que as pessoas, embora consigam ler e escrever, não consigam concretizar tarefas básicas no seu dia a dia (Walter, 1999; Lahire, 2005).

A propósito deste novo conceito, Pinto refere que a literacia é encarada como um processo que, à semelhança da alfabetização enquanto processo individual, se encontra em construção e sujeita a uma atualização contínua (2002). Esta atualização ocorre tendo em conta a necessidade de acompanhar as mudanças que acontecem continuamente na sociedade. Até porque a identidade de cada indivíduo nunca é definitiva, existe sempre imperfeição, daí que não possa ser assumida sem a participação ativa deste nessa mesma sociedade. Por isso, espera-se que cada indivíduo faça um incessante investimento, dado que este é um processo que implica um permanente envolvimento da sua parte. Daí que se pretenda com este novo conceito “dar conta da posição de cada pessoa num continuum de competências” que se estende as vários níveis, nomeadamente social, profissional, cultural e pessoal e que permite que os indivíduos alcancem os seus propósitos, ampliem os seus conhecimentos, assim

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como o seu potencial e ainda que participem na sociedade (Benavente, 1996, p. 4; Vanhuelle, 2001; UNESCO, 2005a).

Não obstante, a literacia depende não só da posse de habilidades e conhecimentos, mas também da forma como estes são aplicados pelas pessoas no meio ambiente envolvente (Walter, 1999). Isto remete-nos um pouco para o discurso de Freire, que embora nos fale de alfabetização a encara como mais do que um mero domínio mecanizado das técnicas de leitura e de escrita. Nas suas palavras ela é o “domínio dessas técnicas em termos conscientes. É entender o que se lê e escrever o que se entende”, denominando esta situação como um ato de “incorporação”, até porque considera que “alfabetizar é conscientizar”, em que os indivíduos questionam a realidade e procuram mudá-la (1979, p. 72; 2005, p. 9). Portanto, não se trata unicamente de uma memorização mecanizada e automática dos termos, das frases, descurando todo o meio envolvente, mas existe uma “atitude de criação e recriação” (Freire, 1979, p. 72). Portanto, a literacia ou o “letramento”  expressão usada no português do Brasil  abrange uma diversidade de conhecimentos, habilidades, capacidades, valores, usos e funções sociais (Kleiman, 1995; Soares, 2002).

Foi-se assumindo durante algum tempo, de forma errónea, que a aprendizagem da leitura e da escrita que se realizavam na escola habilitava automaticamente qualquer indivíduo para a compreensão e para a produção de qualquer tipo texto, ao longo da vida adulta. É inegável que um indivíduo com autonomia na leitura e na escrita se adapta mais facilmente à sociedade, uma vez que o texto escrito constitui, nos dias de hoje, um elemento fundamental nas relações sociais e profissionais. Por tudo isto, é notória a necessidade premente de desenvolver capacidades mais específicas em relação à leitura e à escrita. Não podemos deter-nos meramente nos níveis básicos. É necessário que cada indivíduo esteja preparado quando se deparar com qualquer tipo de documento, independentemente da situação ou do local, até porque embora não existindo uma correspondência absoluta entre o grau de escolarização e os níveis de literacia dos indivíduos, “não significa que o aumento da escolarização não tenda, também, a aumentar as competências de uso de saberes” (Benavente, 1996, p. 5). Se essas competências não forem aplicadas no dia a dia, nomeadamente no contexto profissional, elas tornam-se “vulneráveis à regressão”, ou seja, se os indivíduos não recorrem a elas no seu quotidiano, em situações e contextos díspares, e do seu percurso de vida elas vão-se esbatendo e mesmo regredindo (Ávila, 2008, p. 87). O conceito de

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literacia veio propagar a ideia de que as capacidades de escrita, de numeracia, das TIC e outras se desenvolvem/perdem. Mediante a entrevista exploratória, o sociólogo Firmino da Costa considera que a literacia envolve uma maior profundidade e sentido.

A literacia não é algo que se obtenha de forma instintiva ou natural, ela implica um empenho constante de todos, com um trabalho de “planificação consciente, de práticas intencionais e sistemáticas, com processos de monitorização constantes, e de avaliação, com um espírito de abertura à inovação” (Azevedo, 2009, p. 3). Tal como é definido no primeiro estudo  ENL concretizado em Portugal em torno da literacia, o conceito remete-nos para as capacidades de “processamento da informação escrita na vida quotidiana”, ou seja, conduz-nos para os usos diários, mais para competências do que propriamente para níveis de escolarização, o que permite assim que se caminhe para uma formação efetiva e completa do indivíduo (Benavente, 1996, p. 22; Azevedo, 2009).

