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Relação entre crianças: um interesse crescente no campo de investigação

2.3 UMA BREVE ANÁLISE DA PRODUÇÃO CIENTIFICA SOBRE A EDUCAÇÃO

2.3.1 Relação entre crianças: um interesse crescente no campo de investigação

Antes de apresentar as pesquisas encontradas sobre essa temática, é mister fazer algumas considerações sobre a pesquisa com crianças que consideram sua capacidade de interação com o outro34.

Carvalho e Beraldo (1989), num artigo publicado nos Cadernos de Pesquisa sobre o mapeamento de estudos sobre a interação criança-criança, afirmam ser esse um interesse ressurgido na década de 1970. O levantamento apresentado abrange as pesquisas estrangeiras e brasileiras que mostram uma reformulação teórica a respeito da capacidade de interação das crianças, que, por muito tempo esteve ligada ao adulto, que era visto como único capaz de favorecer o seu desenvolvimento. As autoras utilizam o termo ressurgimento do interesse pelas relações entre as crianças, afirmando que anterior a um modelo de família nuclear construído pelas mudanças socioeconômicas do capitalismo, as famílias eram constituídas de forma a possibilitar o contato das crianças com toda a comunidade. Como não havia uma separação do universo adulto, também não havia um isolamento ou seriação das idades, o que possibilitava a relação delas com outras de idades diferentes ou semelhantes. Camaione (1980, apud CARVALHO; BERALDO, 1989) sugere que, se houvesse um interesse investigativo para as relações na época, ele não estaria limitado a observar apenas o adulto, considerado como dirigente e significador das relações infantis, teria chance de considerar a criança desde então como agente ativo de suas interações.

Segundo Camaion, (1980, apud CARVALHO; BERALDO, 1989, p. 56), o processo de limitação do mundo social da criança ao meio familiar no início de sua vida, construiu um estereótipo de que a criança é um ser pouco disponível para intervir na constituição de outra criança, e que vai sendo guiado e modelado como ser social pelos adultos.

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De acordo com o estudo desse autor, até a década de 1970 duas idéias predominavam nas pesquisas: a da incompetência da criança, principalmente dos bebês, em se relacionar com o outro, e a do futurismo, que via a infância como um período de passagem, de promessa para a constituição do adulto.

Não é difícil vislumbrar as relações entre essa concepção de infância e a ausência de percepção do papel potencial da interação entre crianças no desenvolvimento [...] que levam a priorizar o adulto como guia e modelador desse processo. O que pode a outra criança, igualmente incompetente, oferecer ao parceiro? (CARVALHO; BERALDO, 1989, p. 57)

Essa idéia da incompetência das crianças e entre si ocasionou a predominância de pesquisas sobre interação que tinham o adulto como o principal motivador e agente do desenvolvimento infantil. Foi a partir da década de 70, segundo as autoras, que as pesquisas passaram a demonstrar que as crianças desde cedo gostam da companhia de outras crianças, estabelecendo contatos via olhar, sorrisos ou procura. O aumento dessas pesquisas sobre as crianças foi provocado também por aspectos socioeconômicos, que tendem a proporcionar o contato entre crianças bem pequenas cada vez mais cedo pela via do compartilhamento da educação entre as famílias e instituições educativas como a creche.

No Brasil, Rossetti-Ferreira (1988), na década de 1980, iniciou investigações sobre as interações entre as crianças. Seu interesse inicial era pesquisar o trabalho das creches, após retornar da Inglaterra, onde desenvolveu trabalhos com o etólogo Blurton Jones35 sobre o desenvolvimento do apego e as reações de separação entre crianças de 1 a 3 anos e suas mães. O interesse de pesquisar o ambiente da creche resultava de suas referências teóricas sobre a teoria do apego (BOWLBY, 1969; AINSWORTH, 1978 APUD ROSSETTI-FERREIRA, 1988), que apresentavam a idéia de que a criança necessitava estabelecer uma relação afetiva estável com um adulto, preferencialmente a mãe, evitando prejuízos em seu desenvolvimento emocional, cognitivo e social, como já visto anteriormente neste capítulo. Isso significava para a autora a necessidade de pensar numa organização de creche que garantisse uma relação estável e tranqüila entre o adulto profissional, que substituía a mãe no papel de maternagem/cuidado, e a criança.

