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Dialética e axiomática do capitalismo

3 DIFERENÇA NEGATIVA

3.6 Dialética e axiomática do capitalismo

Como a economia é um sistema de relações de produção e propriedade entre

“elementos diferenciais” (DeR, p. 177), seu campo é a multiplicidade de variações entre tais relações. Problemas e soluções engendrados pela sociedade e na sociedade, nas “relações diferenciais que ela encarna” (idem), sejam estas jurídicas, políticas ou ideológicas, “nos termos atuais destas relações (capitalista-assalariado)”

(idem). Assim,

o "econômico", propriamente falando, nunca é dado, mas designa uma virtualidade diferencial a ser interpretada, sempre recoberta por suas formas de atualização, um tema, uma "problemática" sempre recoberta por seus casos de solução. (DeR, p. 177)

Assim, entender uma sociedade é entender sua economia interna, suas relações de produção econômicas, culturais, ideológicas. Para se entender sociedade contemporânea, que elemento deve ser compreendido em sua complexidade e multiplicidade? O elemento unificador desta complexidade e o campo de imanência onde esta ocorre: o próprio capitalismo.

3.6 Dialética e axiomática do capitalismo

Ao descrever a denominada axiomática do capitalismo, Deleuze observa sua operação singular de criação, demolição e superação de seus próprios limites. O capitalismo busca se expandir e simultaneamente gera as barreiras à sua expansão.

Como já observado na análise da lei da baixa tendencial de lucro, a interpretação do que é limite é motivo de polêmica na teoria econômica marxiana. Na filosofia deleuziana, limite tem tanto o significado de indicar o ponto no qual o pensamento representacional falha como o movimento de superar as amarras limitadoras deste tipo de pensamento, visando com isso pensar o não-pensado. Deleuze apoia sua visão em elementos do livro III de O Capital, notadamente no trecho:

A produção capitalista tende constantemente a superar estes limites que lhe são imanentes, porém consegue isso apenas em virtude de meios que voltam a elevar diante dela esses mesmos limites, em escala ainda mais formidável. O verdadeiro obstáculo à produção capitalista é o próprio capital, isto é, o fato de que o capital e sua autovalorização aparecem como ponto de partida e ponto de chegada, como mola propulsora e escopo da produção. (C 3, p. 289)

Deleuze define como axioma a norma que passa a reger o processo de produção e ajuste das práticas sociais e econômicas no capitalismo. Este mobiliza e desmobiliza o desejo como uma forma de geração de demanda, lucro e organização do socius (ou relações sociais de produção). O axioma cria uma sequência de pensamentos, códigos e palavras (um tipo de ethos) a partir de demandas que em tese e em uma situação extrema poderiam contestar o próprio funcionamento da máquina-capital como se dá naquele momento, mantendo a demanda sob controle.

Ao modificar-se e erigir os limites que serão superados posteriormente, o capitalismo forma simultaneamente o tecido social cultural da época em questão. Ao explodir esse limite, um novo tecido surge. O neoliberalismo é um exemplo dessa implosão e construção de novos códigos sociais: um rearranjo produtivo que gera novas subjetividades, novos constructos sociais, novas relações e novos processos de subjetivação (que serão melhor detalhados posteriormente neste trabalho).

Para Deleuze, o que torna o capitalismo único (e que lhe dá o poder de impor uma visão retrospectiva da vida e da história, como se nada existisse antes ou depois dele) é exatamente o fato de que este sistema opera simultaneamente as forças de sua criação e destruição. A famosa afirmação de Marx de que o capitalismo tem em si os elementos de sua destruição (ou que suas contradições internas o levariam à ruína) significa, no extremo, o fato de que cada modo de produção ao tornar-se hegemônico carrega um limite claro (a possibilidade de produção de lucro ou de replicação do capital nesta modalidade: fabril, serviços, cognitivo, etc.) e um limite difuso (a produção da subjetividade, valores, leis, cultura e direitos que dá-se nas tensões entre a ordem antiga e a que começa a se instalar).

Deleuze dirá que a produção carrega em si a anti-produção, ou os fatores que levarão aquele conjunto de relações socioeconômicas de produção a um momento de crise133.

Fala-se então não de um capitalismo, mas de capitalismos que compartilham semelhanças e marcam profundamente suas diferenças. O elemento unificador e totalizante do capitalismo, compartilhado por todas as suas variantes, é a produção 133 Deleuze relaciona esta antiprodução, em Marx, ao processo de controle dos meios de produção. A posse e controle desses meios por uma determinada classe, estado, burocracia ou oligarquia é um postulado central e unificador de todas as modalidades de capitalismo.

