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2.2 OS BEBÊS E SUAS RELAÇÕES

2.2.2 O reconhecimento do bebê: o afeto e o papel materno

Durante o século XX, aclamado como o século da criança, muitos estudos trataram sobre a infância e prescreveram as formas como famílias e instituições deveriam se comportar e intervir nessa etapa da vida.

No campo da psicanálise, as pesquisas de Freud e seus seguidores (Neyrand, 2000) colaboraram para reconhecer a criança como ser dotado de sexualidade e para reafirmar a responsabilidade da figura materna na relação com as crianças pequenas.

Apesar de Freud não ter como seu maior objetivo o estudo da infância, suas pesquisas recorreram a esse período como forma de compreender a formação psíquica do ser humano, dando ênfase às questões da sexualidade. À relação mãe e filho são atribuídos significados de extrema responsabilidade, atrelando tanto o êxito (o desenvolvimento saudável) como as dificuldades (o desenvolvimento perturbado) a essa relação.

Para o bem e para o mal, a mãe é a figura, o outro mais enaltecido na relação com a criança, principalmente quando bebê, pela significação e ideologização de sua condição biológica. O elo rompido no momento do parto foi profundamente tratado pelo campo da Psicanálise durante o século XX, como forma de explicação das neuroses ou perturbações, atribuídas às marcas que esse momento imprime no inconsciente.

Ainda na Europa, durante a década de 1940 e 1950, período do pós-guerra, foram desencadeadas fortes campanhas pela preservação da vida das crianças, num contexto de altas taxas de mortalidade infantil. As condições precárias na manutenção da vida após a Segunda Guerra, segundo Neyrand (2000) contribuíram para que os saberes científicos divulgados à maior parte da população19, recaíssem sobre a necessidade dos cuidados com o corpo para sua sobrevivência.

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É mister observar que alguns conhecimentos do campo cientifico são mais divulgados que outros, não apenas pelo prestígio que autores e ou correntes possuem, mas também porque estão imbricados por situações e condições em determinadas época.

Foi num contexto de recuperação pós-guerra da sociedade que surgiram os estudos dos psicanalistas, o americano René Spitz (1988) e o inglês John Bowlby (1989, 2002), a respeito da ligação materna, que influenciaram fortemente as críticas à entrada das crianças pequenas em espaços de educação coletiva, como a creche.

Apesar de haver algumas divergências entre os dois autores20, a idéia básica que os une refere-se à capacidade de as crianças estabelecerem vínculos afetivos desde cedo e a importância desse fato. Isso representou um avanço nos estudos sobre as crianças pequenas, pois foram reconhecidas e divulgadas tanto a capacidade afetiva infantil como a preocupação com as formas relacionais entre elas e o outro adulto.

Acrescentou-se a idéia de que, para sobreviver de forma saudável, é preciso bem mais do que o alimento e a higiene do corpo. É preciso também prover o desenvolvimento afetivo das crianças. Houve o reconhecimento de que os bebês sentem emoções e que é preciso ter cuidados adequados, tanto quantitativos como qualitativos.

Nesse sentido, há até hoje uma supervalorização do papel da mãe, que é vista como o

outro mais naturalmente adequado a se relacionar com a criança e estabelecer vínculos, sendo

considerada imprescindível a sua presença. Quando, por alguma razão extrema, ela não é possível, há de se ter um substituto de presença regular e com qualificações para essa relação.

Segundo Spitz (1988, p. 154),

[...] na primeira infância, as influencias psicológicas prejudiciais são conseqüência de relações insatisfatória entre mãe e filho. Tais relações insatisfatórias são patogênicas e podem ser divididas em duas categorias: a) relações inadequadas entre mãe e filho; b) relações insuficientes entre mãe e filho. Em outras palavras, no primeiro, (...) é devido ao fator quantitativo, enquanto no segundo é devido um fator qualitativo.21

Spitz (1988) responsabiliza a mãe de duas formas: por sua ausência e pela qualidade das relações que estabelece com a criança, vista como alguém que sente, mas com um contexto social idealizado e reduzido à mãe. Grande parte de suas pesquisas foram realizadas em instituições de atendimento coletivo, como orfanatos e hospitais. Durante a Segunda ______________

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Bowlby (2003) tece criticas a Spitz quanto à sua afirmação de que as relações verdadeiramente objetais da criança não ocorrem antes dos 8 meses. Spitz defende que apenas nessa idade surge o retraimento da criança perante pessoas estranhas, a qual denominou idade de medo dos estranhos. Essa reação de retraimento, segundo Spitz, é explicada não por uma reação de medo da criança frente a algo novo, mas pelo sentimentos de abandono com relação à mãe ao ver um outro diferente a sua frente. Vários são os argumentos apresentados por Bowlby, sobre a inconsistência dessa idéia dos 8 meses de Spitz. Observa que antes desse momento a criança já distingue os conhecidos dos estranhos e que, portanto, não é uma simples distinção, mas uma reação de medo frente ao novo, que é diferente da ansiedade de separação da mãe. Defende a idéia de que as relações de apego ocorrem muito antes dos 8 meses. “Medo de estranho e ansiedade de separação são coisas distintas” (BOWLBY, 2003 p. 408).

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Guerra Mundial, o autor realizou pesquisas sobre crianças pequenas que viviam nessas instituições, na região de Nova Iorque. Ele constatou que as crianças recebiam cuidados físicos adequados (sempre asseadas, alimentadas, medicadas), porém observou a ausência de cuidados semelhantes aos maternais, afetivamente qualificados.

