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São 4 (quatro) as categorias de análise pesquisadas A primeira categoria refere-se às Características do Conhecimento e suas

4.2 CARACTERÍSTICAS DO CONHECIMENTO

4.2.3 Desenvolvimento da perícia do radiologista

Este subsubitem apresenta o desenvolvimento da perícia de radiologistas no domínio do diagnóstico por imagens. Nas organizações estudadas, os radiologistas classificados como especialistas possuíam, pelo menos, 8 anos de trabalho desde sua especialização em diagnóstico por imagens - o que se aproxima à regra dos dez anos de preparação para se tornar especialista, proposta no estudo de Ericsson e Lehmann (1996). Porém, esse período de tempo não deve ser considerado como definitivo, mas foi suficiente para a amostra desse estudo contemplar os critérios selecionados para os propósitos desta pesquisa. É importante salientar que mesmo com muito tempo de experiência, nem todo radiologista consegue alcançar a perícia. Compreender as diferenças entre novatos e especialistas auxiliou a pesquisadora a perceber a forma de evolução do radiologista até conquistar a perícia. O Quadro 21 apresenta 5 (cinco) estágios evolutivos, seu detalhamento e suas principais características. A criação deste quadro iniciou durante as observações, onde a pesquisadora percebeu três estágios evolutivos do radiologista (dificuldade para tomada de decisão, facilidade em aplicar os conhecimentos para tomar decisões e tomada de decisão segura). Durante as entrevistas, principalmente ao responderem as perguntas 8 e 9 (Apêndice C), os radiologistas forneceram subsídios para que a pesquisadora ampliasse o entendimento referente a esse processo de tomada de decisão. A reflexão do conteúdo das entrevistas permitiu então que esses estágios pudessem ser expandidos para que a insegurança e a decisão intuitiva fossem também contempladas.

Quadro 21 - 5 (cinco) estágios evolutivos do radiologista

Fonte: Reflexões da autora baseada nas observações e entrevistas (2017). No primeiro estágio “dificuldade para tomada de decisão”, o radiologista está se familiarizando com imagens visuais em formato 2D, como raios X, mamografia e densitometria óssea. Necessita de maior tempo para associar as características percebidas na imagem com o conhecimento clínico que detém, pois suas experiências ainda são rasas. Não possui habilidade para utilizar todo o potencial que a tecnologia lhe oferece, como utilizar o sistema de evidenciar aspectos da imagem. Pode não se atentar às informações contidas na ficha do paciente, motivado por alguma pista na imagem que lhe remete uma certa patologia conhecida.

No segundo estágio apresenta “maior facilidade para aplicar seus conhecimentos”, já é capaz de reconhecer e resolver imagens em 2D e algumas modalidades 3D, como TC e RM, com maior agilidade. Devido ao maior número de experiências, aplica melhor suas regras conhecidas e identifica a teoria que possui em seus casos reais de trabalho. Passa a conhecer diferentes caminhos para resolver problemas; em função disso, desenvolve um raciocínio mais complexo e usa a tecnologia a seu favor, realçando as alterações percebidas na imagem por meio de filtros e da alteração do contraste visual. Reconhece o que é relevante para ser habilidoso e passa a direcionar seus esforços nesses pontos.

Já no terceiro estágio o radiologista apresenta “insegurança se a decisão tomada é a melhor”, apesar de apresentar rápido desempenho, em modalidades 2D e 3D, ainda tem dúvidas sobre sua escolha. Seu

maior número de experiências permite determinar o que realmente é importante na imagem, daquilo que é normal. Passa a criar suas próprias regras quando percebe que as regras conhecidas não funcionam.

No quarto estágio “tomada de decisão segura”, o radiologista detém mais experiência, o que o faz mudar suas regras de comportamento, pois utiliza seus erros e acertos para reconfigurar o que sabe. O repertório maior de experiências lhe garante segurança na tomada de decisão.Finalmente, no quinto estágio, o radiologista possui uma “tomada de decisão intuitiva em alguns casos”, fundamentada na sua compreensão tácita profunda. Tem uma visão integrada da imagem, percebe os desvios no padrão normal, entende o motivo de algo estar acontecendo e sabe como fazer, devido a sua vasta base de conhecimentos e experiências vivenciadas. Não fica mais preso a regras e isso lhe permite a compreensão e assimilação de novos padrões visuais de imagens complexas 2D e 3D, com maior rapidez e eficiência. Sendo que muitas atividades preliminares ao diagnóstico se tornaram automáticas e já não demandam reflexão. Dessa forma, o radiologista se move diretamente a um patamar mais complexo de pensamento e pode refletir criticamente sobre os aspectos identificados como relevantes na imagem - o que lhe permite distinguir diferenças tênues, graças a seu olho treinado.

