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1.3 Uma estranha confluência de fatores

O tabuleiro disposto no trecho anterior apresenta dois polos-chave: de um lado, decepção com os rumos do projeto baseado em Marx à medida que sabia-se mais e mais sobre o que ocorria na URSS. De outro, uma guerra intestina dentro da academia francesa tendo como foco a propriedade das interpretações sobre o que é pensamento progressista e a relação entre a universidade e a práxis.

Se na década de 1950 o Hegel “fenomênico-existencialista” dominava os bancos da universidade francesa, a década posterior volta-se contra os denominados 3Hs: os trabalhos de Foucault buscam contestar elementos de Husserl e Heidegger enquanto Althusser recorre a Espinosa26 para “purificar” a filosofia marxiana da sombra de Hegel. O Livro Vermelho de Mao Zedong torna-se febre entre os estudantes em Paris e Nietzsche é trazido à baila como uma forma de buscar um pensamento de esquerda que não recaia numa repetição de clichês vistos como desgastados.

Principalmente na década de 1960, o horizonte de uma revolução cultural, social e concreta passa a ser considerado mais importante do que a busca de espaços políticos institucionais. A força do feminismo, a contracultura, os movimentos por direitos civis e de minorias, os métodos de guerrilha27 e a imagem

26 Ainda que Althusser não tenha sido a epítome da originalidade ao aproximar Espinosa de Marx, do materialismo e da dialética. DEBORIN (1927) relembra que Feuerbach (influência de Marx), Engels e Plekhanov buscam abordar a questão. Os textos propostos por Plekhanov foram uma forma de dirimir a arenga entre comunistas mecanicistas e dialéticos (Cfe. ZAPATA, René. Spinoza en URSS. In BLOCH, Olivier, Spinoza au XXe siécle. Paris : PUF, 1990). DEBORIN (1927) observa, de forma clara, que à época já havia uma divisão dentro do marxismo s respeito da dialética hegeliana e a cosmovisão espinosana. Para o autor, as disputas sobre a presença de Hegel consistem em questionamentos sobre a fundação do método dialético marxiano. As relacionadas a Espinosa, entretanto, parecem envolver tanto a visão de mundo dos autores como o próprio conceito de materialismo.

Como uma é interdependente da outra, falar sobre o método inclui falar sobre o materialismo. É possível pensar que há elementos tanto hegelianos como espinosanos na formulação da dialética marxiana, e que talvez seu grande aporte teórico á discussão seja o fato de que estes elementos aparentemente contraditórios conseguem funcionar em conjunto.

27 É curioso observar como a mística em torno da Revolução Cubana domina o debate pós-1968 na esquerda: a guerrilha é vista tanto como o braço armado da revolução proletária como a forma mesma desta revolução. Perguntava-se se a guerrilha deveria ser campesina ou urbana, ou se visível ou clandestina, mas a resposta que habita o fundo destas questões

de Che Guevara operam a transmutação da luta social, que volta-se não mais contra a relação econômica de opressão, mas contra toda forma de opressão: o chamado gauchisme francês reintroduz elementos anarquistas e de combate ao poder institucionalizado, assim como o operaismo e o autonomismo italiano, de inspiração claramente gramsciana. O período intermediário da ditadura do proletariado passa a ser visto com receio ou ojeriza.

Presencia-se um embate entre correntes e interpretações maoístas, trotskistas e leninistas28 no coração do comunismo francês, dentro e fora do PCF. A pergunta filosófica que atravessa as discussões do período ainda não foi respondida para muitos: afinal, há uma teoria política dentro das obras de Marx ou a teoria política do marxismo é fruto das interpretações de seus sucedâneos? Ou seja, pode-se contar com Marx para a revolução?

Mais do que uma rejeição a um procedimento filosófico, o problema com a dialética, com Hegel e com a revolução carrega um problema político que é deslocado para o terreno da filosofia. A recusa da dialética se deu, por Deleuze, num quadro de luta contra uma espécie de hegelianismo tardio da filosofia francesa, tendo em sua base razões epistemológicas e políticas: por mais que um nome como o de Hyppolite – professor não apenas de Deleuze como de vários filósofos da mesma geração - fosse amplamente respeitado por suas leituras sobre Hegel, era também associado a certo conservadorismo e dogmatismo29. Além disso, a relação até hoje é uma só: para a esquerda da época (e talvez ainda hoje), a saída institucional-representativa para a ascensão do proletariado e das minorias está vedada.

