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CAPÍTULO 1: EDUCAÇÃO EM DESIGN: PRESSUPOSTOS E BASES TEÓRICAS

1.4 O diálogo em Paulo Freire

A relação entre professor e aluno, em nossa sociedade, é uma relação de poder, como bem coloca Guevara-Niebla (Paulo Freire on Higher Education) em seu diálogo com Paulo Freire. De acordo com o autor, esse poder não se expressa somente na coerção materializada, mas se exprime de forma subjetiva, como um consenso de todos os membros da sociedade sobre aquilo que o professor deve ou não deve ser/fazer.

Isso significa que, em nossa forma de organização, na matriz cultural, pintamos a imagem do professor com determinado papel, às vezes extremamente poderoso e dogmático na sua fala, ou em algumas situações negligente ou mal preparado, pelo que o aluno não aprendeu e devia ter aprendido. Essas visões variam de acordo com os interesses de quem as exprime.

Quando Paulo Freire acentua o diálogo, ele pretende expor a subjetividade que é própria de ser professor, ser educador. Dessa forma, ele não nega que o professor possa ter uma intenção autoritária ou que possa também ser negligente. Ele evidencia que a prática pedagógica, onde existe uma ação deliberada de se ensinar, é política por si. O que se escolhe ensinar, o que se omite

ao ensinar e a forma como se ensina, estando o professor consciente ou não do que escolheu, é política.

Ao mesmo tempo, o professor não possui um poder completo sobre aquilo que o aluno irá aprender, já que cada aluno terá diferentes formas de ver a vida. Esse aluno, para Paulo Freire, também tem o direito de participar de forma ativa do seu próprio processo de aprendizagem. Essa participação só acontece quando o professor está disposto a também se abrir para a aprendizagem.

Dessa forma, quando se assume o diálogo na prática educativa, o professor também toma uma decisão política. E quando vivemos em uma sociedade onde a norma é a replicação de padrões, essa decisão do professor precisa ser consciente, já que as estruturas institucionais cobram muitas vezes o oposto disso.

(...) é muito simples realizar a tarefa estabelecida pelo sistema. Reproduzir a ideologia dominante é a mesma coisa que nadar a favor da corrente; assumir o papel de contra atacar a reprodução da ideologia dominante é nadar contra a corrente (FREIRE, p. 32, 1994, tradução nossa).

Gómez destaca que a filosofia de Paulo Freire é

um convite a voltar o olhar para o intraescolar sem deixar de advertir que a escola se enquadra em um contexto político, económico, social, cultural e ideológico que a condiciona, ainda que não a determine (GÓMEZ, p. 63, tradução nossa).

A escolha por abordar as dinâmicas da prática educativa à luz do diálogo se dá devido à centralidade que o conceito tem na obra de Paulo Freire. Galli (2015), ao fazer uma análise da abordagem do assunto pelo autor em duas de suas obras, distantes 20 anos entre si, percebe que o conceito de diálogo passa de um dos elementos na proposta educativa de Paulo Freire, para se tornar o centro e a condição para que todos os outros elementos que aborda aconteçam. O diálogo também é condição para uma transformação efetiva da sociedade, já que

as mudanças estruturais têm de ocorrer a partir da unidade na diversidade. Esta deve ser incorporada nas relações dialógicas, uma vez que as diferenças presentes na sociedade, que se relacionam de forma desigual, precisam dialogar a fim de buscar transformação que atenda a todos os grupos. Assim, a partir do diálogo entre as diferenças é possível a transformação social (GALLI, 2015, p. 140).

Para compreender de que forma o diálogo se apresenta na educação, é necessário compreender a concepção de diálogo colocada por Paulo Freire e sua visão da atividade docente. A discussão feita aqui é resultado do perscrutamento em várias obras de Paulo Freire5, sendo as principais Pedagogia do Oprimido e Pedagogia da Autonomia.

O sujeito, para Paulo Freire é histórico-social e por isso está no mundo, assim como está com o mundo em constante interação (Fig. 3).