As pesquisas iniciais do grupo de Rossetti-Ferreira resultaram numa mudança de perspectiva, ao observarem que o espaço da creche difere do doméstico, e que aí as crianças não se encontram apenas com o adulto profissional. Ao contrário, a autora observou nas ______________

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Nicholas Blurton Jones é professor em UCLA Sua pesquisa incluiu estudos longitudinais e aspectos culturais da interação de pais-criança, com atenção especial à contribuição da criança ao relacionamento. (Web page: http://www.gseis.ucla.edu/facpage)

gravações em vídeo que o adulto profissional, por ter muitas crianças sob sua responsabilidade, vive interações muito rápidas com elas, e que uma criança individualmente fica pouco tempo em relação com esse adulto. Notou também que, ao se focar a atenção nas relações entre o adulto e uma criança em especial, esquece-se de considerar o encontro e as possíveis interações entre as próprias crianças. Assim, mesmo considerando as mudanças necessárias dos adultos e no atendimento das crianças, para superação das precariedades que compõem a realidade dessas creches (baixa formação dos profissionais, número excessivo de crianças para poucos adultos, materiais e espaços inadequados), ficou demonstrado que as crianças individualmente se relacionam muito mais entre si do que com os adultos:

[...] percebemos que a creche constitui um contexto de socialização diverso do familiar, pois nele um adulto, que não tem necessariamente um vínculo afetivo com a criança, cuida simultaneamente de varias crianças pequenas. Nesse contexto, as outras crianças são de fato os parceiros mais disponíveis para interação (ROSSETTI-FERREIRA, 1988, p. 61).

O resultado dessa pesquisa alterou os sujeitos de seus estudos: deixou de ser a ação do adulto e o vinculo que ele constrói com a criança, para dar destaque às crianças como sujeitos que interagem e se relacionam entre si e com os demais envolvidos da creche. Isso significou um movimento investigativo sobre as interações entre as crianças de 0 a 3 anos, que podemos afirmar ser o pioneiro no país.

Todavia, mesmo considerando esse movimento ocorrido na década de 80 no grupo coordenado por Rossetti-Ferreira, as pesquisas que datam desse período não aparecem nas fontes pesquisadas neste levantamento; só é possível, neste momento, mencionar as que a própria autora e seus companheiros citam em seus artigos publicados. Essas pesquisas têm forma de artigo, a saber: Ocupação social do espaço próximo e longe da pajem por crianças

em creche (RUBIANO et al.,1987), apresentado na Reunião Anual da Sociedade de

Psicologia de Ribeirão Preto; Oportunidades de contato entre o adulto e a criança em creche (SILVEIRA et al., 1987); Fluxo de interações entre crianças numa situação de brinquedo em

grupo (BRANCO et al., 1988) e Estratégias de aproximação social em crianças de 2 a 6 anos

(CARVALHO, 1989).36.

Outros artigos mais recentes de Rossetti-Ferreira e seus colaboradores (2003) já são identificados como pertencentes ao Centro Brasileiro de Investigações sobre Desenvolvimento Humano e Educação Infantil (CINDEDI), e estão inseridos na perspectiva teórico-metodológica da Rede de Significações. Essa perspectiva, baseada em autores como ______________

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Não foi possível realizar a leitura desses artigos, que, por ora,são apenas citados para traçar a trajetória da pesquisa com crianças pequenas no Brasil.

Vigotski, Bakhtin, Valsiner, Wallon (AMORIM; CARVALHO; ROSSETTI-FERREIRA; SILVA, 2004) compreende que o desenvolvimento humano se dá e é interpretado por uma

malha semiótica, tecida de forma inter-relacionada e dialética. Ou seja, há um conjunto de

fatores físicos, sociais, ideológicos e simbólicos que influenciam todo fazer humano e sua constituição, devendo ser interpretado como uma rede de significações que se movimenta. Assim, essa perspectiva não é utilizada apenas para compreender o desenvolvimento humano, mas também como perspectiva metodológica que situa o investigador no seu ato de interpretar e escutar os sujeitos investigados.

Anjos (2006), sob essa perspectiva, investiga a relação dos bebês entre pares, observando as interpretações possíveis sobre eles construídas nas malhas de significação dos adultos e de sua própria descrição. O objetivo da pesquisa centra-se em observar, pelo estudo de um grupo de 21 crianças de 8 a 14 meses, numa creche universitária, se há processos interativos entre os bebês.

Na perspectiva da rede de significações, desde que nasce o ser humano é dotado de capacidade interativa, um repertorio biológico complexo, com alto grau de organização perceptiva e expressiva, que lhe possibilita reconhecer o outro e responder a ele. Na pesquisa mencionada, o termo interação denotava ações em que os bebês fizessem algo em comum, em dupla ou em grupo de mais crianças. A observação foi realizada via filmagem, com análise microgenética, realizando uma quantificação dos episódios interativos e estabelecendo critérios para sua classificação em relação à idade das crianças, à organização do espaço, à interpretação do adulto e à descrição das ações das crianças.