Uma inversão ou alteração real no controle e no uso dos meios, e não apenas a troca de atores, teria o potencial claro de desafiar o existente. A questão é como tensionar o socius ao ponto que as quebras de paradigma do capitalismo se dessem por completo.

do capital em si. O elemento desagregador, diferencial e provocador das crises periódicas do capitalismo (ou responsável por suas mudanças de paradigmas) é a produção social, ou a oferta e surgimento de novas formas de direcionamento do desejo e dos afetos. Se as formas anteriores já não dão conta de manter o sistema sob controle e funcionamento, o próprio tecido social opera como elemento desestabilizador e de rearranjo dos mecanismos de gratificação, controle e produção econômico-sociais.

Seria possível dizer então que, se o capitalismo cria e supera seus limites simultaneamente, como Deleuze observa, o coração do sistema opera por uma dialética em suspenso, na qual não há síntese, ou há uma síntese assimétrica.

Produção e anti-produção são inconciliáveis e ao mesmo tempo encontram-se irremediavelmente plasmadas. A realização completa da anti-produção é impossível, pois significaria negar um postulado central do sistema, qual seja, algum nível de produção do capital. Da mesma forma, não é possível que esta produção seja totalmente purgada dos elementos que em tese a colocariam por terra. Se a metáfora de Marx sobre o capitalismo ser o mercador que existia nos interstícios do feudalismo puder ser tomada ao pé da letra, cada mudança do capital surge a partir das tensões (diferenças ou contradições?) operantes no sistema anterior, tensões que são fundamentais para seu funcionamento.

Desta forma, a afirmação de Deleuze que o “econômico é a própria dialética social134” e a ideia de que razão e irracionalidade seriam os objetos finais de estudo de Marx (pela relação do homem histórico com seu duplo natural e do entendimento da razão não como faculdade, mas como processo) ganham outra dimensão. As diversas razões de mundo tem em si os elementos irracionais que as definem e as fazem operar135, impossíveis de serem dissociados de tal razão. Tal dialética social 134 DeR, p. 177. No fundo, as dialéticas compartilham entre si um método ou procedimento, de caráter relacional, e diferem na resposta dada a este problema no tempo em que são elaboradas. Assim como o capitalismo se transforma, a dialética precisa mudar para sua crítica a ele ser eficaz. Se tudo pode ser interpretado dialeticamente, o próprio capitalismo é dialético. O combate de Deleuze à dialética seria um combate ao capitalismo em si? Ou há, na esquizofrenia/comunismo, uma “dialética” do múltiplo e do positivo para a crítica e superação do novo capitalismo que surge? Observando o exposto sobre o percurso histórico da filosofia deleuziana, é possível pensar na validade de ambas as propostas.

135 Como já dito, esta afirmação de Chatelêt resgatada por Deleuze parece estabelecer uma aproximação com elementos expostos na Dialética do Esclarecimento de Horkheimer e Adorno: uma razão de mundo, em seu limite, desvela a irracionalidade que a permeava desde o princípio e que é seu elemento constitutivo principal. A produção de uma razão de

tem como tese central a produção do capital (físico, especulativo, humano, etc. – a reterritorialização máxima do sistema) e como suas “antíteses” tanto as formas variáveis de produção deste capital (o “negativo” que reforça a identidade do capital, reterritorialização) como as ações e condições práticas que obrigam a mudança destas formas e/ou sua contestação, as maneiras que a organização da resistência ao domínio do capital poderia assumir (os elementos “positivos” ou diferenciais; ou o negativo que significa a enunciação daquilo que está para além do conceito):

reformista ou revolucionária, desterritorializações relativas ou absolutas.

É bom lembrar que o próprio Marx via a forma-salário com desconfiança, o que incluía as lutas por seu aumento, que ainda que diminuíssem a distância entre o trabalho executado de fato e o trabalho remunerado, nunca remunerariam de forma justa a relação entre tempo de vida e tempo de trabalho, visto que não há comensurabilidade real entre a vida e o dinheiro. Se a forma-salário extingue o vestígio da divisão entre trabalho pago e não pago, fazendo com que todo trabalho (necessário ou não) “apareça como trabalho pago”. (C 1, p. 610), a troca forçada e assimétrica entre trabalhador e capitalista aliena mais do que simplesmente a força de trabalho: passa a ser um sistema de trocas entre tempo de vida e morte.

