• Nenhum resultado encontrado

DEVE O STF REVER OS TERMOS DA DELAÇÃO DOS IRMÃOS BATISTA?

No documento O Supremo Tribunal Criminal: o supremo em 2017 (páginas 183-188)

Rafael Mafei 30 | 05 | 2017

Por que razão haveria agora a necessidade de se homologar a homologação? Há cheiro de casuísmo no ar.

Há muitos debates suscitados pela colaboração premiada – “dela- ção” – dos irmãos Batista. Um deles levou dois ministros do Supremo a manifestações públicas divergentes nos últimos dias. Seria possível que algum órgão colegiado do tribunal revisse os termos do acordo homologado pelo ministro relator, em face de interesses públicos presumidamente lesados?

A polêmica surgiu em razão da difundida percepção de que, para os irmãos Batista, o crime teria compensado; e que a Justiça, pela integridade moral que fundamenta sua autoridade, não poderia se prestar ao papel de chancelar um crime perfeito. Perfeito e lucrativo, dirão seus críticos: “os colaboradores ganharam os benefícios máximos previstos pela lei, e ainda parecem ter lucrado com a própria colabo- ração”. Valeram-se do conhecimento inerente à posição de delatores para, antecipando as reações do mercado, reposicionar investimentos e protegerem-se tanto da alta do dólar quanto da queda das ações de seu grupo empresarial.

Diante disso, Gilmar Mendes sugeriu que o Plenário poderia rever os termos do acordo, porque o Plenário, e não o relator, seria “o juiz” do caso. Luís Roberto Barroso, por sua vez, defendeu a validade do pacto homologado pelo ministro Fachin, o relator, a quem vê cercado de pressões. Não entrarei nos méritos sobre a vantagem ou desvanta-

O SUPREMO EM 2017

Sob essa luz, duas questões surgem centrais à polêmica. Uma pri- meira, mais específica, diz respeito à competência do relator para homologar, sem necessidade de chancela subsequente, a colaboração premiada nos processos de competência originária de tribunais. A segunda, mais ampla, toca a validade de uma colaboração que, por demais leniente com os beneficiados, seja vista por alguns como contrária ao interesse público. Por ambos os pontos de vista, avalio que a homologação de Fachin deve ser mantida, gostemos ou não dos seus termos.

A Lei 12.850/2013, que prevê, nos artigos 4º e seguintes, a co- laboração premiada, fala o tempo todo em “juiz”. Sua redação foi pensada para o primeiro grau, quando as decisões cabem a magistrados ou magistradas singulares. Nos casos de competência originária de tribunais, surge a particularidade de que as causas são julgadas por órgãos colegiados. Não há “o juiz”, há “juízes” – neste caso, ministras e ministros. Se a competência para julgar é necessariamente colegiada, por que seria individual a homolo- gação do acordo? Essa é a semente da dúvida lançada por Gilmar Mendes na semana passada.

Sabendo que a situação não foi particularmente disciplinada pela lei da colaboração premiada, devemos explorar os precedentes exis- tentes, analogias aplicáveis e o espírito da lei. Dos precedentes po- demos extrair o entendimento de que a competência exclusiva do relator para a homologação das colaborações sempre foi reconhecida pelo Supremo. Diversas foram as colaborações homologadas pelo ex-ministro Teori Zavascki até aqui, como também por seu sucessor na relatoria da Lava Jato – Edson Fachin. Suas competências nem por isso foram questionadas. Jamais havia se externado a percepção de que elas estavam sujeitas ao referendo das demais ministras e mi- nistros. Por que razão haveria agora a necessidade de se homologar a homologação? Há cheiro de casuísmo no ar.

Quanto às analogias, é preciso lembrar que já há poderes de rela- toria que não se sujeitam a referendo colegiado. Alguns deles vêm expressos taxativamente no Regimento Interno do Supremo. É o caso da competência irrecorrível do relator para admitir manifestações de terceiros em certas situações processuais. É um poder que autoriza o relator a dizer, em caráter absoluto, quem tem voz e vez em discussões de grande relevância social, que serão resolvidas definitivamente pelo tribunal. Não é pouco.

O SUPREMO TRIBUNAL CRIMINAL

A quem ainda assim objetar que a questão nesses casos é de im- portância menor, vale lembrar as situações em que o Supremo tem reconhecido, na prática, enormes poderes de fato às ministras e aos ministros relatores, sem se importar com sua necessária homologação subsequente. É o caso de variadas medidas de natureza cautelar, mui- tas tomadas no mesmo contexto amplo da Lava Jato. Tais medidas, que produzem efeitos de grande impacto, muitas vezes não são levadas à confirmação do órgão colegiado competente, ao arrepio do que manda o regimento do tribunal. Dormitam nas gavetas dos gabinetes dos relatores até que percam o objeto, ou até que consolidem situações fáticas de difícil reversão. Como exemplos, recordemos da liminar de Gilmar Mendes que impediu a posse de Lula como ministro; e da outra, de Luiz Fux, vigente há quase três anos e com custo estimado de R$ 1,5 bilhão aos cofres públicos, que garante auxílio moradia a todos os magistrados do Brasil.