A partir disso, a pesquisa selecionou 336 episódios filmados em que os bebês observados faziam algo em conjunto. A autora também apresenta gráficos, indicando que, à medida que as crianças crescem, as interações aumentam. Em sua descrição ocorrem também análises sobre a organização do espaço, que, permeado pela concepção de positividade das interações entre as crianças, propiciava múltiplos encontros entre os bebês. Os adultos presentes nesse espaço (pais e profissionais), intervinham também nessas relações, ora incentivando, ora interrompendo – isso revela que as interações entre as crianças não são totalmente percebidas nem totalmente ignoradas pelos adultos. A autora, como já foi dito, faz referência à concepção que a creche tem a respeito da capacidade interativa das crianças, o que contribui para que esses momentos não sejam desprezados por completo. Todavia, a interrupção das interações dos bebês por parte dos adultos também são causadas pelas significações que o adulto dá a esses momentos, visto que a intervenção é feita por este, e não pelas crianças.

Nas pesquisas sobre as interações entre as crianças encontramos na área da Educação quatro estudos: Nos momentos de alimentação (PAULA,1994); Sobre as interações (BASTOS,1995); As manifestações infantis nas brincadeiras (PRADO,1998); As ações e

criações infantis nos momentos de alimentação, higiene e sono (COUTINHO, 2002). Todas

essas pesquisas envolvem crianças de 1 a 3 anos.

Ângela Scalabrim Coutinho, (2002) na pesquisa de mestrado As crianças no interior

da creche: a educação e o cuidado nos momentos de sono, higiene e alimentação, busca

promover um diálogo entre os saberes construídos no campo das Ciências Sociais e Pedagogia, focalizando as ações sociais das crianças na creche nos momentos citados em seu título. Para tanto, a investigadora inseriu-se durante dez meses num grupo de crianças de 1 a 2 anos registrando as relações entre os pares nos momentos de sono, higiene e alimentação.

Ela observou que esses momentos de cuidado são desvinculados do contexto pedagógico, não são planejados nem analisados pelos professores. Nessas ocasiões, eles agem automaticamente, guiados por uma rotina institucionalizada que os aliena de sua própria ação e das interações ricas que ocorrem entre as crianças. A autora observou que as crianças criam significados diversos dos adultos nesses momentos, encontrando sempre jeitos de se relacionarem entre si de forma intensa e prazerosa.

Segundo Coutinho (2002, p. 72), a repetição das ações dos adultos nos momentos de sono, higiene e alimentação flagra um desencontro de dois jeitos de ser: “[...] o das crianças, dinâmico, diverso, pulsante e o da instituição, e por vezes do adulto, rotineiro, homogêneo e ritualizado”. Esse desencontro é observado pela diversidade de outros significados que as crianças atribuem às suas ações e aos momentos vividos. Em seus registros vão surgindo cenas que revelam as relações e criações infantis que modificam a disposição da rotina, provocando encontros e novas significações.

Essas ações das crianças são tomadas como criações próprias da cultura infantil, que se expressa de um modo diferenciado do modo de ser de outras gerações. Todavia, Coutinho

(2002, p. 105), que se utiliza do conceito de cultura de Gertz, alerta que as manifestações

infantis não são dissociadas do mundo cultural e social que as crianças compartilham com outras gerações, pois “suas expressões , nas variadas linguagens, decorrem da relação com a cultura que as cerca, ou seja, com os bens culturais que a sociedade disponibiliza para elas”.

Essas manifestações infantis são despercebidas na maioria das vezes pelos adultos, e, quando vistas, recebem o significado de transgressão, desobediência, bagunça. Isso alarga o desencontro entre crianças e adultos. O não-conhecimento das criações infantis apontado por Coutinho esbarra na falta de planejamento dos momentos de cuidados na creche, em que se

desassocia daquilo é declarado legalmente como função indissociável da educação infantil – o educar e o cuidar. Os momentos de cuidados deveriam ser pensados, planejados e observados como oportunidade de encontros e trocas entre as crianças e entre adultos e crianças.

Patrícia Prado (1998), na pesquisa de mestrado intitulada Educação e Cultura Infantil

em creche: um estudo sobre as brincadeiras de crianças pequeninas em um CEMEI de Campinas, faz inicialmente uma crítica aos pressupostos da Psicologia que vêem o

desenvolvimento infantil de forma dissociada do contexto histórico social, relegando ao psiquismo individual a constituição do ser. Busca compreender a ação da criança enquanto ser social contextualizado por suas ações nos momentos de brincadeira. Afirma que a ação das crianças e a significação que elas atribuem ao mundo, fazem da brincadeira uma possibilidade de transformar a realidade à sua volta. Observa que as brincadeiras são significadas pela criança de acordo com a cultura a que pertence, e que a infância e o modo de ser criança se modificam de acordo com o tempo e espaço de que fazem parte.