Os 5 (cinco) estágios apresentados indicam que o desenvolvimento da perícia do radiologista é conquistado por uma habilidade interpretativa (reconhecimento de padrões), em que as experiências vivenciadas são essenciais para sua progressão. Alguns dos elementos identificados que auxiliam o radiologista a progredir nesses cinco estágios são: boa base de conhecimento, muito tempo de prática orientada, interações na sala de leitura, diagnósticos desafiadores, feedback, reflexão, discussões em encontros de grupo e mentoria. A forma como cada um desses elementos contribui para a evolução do radiologista será descrita a seguir.

Durante as entrevistas, foi possível confirmar que todos os entrevistados acreditam que para ser um bom radiologista e ter chances de alcançar o domínio da perícia, é preciso ter uma “boa base de conhecimento” aliada com “muito tempo de prática orientada”, conforme explica um entrevistado:

“Desde a faculdade a gente está sempre estudando, se você não tem uma base boa, esquece, se você não é um bom médico de base não vai ser um bom radiologista. Tem que estar

sempre indo atrás, a gente sempre tem discussão de casos, então tem que saber as doenças, as variações anatômicas, o que é normal, o que não é, o que a doença causa ou não causa, quais são as clínicas, o que é a imagem, saber interpretar a imagem, o que é o pic full, que são as imagens formadas que podem te enganar, mas com o passar dos anos vai ficando mais fácil de ver essas coisas e a gente vai aprendendo a focar no que realmente é importante, quanto mais você estuda e pratica mais você enxerga.” O2E6

Porém, dominar um conhecimento específico não é suficiente para manter a posição de especialista, mas sim a explicitação constante de regras tácitas, hierarquias, posturas e formas de agir (PACHARAPHA; RACTHAM, 2012; KLEIN, 2015).

O produto tangível da forma de agir do radiologista é o relatório com a conclusão diagnóstica, reflexo do conhecimento tácito conquistado com o passar dos anos de trabalho, enraizado nas suas experiências, crenças e vivências. Esse relatório possui um formato padrão que inclui as informações do paciente, as técnicas descobertas e a impressão diagnóstica. Foi observado que os especialistas possuem um estilo de relato que equilibra a brevidade com relevância clínica, habilidade e experiência. Dessa forma, a impressão diagnóstica da imagem é uma forma de denotar a reputação dos radiologistas, uma vez que outros atores podem reconhecer a habilidade demonstrada por quem realizou a interpretação de uma imagem específica.

Sendo assim, é por meio das “interações na sala de leitura” que os radiologistas são reconhecidos entre seus pares, de acordo com a competência demonstrada durante a aplicação de seus conhecimentos.

São essas interações que acontecem no ambiente da sala de laudos e a dificuldade dos diagnósticos realizados cria um contexto propício ao aprimoramento do conhecimento, conforme relata um radiologista:

“Se você não está em uma empresa que trabalha com tecnologia de ponta e que lida rotineiramente com casos complexos não vai conseguir melhorar. Ficar trabalhando só com casos simples por vários anos não vai ajudar a entender a fundo a radiologia, eu tive que sair do último lugar que trabalhava justamente porque vi que não iria

crescer como esperava, eu não tinha desafios, aqui sempre estamos discutindo casos diversos, temos um feedback sobre nosso trabalho, isso faz a diferença.” O1E6

Essa fala demonstra como alguns ambientes de trabalho são propícios ao desenvolvimento daperícia, pois possuem ricas oportunidades de aprendizagem. A perícia é, então, manifestada por meio de discussões; é nutrida e promovida pelos diálogos do grupo - não se trata de uma busca individual e intelectual, mas coletiva.

Os ambientes favoráveis referidos pelo entrevistado caracterizam- se pelos seguintes aspectos: “casos desafiadores”, fornecimento de “feedback” pelos pares, oportunidade de “reflexão” e articulação acerca das imagens diagnósticas durante discussões, conforme a fala:

“Durante o caminho, você tem que ter parecer sobre seu trabalho, seja individualmente por um colega mais próximo e mais experiente ou por meio de discussões coletivas do grupo que te permitem expressar o que sabes, do contrário, fica mais complicado saber o que poderias estar fazendo melhor. Na residência a gente tinha uma avaliação e orientação individual sobre nosso trabalho, era fantástico para te ajudar a melhorar” O3E5

O uso do feedback como mecanismo de instrução foi comentado por vários radiologistas. O retorno sobre o trabalho do radiologista poderia ser formal ou informal. A prática formal de revisão por pares foi uma estratégia que se destacou por fornecer um feedback detalhado periodicamente. Os “encontros de grupo” também forneciam um retorno de qualidade, por envolver todos os membros do grupo. Quanto às formas informais de feedback, estavam as conversas que ocorriam frequentemente no local de trabalho, e podiam ser individuais ou coletivas e algumas relações de “mentoria”, que emergiam naturalmente. Foi possível perceber, durante as observações, que a prática de um radiologista especialista orientar um novato era algo que não tinha relação com as normas da organização, dependia de o especialista, voluntariamente, oferecer esse tipo de ajuda.

