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5.2 OS BEBÊS E O(S) OUTRO(S) ADULTO(S)

5.3.3 Diálogos entre bebês no contexto da creche

A brincadeira entre Mariah e Brayan – É o horário da janta. As profissionais estão sentadas, cada uma com uma criança a sua frente no bebê-conforto. Toca uma música instrumental na sala, o que cria uma atmosfera de tranqüilidade. [...]

Mariah (1 ano e 2 meses) e Brayan (11 meses) estão nos colchões próximos à estante onde está o rádio que toca a música. A menina, em pé, perto das prateleiras, segura uma mamadeira de suco, que esporadicamente suga, e Brayan está sentado a mais de um metro dali, em cima dos colchões. Ao olhar Brayan, Mariah faz um movimento com a cabeça, de um lado para o outro, ligeiramente. O menino vê e repete o gesto, o que provoca uma gargalhada nela. Ela repete o gesto e ele continua a imitá-la. Como balança a cabeça com mais força, Brayan também balança os braços, e, num movimento mais brusco, se joga no colchão, deitando-se. Ambos riem do movimento, uma gargalhada alta, mas apenas compartilhada entre os dois. Mariah, ainda de pé, continua a balançar a cabeça, e Brayan, deitado no colchão, segue-a no movimento, parecendo uma brincadeira recém-descoberta. Um balança a cabeça de um lado e o outro o segue do outro lado. Eles se separam. Brayan engatinha para dentro do vão do balcão, enquanto Mariah anda pelo colchão, perdendo o amigo de vista. Mas ambos, mesmo sem se olharem, levam a brincadeira consigo, pois Brayan continua a balançar cabeça, assim como a menina. Balançam a cabeça e riem, mas desta vez sozinhos (DIÁRIO DE CAMPO, 20 de junho de 2007).

Umas das crenças que permeavam os estudos sobre as relações dos bebês, segundo Amorim e Rossetti-Ferreira (2004), era que eles interagiam mais com os adultos e os objetos, e que a aproximação entre eles ocorria em situações de disputa por algo. De fato, muitas situações de encontro observadas na creche pesquisada ocorreram pelo interesse comum que um objeto despertou em mais de uma criança, o que desencadeava nelas o esforço para obter o

que desejavam, enquanto o outro as impede. Contudo, é uma situação, entre muitas outras, que ocorre no convívio contínuo de um grupo de bebês.

No grupo pesquisado, em que as crianças possuíam livre movimentação entre si, num ambiente delimitado, porém organizado para que elas fossem capazes de interagir, a constituição dos encontros entre os bebês ocorreram por diversas razões que transcendem a idéia única de disputa de objeto. Entre as possibilidades desses encontros, observo a iniciativa deles de se aproximar, ofertar algo, interessar-se pela ação do outro, participar de momentos rápidos de descoberta mútua. A cena descrita acima, em que Mariah e Brayan iniciam uma comunicação e um jogo de imitar um ao outro, representa um exemplo da possibilidade dos pequeninos, em situações momentâneas, estabelecer interações pró-sociais entre si. , Ilustra a idéia de que os bebês realizam ações de iniciativa, de comunicação com seus coetâneos e que respondem a elas.

Iniciar um movimento, olhar o outro, oferecer-lhe esse movimento e reagir à sua resposta nos dá indícios de que os bebês constituem, nas relações em grupo, a capacidade dialógica, de responsividade, de não-indiferença ao outro.

Outras cenas que podem ser citadas são as situações em que os bebês maiores ofertam objetos e realizam gestos de cuidado com o outro. No grupo pesquisado, Gabriela (1 ano) apresentava constantemente essas atitudes, que exprimiam atenção e interesse pelo outro. Oferecer o bico, embalar no bebê-conforto, cobrir com a coberta, com movimentos ainda desajeitados, entre outras ações observadas, são indícios de comunicação com o outro ou de resposta de um bebê ao outro, que, de alguma forma, o incitou a essa ação.

Fotografia 33: Gabriela oferece o bico a Victor. Fonte: Rosinete Schmitt (maio de 2007)

Victor (7 meses) está de bruços no chão se arrastando, o que vem fazendo ultimamente em suas investidas para engatinhar. De repente pára em frente a uma boneca e começa a tocar nela. Ele está de luva, mas isso não o impede de tocar os objetos. Gabriela (1 ano e 1 mês), que estava andando por perto, vê um bico com fralda no chão. Ela pára, olha Victor logo a sua frente e em seguida se abaixa, pega a fralda com o bico. Leva-o até onde está Victor. Ela se abaixa, inclinando a cabeça para olhar o rosto do menino, que olha, mas devia-se para voltar-se para a boneca. Gabriela tenta colocar o bico na boca de Victor, que desvia e não o aceita. Ela se levanta e se abaixa novamente, tentando colocar o bico na boca do menino. Insiste, mas Victor não pega o bico. Então acaba desistindo, larga o bico no chão e sai pela sala (DIÁRIO DE CAMPO, 8 de maio de 2007)

Essas cenas evidenciam a capacidade das crianças de iniciar um contato social com o outro coetâneo e também de responder a ele, dando início e continuidade a diálogos formados por outras formas de expressão que não sejam a palavra oral direta.