Sem minimizar a importância da colegialidade no tribunal, essas situações sugerem que a repentina crise de espírito colegiado do mi- nistro Gilmar Mendes deve ser vista com desconfiança, no mínimo. O Supremo vive em grande parte à base de decisões individuais. A governança dos poderes individuais dos ministros é diminuta, pela leni- ência deles próprios uns em relação aos outros. Há cheiro de casuísmo na crítica à situação específica dos irmãos Batista, definitivamente.

Por fim, quanto ao espírito da lei, é necessário ter em mente que a colaboração com as autoridades em sede de investigação criminosa tem particularidades que parecem, à primeira vista, justificar certas exceções. A garantia da autoridade do acordo homologado, que passa pelo crivo de duas autoridades máximas – o PGR e um ministro do Supremo – que o controlam seja quanto a suas formalidades, seja quanto ao cálculo de custo-benefício da colaboração oferecida, é necessária à eficácia do instituto no âmbito dos tribunais superiores.

Juridicamente, a homologação judicial confere atributos de ato jurídico perfeito ao acordo. Parece indispensável, à lógica da lei, que assim ele seja tratado desde a chancela da relatoria. Quem aceitará se expor à colaboração, em casos futuros, sabendo que os termos ajustados estarão submetidos aos imponderáveis órgãos colegiados

O SUPREMO EM 2017

resse no horizonte de maior alcance: quanta gente na linha de fogo iminente das investigações da Lava Jato não estará torcendo por uma decisão que esvazie a autoridade do relator e jogue incertezas sobre futuras colaborações, desestimulando os delatores de amanhã? Eis aí uma forma de minar futuras colaborações a pretexto da defesa do interesse público neste caso presente.

Os termos do acordo por certo são criticáveis. É possível julgá-lo um mau acordo, sem prejuízo do reconhecimento da importância da colaboração dada em contrapartida. A mim parece especialmente indevida a extensão do benefício máximo previsto na Lei 12.850/13 a quem, como Joesley Batista, teria posição de liderança em organização criminosa, incidindo na vedação de seu art. 4º, § 4º, I. Mas ainda que se entenda haver aí um erro, em todo sistema é necessário que haja alguém com o poder de errar por último. Na esfera penal, a titula- ridade exclusiva da ação pública, detida pelo Ministério Público, já constitui situação de atribuição de grande responsabilidade exclusiva a certos agentes estatais, as promotoras e os promotores de justiça. A elas e eles, apenas, cabe a decisão de denunciar alguém, e por quais crimes – ou de não fazê-lo. Essa vontade não pode ser desempenhada por qualquer outro agente público. No caso da colaboração, a decisão do membro do MP é mitigada, porque confrontada com as posições da defesa do colaborador, que igualmente avalia sua legalidade. Em seguida, é submetida ao crivo adicional de um magistrado, que poderá ou não homologá-la. Na hipótese concreta dos irmãos Batista, tive- mos o mais elevado membro do Ministério Público Federal, o PGR, cuja proposta de acordo, avaliada em sua legalidade também pela defesa dos beneficiários, foi avaliada por um ministro do Supremo. São, portanto, duas autoridades no cume das instituições estatais que integram, acompanhadas por um agente externo versado nos termos da lei – o advogado. Por que não bastaria? Não parece haver nada de essencialmente irrazoável no desenho de governança da colaboração nesses casos – gostemos ou não, insisto, dos termos específicos do acordo da vez.

E, finalmente, é errado assumir que os ditames da ética pública repelem o respeito à colaboração excessivamente generosa que tenha sido homologada. No âmbito dos pactos e das promessas, a ética e a justiça estão centradas no dever de respeitá-los e fazê-los cumprir. Se ao Estado for dado descumprir promessa da máxima autoridade do Ministério Público, referendada ademais por um juiz do Supremo

O SUPREMO TRIBUNAL CRIMINAL

Tribunal Federal, de quem poderemos cobrar integridade em face da Justiça?

A prestação de contas dos irmãos Batista com a lei não termina com a homologação de seu acordo de colaboração. Suas empresas passarão por escrutínio profundo. Em outros âmbitos, como a CVM, as operações com ações e dólares às vésperas da divulgação do acordo já estão sendo questionadas. Apurados outros delitos nesse mesmo contexto, como um eventual crime de insider trading, seus benefícios podem ser cassados, sem prejuízo do aproveitamento das provas que entregaram ao Ministério Público. Tenho dúvidas de que suas vidas serão o céu de brigadeiro que alguns têm pintado: não devemos nos espantar se, ao contrário, castigos de diversos tipos – jurídicos, eco- nômicos, reputacionais – vierem de diversas outras frentes.

A Justiça provavelmente lhes trará outras surpresas. Elas só não poderão vir de seu acordo de colaboração. Ao menos não sob funda- mento da falta de autoridade do relator para homologá-la.

43

A DEFESA DE ROCHA LOURES TEM RAZÃO

No documento O Supremo Tribunal Criminal: o supremo em 2017 (páginas 183-188)