Os homens, [...] ao terem consciência de sua atividade e do mundo em que estão, ao atuarem em função de finalidades que propõem e se propõem, ao terem o ponto de decisão de sua busca em si e em suas relações com mundo, e com os outros, ao impregnarem o mundo de sua presença criadora através da transformação que realizam nele, na medida em que dele podem separar-se e, separando-se, podem com ele ficar, os homens [...] não somente vivem, mas existem, e sua existência é histórica (p. 124, 2019).

5 Outras obras analisadas: Partir da Infância: diálogos sobre educação (2014), Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido (1992).

Figura 3: Esquema Sujeito Histórico-Social (Paulo Freire).

Fonte: Autora

Essa percepção do educador de estar com o mundo, traz em si mesma a própria dialogicidade, já que o processo de viver não acontece em monólogo, sozinho, mas na interação com o mundo e com outros que fazem parte do mundo. Esse conceito, para Freire, é a base do aprendizado e da perspectiva de transformação da realidade. “Estar com o mundo resulta de sua abertura à realidade, que o faz ser o ente de relações que é” (FREIRE, 1967, p. 39). Essa realidade é construída na relação dialética entre objetividade e subjetividade.

Para mim, a realidade concreta é algo mais que fatos ou dados tomados mais ou menos em si mesmos. Ela é todos esses fatos e todos esses dados e mais a percepção que deles esteja tendo a população neles envolvida. Assim, a realidade concreta se dá a mim na relação dialética entre objetividade e subjetividade (Paulo Freire, 1985, apud Galli, 2015, p. 35).

Dentro desta dialética e na “busca por si”, compreende-se que o diálogo do ser humano com o mundo resulta também em uma autopercepção. Quanto mais o sujeito se percebe, maior a consciência do seu inacabamento, admitindo que o processo de aprendizado é permanente. A inconclusão do ser é central para a compreensão do diálogo em Paulo Freire, já que é a percepção de si mesmo como ser inacabado que permite a abertura ao outro. Se existo rígido, como uma pedra, não há permeabilidade àquilo que vem ao meu encontro e não há movimento necessário à essa dialética.

se minha inconclusão, de que sou consciente, atesta, de um lado, minha ignorância, me abre, de outro, o caminho para conhecer. Me sinto seguro porque não há razão para me envergonhar por desconhecer algo (1994, p. 135).

A inconclusão é o que coloca o sujeito em um movimento de constante busca necessária ao aprendizado. Para aprender é necessário um “outro”, que ensina e, ao mesmo tempo, também está aprendendo. A aprendizagem através do diálogo exige a existência de um outro em uma relação horizontal comigo.

se me sinto superior ao diferente, não importa quem seja, recuso-me

escutá-lo ou escutá-la. O diferente não é o outro a merecer respeito é um isto ou aquilo, destratável ou desprezível (1994, p. 120).

Essa relação assume a diferença entre ambos, ao mesmo tempo que reconhece a igualdade por serem ambos sujeitos. O encontro de diferentes é consolidado através do movimento entre a fala e a escuta.

Somente quem escuta paciente e criticamente o outro, fala com ele. Mesmo que, em certas condições, precise de falar a ele. O que jamais faz quem aprende a escutar para poder falar com é falar impositivamente. Até quando, necessariamente, fala contra posições ou concepções do outro, fala com ele como sujeito da escuta de sua fala crítica e não como objeto de seu discurso (1994, p. 113).

Paulo Freire entende que o diálogo do sujeito com o mundo e com o outro é um processo permanente em que se baseia a educação. Esse encontro entre dois sujeitos é chamado de intersubjetividade, que só acontece através do diálogo em torno de um objeto que mediatiza esse processo. Se o processo dialógico é horizontal, da mesma forma, a educação verdadeira só acontece nessa horizontalidade, onde educador e educando podem se encontrar em diálogo.

Figura 4: Esquema Educação como processo permanente (Paulo Freire).