Segundo Guimarães (2006), se tomarmos como referência a idéia bakhtiniana de que as situações dialógicas são relações de sentido que envolvem os sujeitos situados socialmente, podemos compreender que as situações de encontro, de iniciativa e respostas entre os bebês no contexto da creche, fomentam a constituição de diálogos. Mesmo considerando que os significados e sentidos ainda estão sendo apropriados pelos bebês, nas situações circunscritas, momentâneas que eles vivem, é possível observar o estabelecimento de alteridade, que contribui para a formação subjetiva do eu e do outro.

Nessas situações, é possível perceber também que os bebês já trazem consigo marcas de outros espaços sociais, que oferecem indícios de sua constituição polifônica. Essas marcas, não são possíveis de perceber pelo discurso, como reconhece Bakhtin (2006) nos seus estudos. No entanto, ao conhecer um pouco do universo social dessas crianças, pude observar que muitos gestos e ações eram endossados por outros que compunham as suas relações sociais em outros espaços, principalmente na família.

Muitas das ações das crianças entre si e no contexto mais amplo das relações na creche eram elucidadas por algumas informações que as famílias relataram nas reuniões e nas entrevistas. Como exemplo, o fato de Gabriela exercer tantas ações de cuidado com o outro não estava vinculado apenas à observação das ações dos adultos na creche, mas também às suas relações em casa. A mãe dela relatou numa das reuniões que incentivava a menina a ajudar nos cuidados com o irmão que recém havia nascido, com a preocupação de fazê-la participar dos cuidados para que não se sentisse excluída. Acrescentou também que a menina possui duas irmãs maiores que brincam constantemente de boneca com ela (envolvendo-a ora como parceira, ora como bebê), o que contribuiu para que ela constituísse a idéia de cuidado com o outro.

Outro fato pertinente a essa discussão é que, nas relações entre os bebês, surgiam ações inéditas naquele espaço, que passavam a se repetir em muitas outras situações. Essas ações muitas vezes não se originavam propriamente nos encontros dos bebês, mas em outros espaços. Tal fato ocorreu com Marina (1 ano), que proferia constantemente nas situações de disputa com os seus coetâneos o termo pau-pau. As professoras estavam intrigadas com esse termo, já que nunca havia sido pronunciado entre os pequeninos. Elas descobriram com a família que se tratava da forma que a irmã de 6 anos da menina utilizava nas situações de disputa que vivia com ela ou como parte de suas brincadeiras.

Marina, então, nas situações de encontro com os outros bebês em que havia uma disputa ou um possível descontentamento, passou a utilizar tal termo, como uma forma de aviso, poder e protesto frente à ação do outro. As crianças respondiam, ora enfrentando-a com o corpo, ora gritando, como fazia Júlia K. (1 ano), que dizia um sonoro ai-ai ou fugindo ante seu tom de ameaça. Nessas situações foi possível observar a construção e apropriação de sentidos nas relações entre os bebês, envolvendo manifestações de raiva, poder, irritação ou de alegria, prazer, cuidado, etc.

Essas vozes ou marcas vindas de outros espaços sociais eram observadas pelos adultos e reafirmadas em suas mediações junto as crianças. Algumas passavam a fazer parte das relações entre os bebês, como características que identificavam as crianças entre si. Ao enunciar e afirmar determinadas posturas que as crianças assumiam, os adultos contribuíam para que as próprias crianças se reconhecessem a partir dessas características enunciadas. Um exemplo disso é o apego de Júlia A. por duas bonecas negras, uma de sua propriedade e a outra da creche, durante o período de inserção. Quando sentia sono, nos momentos de choro ou mesmo de brincadeira, a menina buscava os brinquedos, que passaram a serem denominados as bonecas da Júlia pelas profissionais. Esse vínculo passou a ser reconhecido também por alguns bebês, que buscavam o brinquedo para a menina quando ela chorava.

Fotografia 34: Larissa P. (10 meses) entrega as bonecas a Júlia A. respondendo suas manifestações de choro.

Fonte: Rosinete Schmitt ( 9 de maio de 2007)

Em várias situações em que Júlia A. manifestava algum incômodo, algumas crianças já identificavam as bonecas como forma de consolá-la e de parar seu choro. Essa ação estava presente nos bebês de mais idade, que respondiam à Júlia A. nesses momentos por meio da ação de lhe buscar e entregar o seu brinquedo de apego. Outras vezes era a própria Júlia A. que ia ao encontro da boneca, apontando e dizendo neném, principalmente quando ela se encontrava nas mãos de um outro.

As cenas ilustradas neste item trazem indícios da constituição dialógica entre os bebês por intermédio de manifestações comunicativas e de identificação, permeadas pelas significações presentes nos espaços sociais em que estão. É possível observar muitos desses diálogos apenas na convivência prolongada com as crianças, porquanto eles aparecem em situações momentâneas e circunscritas.