28 Na obra que sedimenta seu rompimento com Sartre (As aventuras da Dialética), Merleau-Ponty detecta um conflito entre leninismo e o dito marxismo ocidental que já estaria contido dentro da obra marxiana no choque entre pensamento dialético e naturalismo. O primeiro é visível no postulado marxiano de que “não se pode superar a filosofia sem realiza-la”

(MERLEAU-PONTY, 2006, p.75), ou o desejo do subjetivo agarrar-se ao objetivo. O naturalismo, ou naturalização, começa a ocorrer após 1850 com a ideia marxiana de socialismo científico, que abriria espaço para uma visão finalista e determinista sobre o processo da relação humana. Assim, as disputas sobre o melhor caminho para a revolução e as dimensões políticas de sua filosofia começam a se dar cada vez mais não a partir do próprio Marx, mas sim de seus intérpretes. Fenômeno parecido ocorre na Alemanha: como exemplo, Benjamin também ataca a leitura do SPD sobre a inevitabilidade da revolução em suas teses sobre a História.

29 Referências a este processo são encontradas e elencadas por MARSHALL (2014). Disp.

https://www.academia.edu/1475282/Deleuze_Negativity_and_the_Dialectic_The_Origins_of _20th_Century_Constitutive_Thought, ainda que o comentário de Hyppolite sobre o excesso de frenologia em Hegel seja interpretável, a partir da análise de Buck-Morrs, como um combate ao racismo “científico”, o que poderia caracterizar uma posição progressista do francês. Deleuze ressalta que sua relação com Alquié e Hyppolite, ainda que tenha sido respeitosa e de admiração no início, torna-se ruim com o tempo. Para Deleuze, Hyppolite

conflituosa entre a geração de 68 e o Partido Comunista Francês, ainda uma poderosa força mas já em um lento processo de decadência, acaba por ser um fator de rejeição ao dito marxismo ortodoxo dos PCs europeus – e, por extensão, ao materialismo dialético30 lenino-stalinista.

Espremidos entre um hegelianismo alinhado ao conservadorismo e um comunismo com sérias dificuldades para justificar o que se sabia sobre o stalinismo, os pensadores ditos pós-estruturalistas precisariam apontar (ou criar, no caso de Deleuze) uma solução ou linha de fuga para o problema filosófico-político que surge à sua frente (liberdade X totalitarismo e seu correspondente ontológico:

multiplicidade X identidade).

A relação com o marxismo ortodoxo constituía-se em um problema grave para todo um conjunto de pensadores da época na França, cujas pautas versavam sobre temas altamente políticos mas descolados do clássico enquadramento na chamada luta de classes31, como a crítica do humanismo e do sujeito32, a virada martela incessantemente as tríades hegelianas no ritmo da sua voz, nas palavras usadas, ao ponto que ele e os demais alunos sentem-se como “jovens cães em uma escolástica pior do que a da Idade Média” estudando os “3 H” - Husserl, Hegel e Heidegger (Diálogos, p.10-11). No caso de Kojève, também citado por Marshall, existiam suspeitas de que tivesse sido agente soviético por mais de 30 anos – apesar de sua postura altamente crítica a Stalin e sua guinada pública de apoio aos modelos de expansão e atuação similares ao norte-americano, mas seu viés dogmático como professor teria origem em sua personalidade difícil. A mistura entre Hegel e Heidegger em sua interpretação do hegelianismo também pode ser entendida como um elemento importante na incompreensão a respeito do pensador da Unidade. Como salientado por ARANTES (1991), a leitura de Kojéve é determinante para a formação deleuziana, assim como a interpretação heideggeriana sobre o hegelianismo é criticada com propriedade, por exemplo, por Adorno em seus Três Estudos sobre Hegel.

30 Visto que o termo “materialismo dialético” nunca apareceu em nenhuma das obras de Marx, mas sim em contemporâneos como Dietzgen e comentadores como Plekhanov, Kautsky, Lênin e Stalin (importante notar que Engels cita a “dialética materialista” em sua Dialética da Natureza, mas não o materialismo dialético), a ausência do conceito acaba por levantar sérias dúvidas sobre sua pertinência e sobre a relação que este construiria entre dialética, ontologia e natureza.