A mágica do capitalismo é reduzir inclusive a vida a uma ordem que pode ser quantificada e qualificada em termos de troca de moeda. Produção de modos de vida e de formas de morte, pois a sustentação do regime pressupõe a criação (de demandas, produtos, fábricas, aparelhos repressores, etc.) e a destruição (da natureza, da liberdade individual subsumida à liberdade de consumo, das relações de comunidade, do diferente, etc.). Este superfetichismo recobre as relações de mundo é a produção de uma irracionalidade de mundo. Isso torna-se mais evidente em momentos de crise social, política e econômica com a tendência da população em abraçar soluções que lhes prometam o retorno a uma situação idealizada de estabilidade e segurança, como se a produção social necessitasse voltar a formas anteriores caracterizadas pela disciplina e força enquanto a produção econômica se rearranja buscando novas condições para maximizar a produção de capital. A aplicação de uma racionalidade técnico-instrumental (aparentemente afastada das contradições sociais e recoberta por uma falsa ideia de isenção e objetividade) na produção da morte é um exemplo do fordismo levado a seu extremo, assim como da desumanidade que permeava o processo do Esclarecimento desde o princípio, o que não quer dizer que esta quebra de paradigma caracterizada pelo horror em seu extremo não se constituiu em um imenso rearranjo econômico produtor de lucros e de mudanças nas sociedades e indivíduos. As fábricas de cadáveres para a eliminação do diferente/ameaçador e a relação no mínimo promíscua de gigantes industriais como Volkswagen, IBM e Hugo Boss com o regime nazista, usando a mão de obra produzida por todo o processo de economia social que alimentava estas fábricas de sua matéria-prima, parecem ser exemplos interessantes para apoiar esta tese.

produção como um todo e em todos os campos, dando a impressão de que à sociedade e à vida é impossível a existência de forma externa ao capital, visto como gerador de tudo que existe136. No limite, as formas de ruptura do tecido social contém, dialeticamente, as formas de captura destes mecanismos de ruptura para reforço da produção de capital e reconfiguração da produção social, mudando tudo para que nada mude em seu cerne. Ou ainda, o capitalismo é dialético em essência.

O descompasso temporal entre os processos de mutação econômicos e sociais é o motor da constante crise do capitalismo e de seu funcionamento, de seu caráter esquizofrênico de sempre forçar seu limite. A dialética interna do capitalismo, presente na ideia deleuziana da axiomática, é a simultaneidade entre a produção das formas de vida no socius e a anti-produção das formas para a morte desse socius. A estrutura das revoluções capitalistas é a conservação e a mudança simultâneas.

A partir de agora, esse mecanismo será investigado a partir das relações entre desejo, produção e a ascensão das sociedades de controle, ou dos capitalismos tardio e neoliberal, visto que tais processos são mapeados por Deleuze e também pelo chamado marxismo ocidental, constituindo-se nas matrizes das atuais relações sociais de produção. Elementos de Marx e Deleuze serão conjugados às análises de outros pensadores e a algumas considerações próprias (sem a pretensão de estabelecer conceitos absolutos) com o intuito de tentar traçar um panorama e diagnóstico deste processo.

O capitalismo que surge dessa tensão é o sistema que sedimenta e reconfigura seus modos de produção (de vida, de produtos, mercadorias, sujeitos, valores sociais, etc) incessantemente, fazendo todos estes modos atuarem na realização de seu postulado de início, fim e meio: a produção de capital em todas as suas formas.

Esse mapeamento, diagnóstico e proposição de ação realizados por Deleuze ocorre em chaves profundamente marxistas, como o conjunto da tese busca mostrar. O retorno a Marx que Deleuze postula é fazer uma filosofia com 136 A tática deleuziana de trazer Nietzsche para estabelecer a dívida como elemento motor da formação do socius, extrapolando o determinismo base-superestrutura, parece conjugar-se admiravelmente com o processo descrito por Benjamin de que o capitalismo é a religião da sociedade, baseada na culpa e na dívida, construindo assim todas as relações necessárias para esta produção social, como será descrito de forma mais aprofundada nos capítulos 4 e 5.

consequências políticas, que seja um diagnóstico de seu tempo e que permita o entendimento de processos que serão mais visíveis futuramente (no caso, nos dias atuais, separados da época deleuziana por algumas décadas). A crítica a esse novo constructo social emergente precisa ser feita de forma imanente, pois não há uma exterioridade técnica em relação ao objeto quando este objeto somos nós mesmos.

O rigor nos passos da análise histórica realizada até este momento da tese é a fundação que permite expandir as análises em direção à compreensão da contemporaneidade, o que sugere que neste caso a análise da história da filosofia é simultaneamente um compromisso com a análise política do presente. Este é o grande eco da presença marxiana na obra deleuziana e um elemento que aproxima radicalmente suas noções de materialismo: não uma doutrina, mas uma atitude e práxis crítica e de interpelação do presente. A forma pela qual Deleuze realiza esta operação é, como já abordado, via filosofia da Diferença, o que abrirá espaço para as análises presentes nos próximos capítulos do texto e exigirá a expansão do elenco de autores em articulação. Espera-se que ao final da tese esta posição materialista seja devidamente atingida.