Pensando nos termos opostos aos de alfabetização e literacia, se o analfabetismo faz com que os indivíduos não sejam capazes de identificar as palavras, a iliteracia, embora permita a determinada pessoa ler as palavras e as frases, não permite que estes compreendam o seu significado. Assim, a iliteracia nos adultos acabou por se tornar um problema social, associado à crise laboral e ao aumento do desemprego, o que levou trabalhadores pouco qualificados a procurarem formação, sendo exemplo disso muitos dos indivíduos que procuram a formação de adultos e que pertencem a populações mais descapitalizadas do ponto de vista cultural (Horellou-Lafarge & Segré 2007; Lahire, 2005). Lahire, a propósito do termo que denomina de illetrisme, considera que uma das formas contemporâneas de desigualdade social é precisamente a discrepância face à escrita (2005, p. 15).

Na verdade, definições como a de leitura, que abordamos mais adiante, ou de literacia foram sofrendo mutações ao longo dos tempos, em uníssono com as próprias mudanças da sociedade, da economia e da cultura. Esta crescente aceitação da importância da aprendizagem ao longo da vida acabou por expandir estes conceitos. Daí que as preocupações se tenham alargado e tenhamos começado a encarar a literacia de forma diferente. Atualmente, vivendo num mundo tecnologicamente avançado, espera- se que um número crescente de indivíduos utilize as informações a partir de uma panóplia de materiais, com graus de complexidade distintos, que lhe são apresentados todos os dias (Kirsh, 2001).

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A literacia não pode ser encarada tão-só como um mero instrumento (Pinto, 2002). Ela deve ser vista como um “conjunto de práticas socialmente construídas que envolvem a leitura e a escrita” e devem ser produzidas através de processos sociais mais vastos e responsáveis para fortalecer ou contestar valores e formas de repartição de poder, patentes nos contextos sociais (Soares, 2002, pp. 74-75). Acaba, assim, por ser aquilo que as pessoas fazem com as capacidades de leitura e de escrita, num determinado contexto e a forma como essas capacidades estabelecem uma relação com as necessidades, valores e práticas sociais (Soares, 2002). Existe, portanto, um envolvimento de cada indivíduo no seu contexto social. Não se pode descurar que as práticas de literacia “não decorrem num vácuo social abstracto, mas inscrevem-se sempre em determinados quadros sociais e culturais envolventes” (Benavente, 1996, p. 112). Fernandes considera também que a literacia está associada a um domínio da leitura, da escrita, entre um misto de outros “actos criativos ou analíticos” relacionados com o conhecimento e capacidade numa determinada área de desempenho (2007, p. 19).

A propósito deste contexto, Lytle e Wolfe aludem a quatro sentidos ou metáforas em que inserem a literacia  a literacia como capacidade que engloba as competências básicas de leitura, escrita, matemática; a literacia como tarefa que inclui a habilidade para funcionar eficazmente em contextos de vida; a literacia como prática onde se fala em contextos sociais e culturais na qual se usa a literacia e ainda como reflexão crítica, relacionada com o processo de interpretar o mundo, de ler o mundo (cit. por Walter, 1999; Freire, 2000).

A literacia é, na verdade, um conceito “plural e dinâmico”, daí que a sua definição não tenha um caráter imutável (UNESCO, 2009, p. 18). Fala-se já não só em literacia, mas em literacias ou mesmo “multiliteracias”, mais precisamente em “diferentes níveis de literacia, incutindo assim pluralidade a um termo normalmente usado no singular” (Pinto, 2002, p. 102; Oliveira, 2008). Apesar de as competências de leitura, escrita e numeracia continuarem a ser o sustentáculo da literacia, o conceito, à medida que a sociedade foi sofrendo alterações, foi conseguindo um alcance polissémico, daí falar-se em literacias, uma vez que aqui se reúnem as competências que o indivíduo precisa para o “bom desempenho social” (Azevedo, 2009; Oliveira, 2008, p. 63).

Walter e Vanhulle acabam por ir um pouco ao encontro das palavras de Pinto e de Oliveira quando nos levam a uma reflexão interior em torno das múltiplas literacias, associadas a diferentes domínios da vida, nomeadamente literacia académica, literacia

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informática, literacia científica, literacia visual, literacia tecnológica, literacia cultural e até mesmo a literacia política, entre muitas outras, qualquer uma delas amplamente valorizada e discutida na nossa sociedade (1999; 2001). A literacia é, na verdade, um conceito lato que incorpora e dá realce a uma diversidade de competências, num contexto de um mundo em constante transformação, em que é pedido a cada indivíduo que seja capaz de adquirir e apreender a informação em diferentes suportes e, acima de tudo, compreendê-la, e é precisamente isso que a torna um repto a que todos, de modo coletivo, temos o dever de dar resposta (Coutinho & Azevedo, 2009; Oliveira, 2008; Azevedo, 2007).

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