31 Para GARO (2012), essas temáticas, ainda que de forma transversal, são o solo que permite a articulação entre o pensamento de Foucault, Althusser e Deleuze, antidialéticos, antihegelianos, ao menos nominalmente de esquerda, mas com posições diferentes em relação a Marx.

32 É extremamente importante fazer já a conceituação correta a respeito dos termos sujeito, subjetividade e subjetivação nas filosofias tanto de Marx (e, por extensão, em alguns dos marxismos) como de Deleuze. Como será descrito com maior riqueza de detalhes posteriormente, já em Marx o sujeito cartesiano-kantiano é visto como uma abstração deslocada da realidade, pois os homens fazem sua história, mas esta ação é determinada em algum grau pela matéria e pelas relações sociais. Se para Marx não há a separação sujeito-objeto, em Deleuze não há nem sujeito nem objeto, apenas relação. Sujeito é o que age, mas o que sofre.

linguística, a crítica do racionalismo e da representação, as teorizações sobre desejo, sexualidade e gênero, a redefinição do conceito de minoria/minoritário/explorado, a estetização do discurso filosófico e uma profunda descrença nas formas tradicionais de organização sindical e política em prol de atuações descentradas, moleculares e regionais.

O grupo formado por Louis Althusser, Étienne Balibar e Pierre Macherey, entre outros, promove uma separação teórica entre os textos de juventude e maturidade de Marx33. Ler Marx sem Hegel, sem a dialética totalizante e o fim da história ensinados em sala de aula por Kojève e Hyppolite pode significar, de maneira mais profunda, um embate com o PCF sobre a possibilidade de uma revolução ser realmente operacional sem que se corra o risco de um recrudescimento em direção ao totalitarismo. Assim, a questão do horror à dialética pode ser encarada como uma questão político-estratégica de articulação entre prática política e a ressignificação e elaboração teórica no processo de formação de uma nova esquerda na França nos anos 1960.

Subjetividade, em muitos momentos deste texto, pode ser entendida como análoga à personalidade ou somatório de hábitos sociais, pessoais e de pensamento que influem na percepção que a pessoa faz de si e em como ela é percebida pelos demais. Marx não crê em subjetividade autônoma nem em determinação plena, como será posteriormente mostrado. Deleuze é bastante crítico, também, em relação à formação desta subjetividade no socius capitalista, pois considera que os agenciamentos sociais (re)produzem uma subjetividade de acordo com moldes já definidos externamente pelo mercado, capturando a sensibilidade afetiva do corpo e reduzindo a consciência aos discursos normatizadores, desintensificando o desejo. Subjetivação é, em todas as aplicações, o processo de formação desta subjetividade que se arvora à posição de sujeito universal.

33 A dimensão desta leitura pauta o debate sobre Marx em esfera mundial. Um exemplo é o surgimento dos seminários “Ler o Capital” na Universidade de São Paulo nos anos de 1950-60. A leitura produzida por, entre outros, Paul Singer, José Arthur Gianotti e Florestan Fernandes busca refutar a posição althusseriana de um Marx sem Hegel. Já na década de 1960, a contracultura é o caldo que guiará as atuações acadêmicas e políticas de Basaglia (Itália), Laing e Cooper (Inglaterra) e os estudos brasileiros sobre a reforma manicomial, além da difusão do pensamento de Foucault e Deleuze entre os movimentos sociais e de representação e a retomada dos estudos feitos por Marcuse como um tipo de “Bíblia de Maio de 68”. A arte passa a ocupar papel político de destaque, com os movimentos tropicalista e a politização da MPB do eixo Rio-SP (e também da chamada música brega ou popularesca, que além do modelo molar do drama familiar-edípico ou do triângulo amoroso em suas letras, passa a tangenciar temas como liberação da mulher, pílula, aborto, prostituição e problemas sociais, etc.) no Brasil, assim como os beatniks, os hippies, a ascensão do rock and roll como forma de protesto e a explosão midiática do movimento feminista nos EUA (e também como resposta ao acirramento de conflitos como Coréia ou Vietnã). Se Guattari está certo em dizer que em 1968 a impressão era a de “dançar no telhado”, simultaneamente o surgimento de tantas formas minoritárias e inovadoras de realizar a política abriu espaço para uma crescente descoletivização da política: o contrafluxo conservador pós-1968 imbrica-se a esta lógica e é coroado com a sociedade de controle neoliberal e a ideia do “empresário de si”.