Fonte: Autora

A educação baseada no diálogo acontece em volta de um objeto de estudo que é colocado na sala de aula. A relação entre educador e educando se dá em volta desse objeto, que mediatiza essa relação, e que necessita ser curiosa (fig. 4). Para Paulo Freire, a educação dialógica não é passiva, em que o professor ensina e o aluno recebe o conteúdo. Ambos precisam estar em uma constante busca, pesquisa e indagação. O espírito curioso que se incorpora na pergunta é base para o diálogo, já que, se desconheço, procuro as informações com o outro, questiono e também critico.

A criticidade é indispensável ao diálogo, por ser fruto de uma reflexão a respeito do objeto de estudo e sobre si mesmo, suas crenças e valores. Quanto mais o sujeito reflete, mais crítico vai se tornando. Dessa forma, é necessário tanto

um espírito crítico do educando, quanto do educador, em ambos os seus lugares. Ao professor, é necessário instigar o aluno a produzir sua própria compreensão sobre o objeto, ao invés de receber a compreensão pronta de si, aceitando-a como uma leitura absoluta da realidade. Os educandos irão construir esse pensamento crítico à medida que se sentem desafiados por um processo educativo que constantemente incita a curiosidade. O professor que estimula a criticidade, testemunha, na sua atuação, o seu comprometimento com o diálogo, e a consciência do seu inacabamento e do mundo como possibilidade a ser transformada.

O pensamento crítico propicia o tensionamento saudável entre ideias e paradigmas que são antagônicos, percebendo os problemas em sua relação com outros problemas, em um plano de totalidade. Paulo Freire chama esse processo de problematização, que acontece através do constante questionamento das ideias colocadas para reflexão. Nessa relação, o educador compreende que a leitura de mundo do aluno (Fig. 5) é o ponto de partida para a discussão em torno de qualquer assunto e o professor constantemente exercita uma “andarilhagem” entre aquilo que ele sabe e o nível de conhecimento dos alunos, desafiando-os a abrir cada vez mais sua percepção de mundo.

Quanto mais educador e educando refletem sobre a situação do mundo ligada ao objeto de estudo, e quanto mais compreende sua relação com uma totalidade, mais crítico vai se tornando, aumentando também sua reflexão sobre o mundo e sobre si mesmo. Nesse exercício, cria-se gradualmente uma relação de confiança entre aluno e professor. Ambos se tornam cada vez mais permeáveis a novas experiências e novos conhecimentos.

Figura 5: Esquema Reflexão Educador e Educando (Paulo Freire).

Fonte: Autora

Essa busca curiosa pelo conhecimento é o que possibilita que o educando seja capaz de criar seu próprio conhecimento, fruto da soma entre aquilo que já sabia e aquilo que veio ao longo do tempo, através dos professores, colegas e suas vivências também fora do espaço institucional. Paulo Freire destaca que o exercício da criação é indispensável ao indivíduo que se assume como sujeito no mundo, tendo um papel ativo na constante construção de uma sociedade mais harmônica.

O diálogo em Paulo Freire é muito mais do que a simples existência de duas ou mais pessoas que trocam ideias. A dialogicidade exige o compromisso tanto de educador quanto do educando com um espaço de confiança e liberdade para a fala e a escuta, para a possibilidade de erros e acertos, encontros e desencontros. Paulo Freire comenta que é necessário acreditar no educando, que ele pode ir além, com mais problematização, com mais reflexão, com mais curiosidade a cada passo dado. O diálogo não é um método ou uma forma de se realizar a aula, ele é na verdade o próprio compromisso do professor e a atmosfera que ele cria quando está no exercício de educar.

Ao longo do processo educativo, o educador, com seu compromisso dialógico, vai percebendo aquilo que funciona ou não funciona, percebe as carências específicas daquele grupo de alunos e, com estratégia, vai se adaptando conforme as necessidades. O diálogo na educação é, portanto, um exercício de pesquisa.

O espaço pedagógico é um texto para ser constantemente “lido”, interpretado, “escrito" e “reescrito”. Neste sentido, quanto mais solidariedade exista entre educador e educandos no “trato” deste espaço, tanto mais possibilidades de aprendizagem democrática se abrem na escola (FREIRE, 1994, p. 97).

CAPÍTULO 2: PEDAGOGIA DO DESIGN NO BRASIL -