Uma das causas apontada era a grande proporção de crianças para cada enfermeira (dez crianças para cada uma), que não permitia o envolvimento afetivo. Spitz, nesse estudo, relata que as crianças ficavam completamente passivas em seus leitos, com olhares vagos, com expressão que lembrava “idiotas” ou com falta de coordenação ocular. Conclui o autor que, apesar da eficácia dos cuidados quanto à higiene e alimentação, o tempo e a forma como os adultos se relacionavam com as crianças eram desqualificadas para o desenvolvimento afetivo saudável. O distanciamento do adulto com as crianças caracteriza a ação de maternagem22 fria, sem afeto, o que coloca em risco o desenvolvimento afetivo dos bebês, propensos a adquirem patologias23.

Os estudos desse autor não recaíram apenas nas situações em que as crianças estão fora da esfera familiar, mas também nas condições em que não há esse afastamento, sobrepondo a idéia de uma inadequada ação materna, da mãe ou de sua substituta. No livro O

primeiro ano de vida, Spitz (1988) afirma veementemente a responsabilidade da relação da

díade mãe-filho, que recai inevitavelmente sobre a mãe, pois considera que, para o bem ou para o mal, ela é a principal propulsora dessa relação, em qualquer condição social.

Em 1952, o psiquiatra e psicanalista John Bowlby (1989) redigiu um relatório, encomendado pela Organização Mundial da Saúde, sobre a saúde mental das crianças sem lar, interligando a carência do desenvolvimento infantil com a idéia de carência maternal. Com algumas poucas divergências dos estudos de Spitz, o autor, junto aos seus colaboradores, principalmente Mary D. Ainsworth, identificou alguns tipos de carência:

a) A carência que se produz quando um bebê ou uma criança pequena vive numa instituição ou num hospital, sem um substituto materno apropriado, recebendo uma maternagem insuficiente, o que, conseqüentemente, o priva de possibilidades adequadas de interação.

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A idéia de maternagem está relacionada aos cuidados físicos e afetivos exercidos pela mãe ou por alguém que a substitui de forma freqüente.

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Dentre as patologias diagnosticadas pelo autor, a mais famosa é o hospitalismo, que se caracteriza pela perturbação psicológica da criança que adquire posturas inadequadas nos relacionamentos posteriores.

b) A carência que se produz quando um bebê ou uma criança pequena vive com sua mãe ou um substituto maternal permanente, mas não recebe cuidados suficientes e não tem possibilidades de interação adequada.

c) A carência que resulta quando a criança não é apta à interação com uma figura materna. Ou seja, mesmo que haja uma figura materna presente ao seu lado, com cuidados suficientes, essa inaptidão (conseqüência de rupturas repetidas de laços com as figuras maternas pelas quais a criança ficou marcada– ou claro de carências anteriores.

Em todos esses casos, a carência maternal origina-se de uma insuficiência de interação entre a criança e a figura maternal (AINSWORTH, 1961 apud NEYRAND 2000)

Os estudos de Spitz e Bowlby trazem contribuições importantes sobre a percepção da criança como um ser que sente e sobre a necessidade de se pensar sobre o tipo de relação afetiva que deve ser estabelecida com ela. Segundo Neyrand (2000), essa percepção desbanca a idéia organicista da criança como um ser apenas cuidado através de seu corpo24. Contudo, a prioridade universal dada à mãe nessa relação, como a mais adequada, o outro ideal para o bebê, limita a abrangência e a capacidade relacional das crianças. Mesmo que Bowlby (2002) admita a presença de outras pessoas que estabelecem vínculos com as crianças, como o pai e os avós, ainda sim há uma preferência pela figura da mãe em detrimento das demais, sob alegações biológicas.

Conseqüentemente, as teorias do apego e da carência materna revigoraram nesse período as críticas tecidas à educação nos espaços coletivos, julgando-os inadequados ao desenvolvimento infantil e aceitando-os apenas em último caso, quando as mães não tivessem condições de assumir o cuidado de seus filhos. As implicações dessas teorias sobre os cuidados com os bebês, atribuem desqualificação às alternativas de educação e cuidado fora da esfera familiar. Ao mesmo tempo, as práticas familiares em família também podem ser julgadas adequadas ou não para o desenvolvimento infantil. A inserção dos bebês em instituições de educação coletiva é vista com maus olhos, pois há inconstância da presença dos adultos, já que ele divide os cuidados entre diversas crianças e fica menos tempo com ______________

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Anterior às teorias do apego, da afirmação da capacidade afetiva da criança, a ligação que ela desenvolvia com outra pessoa, a mãe, era associada à necessidade física do alimento. Segundo Bowlby (2002) dois tipos de impulsos eram relacionados ao comportamento do bebê: um primário e o outro secundário. O alimento era compreendido como primário, e a relação pessoal, referida como dependência, como secundário. O autor analisa como inadequada tal proposição, e com contribuições da etologia, defende que assim como em outras espécies animais, os bebês humanos seriam programados biologicamente para emitir certos comportamentos que aliciariam atenção e cuidados que manteriam a proximidade com seu cuidador. Como exemplo cita as pesquisas de um etólogo chamado Harlow, em que os filhotes de macaco mostraram preferência marcante por uma mãe-

cada uma individualmente. Além disso, consideram precoce a separação da mãe por longas horas.

Tais estudos, amplamente divulgados, contribuíram para o não-investimento em instituições de atendimento coletivo de crianças pequenas e na sua não-evolução , inclusive no Brasil, conforme afirma Rossetti-Ferreira (1988). Sua contestação ocorreu em um extenso debate teórico com grandes conseqüências no âmbito político, que teve como principal ponto a crítica à desconsideração das condições sociais e culturais na constituição dos papéis relacionais entre mãe, pai, criança, outras pessoas e instituições sociais para a infância.