No caso de Deleuze, isso é ainda mais visível do que em Foucault ou Althusser: já em sua resenha de Lógica e Existência, de Jean Hyppolite, o jovem Deleuze critica de forma acerba o que considera uma ortodoxia dialética do autor e se pergunta sobre a possibilidade de uma ontologia da diferença na qual não seja necessário tensioná-la até o ponto da contradição, na qual esta seja menos do que aquela. O jogo deleuziano, derivado do debate da época sobre Marx e Hegel, é entender contradição e diferença como atributos do ser e não como categorias de análise histórica. Inclusive, para Hyppolite, “a história do mundo já se realizou” (p.

56-57) em Hegel.

Fala-se aqui então de uma leitura absolutamente teleológica do hegelianismo.

Mais do que isso, finalista: se a história já se realizou, onde estaria a possibilidade de uma ruptura ou revolução? Se Hegel representa a dialética e esta não possui nenhum horizonte para além dela própria, o hegelianismo seria, a partir do que é traçado por Hyppolite, uma filosofia eminentemente conservadora, o que traz um paradoxo e um problema de origem para o interior do marxismo: é impossível um devir revolucionário com um ferramental que, ao final, retorna a um esquema conservador. Isto parece explicar inclusive o recrudescimento e as atrocidades do stalinismo e do chamado socialismo real. Por outro lado, não é possível simplesmente abandonar a análise nos moldes de Marx sem cair em uma negação inconsequente da realidade, ainda regida pela lógica do capital. Assim, é preciso andar ao lado do marxismo, mas de forma transcendente a ele, preferencialmente por outros autores igualmente explosivos, transformando-o por dentro.

Um elemento que subsidia, ainda que de forma enviesada, esta tese está na crença deleuziana34 de que a introdução de Nietzsche na França dá-se não por pensadores posicionados à direita do espectro político, a despeito da antipatia escancarada do próprio Nietzsche em relação ao marxismo, mas por influência de Henri Albert e Charles Andler35, professores ligados ao movimento sindical e a um 34 Pesquisada por GARO (2012) e que consta em AID, p. 145

35 Henri Albert foi tradutor de Novalis, Stirner e de Nietzsche para o francês, sendo o primeiro tradutor do Zaratustra para este idioma. Conforme PYM (1998), Albert, um conhecido anti-germânico, buscava mostrar este caráter na obra do autor alemão. Sua defesa de Nietzsche dava-se contra os Naturalistas de esquerda, as feministas e os Wagnerianos franceses. Charles Andler, morto em 1933, pertencia ao POSR (Partido Operário Socialista Revolucionário) de Jean Allemane e Lucien Herr e a círculos intelectuais frequentados por Koyré, Kojéve e Jean Wahl. Foi professor de língua e literatura alemã da Universidade de Paris, da École des Hautes Études Sociales e do Collège de France. Além disso, foi o primeiro tradutor do Manifesto Comunista para o francês, tendo conhecido

híbrido entre socialismo e anarquismo existente no final do século XIX no sindicalismo revolucionário francês, que já à época buscava revisar o marxismo para purgá-lo de um suposto estatismo.

Para Deleuze, Nietzsche funciona, dentro desta chave, como uma forma de permitir um ataque à dialética hegeliana sem que Marx seja levado ao chão no processo. Permite assim a construção do hegelianismo como uma caricatura: a contradição é apresentada não como a conclusão lógica da diferença, mas como seu avatar conceitual aberrante,

destituída de sua pretensão de dar conta da diferença, a contradição aparece tal como é: contrassenso perpétuo sobre a diferença ela mesma, reversão confusa da genealogia (NP, p. 157. Trad. nossa.)36

Nesta caracterização forçada, a dialética aparece como uma categoria descolada da realidade e presa a uma teoria do ser, como um chamado constante ao ressentimento e a uma negatividade enquanto disposição ou visão de mundo. Tal genealogia da dialética reúne ainda todos os clichés de uma leitura enviesada e partidarizada de Hegel, há muito tempo estabelecida, e os cuidados tomados por Deleuze na análise do pensamento de Nietzsche contrastam com a forma como Hegel é aqui “maltratado e abusado”, para resgatar os termos de Fredric Jameson citados por GARO (2011).