Esse tipo de relações de mentoria entre novato e especialista foi identificado pontualmente nas organizações, embora nenhuma delas tivesse essa prática instituída. Porém, quando questionados sobre essa

prática, os líderes afirmaram que as organizações não incentivavam seus radiologistas a fornecerem esse tipo de apoio aos novatos, apesar de considerarem fundamental para o desenvolvimento dos mesmos, conforme explica um líder:

“A gente percebe que existem algumas relações desse tipo aqui, apesar de não termos nenhum tipo de norma, ou procedimento que incentive diretamente essa prática. Porque é complicado você forçar essas relações, já temos muitas atividades. A gente percebe a evolução de quem tem um padrinho, mas isso só funciona quando o desejo de ensinar realmente parte de quem tem o conhecimento.” O1E1

Geralmente esse apadrinhamento ocorria quando existia algum tipo de empatia, admiração, demonstração de esforço, ou mesmo quando o especialista, por algum motivo, se identificava com o novato. Porém, ser especialista não garante ao radiologista ter habilidades para compartilhar o que sabe, conforme justificam algumas falas:

“Ser um radiologista especialista, não garante que o indivíduo também terá sucesso para ensinar, por exemplo, temos um cardio aqui, ele é espetacular, mas ele não é bom para passar essa sabedoria, tem dificuldade de representar e formular de uma maneira compreensível o que pretende explicar.” O3E6

“Você não pode ser forçado a ensinar o que sabe para alguém, isso só flui bem se esse desejo nascer em você, não sou professor, mas com o tempo você vê que tem uns caras que te chamam atenção, interessados, sempre dispostos a melhorar, nesses casos é gratificante ensinar e ver que bons resultados decorrentes de seus conselhos.” O1E11

“Primeiro você tem que ter uma certa empatia e o cara tem que ser merecedor de bons conselhos, eu acompanho um colega aqui faz 3 anos, desde que ele entrou é impressionante a mudança, ele entrou junto com mais 3 e hoje sem dúvida é o melhor dos três, eu me via nele, o cara tinha potência sem controle, como eu quando comecei minha carreira e isso acaba diminuindo bons resultados, hoje

temos uma relação de confidencialidade, é bacana e eu continuo ajudando ele a crescer, a diferença é que agora também aprendo com ele.” O1E12 “Esse pessoal novo é fogo, porque eles são muito ansiosos, querem fazer tudo rápido para ganhar mais e mais dinheiro, mas não é assim que funciona, aí quando tu percebe que alguém realmente está interessado em melhorar a qualidade do trabalho, isso te faz querer ajudar e passar de colega a orientador, aqui na clínica isso não é uma obrigação, mas claro que a liderança tenta incentivar esse tipo de relação, sem dúvida alguém conduzindo de perto traz resultados mais rápidos, acho que a revisão dos laudos acaba até sendo uma forma de tentar incentivar esse aprendizado, mas só funciona se você realmente estiver a fim.” O1E10

Dessa forma, essa prática de mentoria é um ato voluntário que deve partir do detentor de conhecimento. A criação de relações de mentoria, hierarquias, relações de valor e poder, caracterizam as melhores formas de pensar, falar e fazer as coisas.

Em certos momentos, observou-se que durante a leitura das imagens os radiologistas menos experientes tendem a escutar mais e falar menos do que aqueles mais experientes. Da mesma forma, alguns deles são mais procurados para discussão, enquanto outros são evitados.

Porém, ser um radiologista referência em uma subespecialidade não significa que o radiologista será procurado para resolver diagnósticos de outras subespecialidades. Foi percebido que os radiologistas que praticaram por anos sempre no mesmo domínio, como diagnóstico de cabeça e pescoço, apresentavam maior dificuldade de atuar em outros domínios, por exemplo, em diagnóstico de mamografia, pois, com o passar do tempo, alguns conhecimentos, por falta de uso, vão sendo esquecidos, conforme a fala do entrevistado:

“Pra mim como eu não faço muita ginecologia e músculo esquelético faz muito tempo, se eu for fazer um laudo nessas áreas é óbvio que eu vou ter mais dificuldade de ver, mas é porque eu estou distante daquele dia a dia, com o tempo tu vai esquecendo as coisas que aprendeu se não estiver mais usando.” O2E4

A falta de utilização de conhecimentos aprendidos, referentes a outros domínios, acaba por fazer com que o radiologista os esqueça. De maneira geral, especialistas percebem e compreendem mais facilmente problemas dentro de seu domínio com maior profundidade, demonstram habilidade superior para o reconhecimento de padrões e são mais confiáveis na percepção eficaz de grande quantidade de informação visual, conseguem estruturar informações clínicas (sinais e sintomas do paciente) para a distinção entre detalhes relevantes e superficiais.

Compreender a forma como o radiologista evolui possibilitou que a pesquisadora identificasse seis características comuns sobre os especialistas, baseadas na análise das entrevistas, conforme apresenta o Quadro 22.

Quadro 22 - Características de radiologistas especialistas

Características Fala do entrevistado