Com efeito, Hegel se vê reduzido à figura reativa e niilista do pensador do ressentimento, cego por seus preconceitos: “a dialética se nutre de oposições pessoalmente Engels. Foi autor de uma biografia sobre Nietzsche em 6 volumes e escreveu obras onde advoga claramente um socialismo de corte marxista-nietzschiano, como La civilisation socialiste (1911 – republicado em 2001) e L’Humaniste Travailliste: Essais de Pédagogie Sociale (1927). A referência a estes autores é feita por Deleuze em “A gargalhada de Nietzsche” (AID, p. 145)

36 Esta leitura acaba por conduzir a uma leitura próxima à de BERTRAM (2016) sobre a Dialética Negativa adorniana ao considerar um problema no entendimento do processo dialético: a negatividade inerente à dialética consiste na autocrítica reflexiva que se efetua nas interações conflitivas entre indivíduos. Ou seja, a dialética tem em seu cerne um ceticismo que atingiu a perfeição, citando a expressão da Fenomenologia do Espírito. Logo, as críticas à pseudo-positividade da dialética hegeliana residiriam em uma interpretação do processo dialético como colisão (embate no qual nenhum dos lados cede e nenhum dos indivíduos percebe que possuem diferentes expectativas de conhecimento) e não como conflito (no qual ocorre o processo de autocrítica e dupla reflexão que desestabiliza as noções de conhecimento com a negação das expectativas de conhecimento e o reconhecimento de seus limites pelos indivíduos). A visão da contradição enunciada por Deleuze é redutível apenas à colisão e não ao conflito como forma produtiva do pensamento.

porque ela ignora os mecanismos diferenciais muito mais sutis e subterrâneos” (NP, p.157).

Para definir a dialética de Hegel, Deleuze se aferra em particular a uma figura da Fenomenologia do Espírito, a da má consciência, que redireciona contra seu autor, a generalizando para todo o pensamento dialético, um procedimento herdeiro das tradições heideggeriana e principalmente nietzschiana de crítica a Hegel.

Deixando de ser uma figura transitória da dialética, a má consciência é, garante Deleuze, o retrato fiel do dialético atormentado.

a descoberta mais cara à dialética é a consciência infeliz, o aprofundamento da consciência infeliz, a solução da consciência infeliz, a glorificação da consciência infeliz e de seus recursos. São as forças reativas que se exprimem pela oposição, a vontade do nada que se exprime pelo trabalho do negativo. A dialética é a ideologia natural do ressentimento, da má consciência. Ela é o pensamento da perspectiva do niilismo e do ponto de vista das forças reativas. De uma ponta à outra, ela é, fundamentalmente, um pensamento cristão. (NP, p. 196. Trad. nossa)

Tais afirmações permitiriam ler, nas entrelinhas, que a dialética seria indissociável de uma filosofia idealista da história, uma acusação que poderia ser, no contexto, facilmente imputável a Marx, mas que Deleuze não ousa fazer. Esta leitura deleuziana, presente no livro sobre Nietzsche (que pensa coisas piores ainda sobre a dialética) não é fruto de uma leitura rasa de Hegel: o debate era outro, permeado de sutilezas e indiretas. É uma operação bem mais elaborada, que participa na construção coletiva de um novo arsenal de referências filosóficas através dos quais se define uma nova relação com Marx e o marxismo.

Ao fazê-lo, a leitura deleuziana esquece – ou finge esquecer – que a negação hegeliana não é uma misteriosa potência negando a ação de dissolução, muito menos uma disposição psicológica, mas negação determinada, momento próprio da coisa e portanto, do princípio da sua concretude. O filtro nietzschiano usado por Deleuze é o que permite esta leitura amputada da negação determinada, impedindo assim um contraponto teórico à visão deleuziana dentro do mesmo campo. Ao tomar o todo pela parte, cria-se uma imagem propositalmente distorcida do negativo para ressaltar a positividade da filosofia da diferença.

Dito de outro modo, ela permite situar Marx não como adversário direto de Nietzsche, mas como descendente direto de Hegel, inscrevendo-o em uma genealogia da dialética traçada pelo próprio Nietzsche: tal leitura nietzschiana de

Marx interditaria, em hipótese, a leitura marxiana sobre Nietzsche presente, por

Marx interditaria, em hipótese, a leitura marxiana sobre Nietzsche presente, por