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conceitual) como sob a aparência de diversidade (múltiplas opções, porém já predeterminadas).

Especificamente na análise do capitalismo (o sistema ao qual tanto Marx como Deleuze direcionam a crítica), mostrar a intrincada rede de relações, dinâmicas internas e estrutura sistemática da produção capitalista é primordial. Esta rede se apresenta como uma totalidade sem totalização, pois ao mesmo tempo que é o próprio tecido da sociedade, logo abarcando o “todo”, tem em seu desenvolvimento e operação possibilidades múltiplas e simultâneas. É isto, coincidentemente, que define a operação marxiana de colocar a dialética sobre seus próprios pés.

1.4 De onde viemos? Para onde vamos?

Para ser possível a criação de um terreno de articulação entre Deleuze e Marx, alguns pontos precisam ser trazidos a primeiro plano. O ponto de partida é a compilação e análise do conjunto de referências à obra e temas marxianos na produção deleuziana. Entender o que é o “nome de Marx” ao qual Deleuze se refere permite saber mais sobre a forma pela qual a filosofia deleuziana se aproxima e interage com os temas marxistas, permitindo observar até que ponto estes também compõem o campo teórico de Deleuze. Mas, principalmente, entender de que forma Deleuze é um leitor de Marx em seus próprios termos (e qual é esse Marx que aparece – ou não – nessa leitura). Por tal razão, será realizada a análise detalhada das citações e referências a Marx em toda a produção deleuziana, em um momento mais acadêmico do trabalho.

A facilidade de localizar citações a Marx na obra de Deleuze não significa a mesma facilidade em entender sua posição no pensamento deleuziano. Ao mesmo tempo, parece mais importante ou produtivo enveredar pelo caminho da produção a partir dos autores, em vez de tratar de um elemento específico da história da filosofia. Porém, segundo uma prática já enraizada na produção filosófica brasileira40, não seria possível realizar uma filosofia autoral sem estar mergulhado e em diálogo permanente com elementos da tradição filosófica. Assim, buscar um destes objetivos acaba por levar a lidar com o outro.

40 Cfe. ARANTES, 1994, passim

A partir deste desafio, e tendo como base os elementos surgidos na análise das citações, pode-se operar uma mudança de abordagem, onde estes serão trabalhados de forma mais rizomática e direta. Tal movimento é calculado para possibilitar o diagnóstico imanente da conjuntura do tempo presente, caracterizado pela multiplicidade e do qual a produção conceitual ainda está em curso, buscando lançar luz nos processos e eventos que ocorrem e caracterizam a contemporaneidade.

Partindo de uma leitura estrutural de texto, certamente mais acadêmica, buscar-se-á a associação progressivamente mais livre entre os conceitos resultantes das análises feitas. Ainda que esta operação não seja convencional, o ineditismo do tempo presente assim o exige, para não se cometer o anacronismo de propor soluções antigas para situações novas, mesmo que estas sejam fruto de processos históricos. O novo gera-se a partir das condições trazidas pelo passado e desvela os componentes do futuro, e desse movimento podem surgir as ferramentas e armas para o entendimento e operação no atual. Comparativamente, Marx observa que

O principiante que aprende um novo idioma traduz sempre as palavras deste idioma para sua língua natal; mas só quando puder manejá-lo sem apelar para o passado e esquecer sua própria língua no emprego da nova, terá assimilado o espírito desta última e poderá produzir livremente nela. (18 B, p. 18)

Os desdobramentos conceituais imaginados deverão lidar com três temas principais: em primeiro lugar, com a definição do que é a Filosofia da Diferença como mostrada em Diferença e Repetição e em Nietzsche e a Filosofia. Partindo da resposta de Deleuze à acusação da Diferença como Bela Alma, quando ele invoca o nome de Marx como defesa, buscar-se-á um duplo movimento de tensionar o conceito de dialética até o ponto em que se aproxime da filosofia da diferença e tensionar esta última até perceber se é possível afirmar se nela sobrevive um resíduo dialético41.

A semelhança da operação crítica de Deleuze e Marx a respeito de elementos da filosofia hegeliana serve como base para a análise de procedimentos de ambos os filósofos, mapeando pontos de contato e divergências em relação à dialética 41 Os textos de ELLRICH (1996) e NESBITT (2001) apontam neste sentido. LAPOUJADE (2015) também aborda esta problemática de forma inesperada e inovadora ao ressaltar um movimento dialético inerente à filosofia deleuziana.

hegeliana, à representação e ao negativo. Se em Marx o concreto é síntese de múltiplas determinações, de que forma isso é uma resposta a Hegel e abriria um caminho pouco imaginado para chegar-se às posições deleuzianas sobre o mesmo tema?

Outro momento “especulativo” – ou seja, uma linha de força que a articulação entre os autores permitiria seguir – está no conceito de política resultante do tensionamento dos autores. A pergunta vigente na academia francesa sobre onde e como localizar a política dentro do pensamento de Marx ou dos marxistas pode ter uma resposta insuspeita: a política sempre esteve lá, presente inclusive na própria forma da escrita de Marx. É possível ler as obras de Marx (notadamente o Manifesto Comunista) usando as chaves de interpretação da literatura “menor” deleuziana.

Assim, uma filosofia política digna de nota opera em permanente tensão com o tempo na qual é elaborada e materializada como obra (o que ressoa a tese deleuziana de que uma filosofia política hoje em dia precisa ter como centro a análise do capitalismo; como apesar de suas mudanças este sistema ainda é central na construção da sociedade, a tensão não desapareceu): tempos confusos como o crescimento do capitalismo industrial teriam, como contraparte, uma proposição política direta, em linguagem mobilizadora e clara. Marx pode ser claro, dentro do possível, na época em que escreve o Manifesto, pois aquele é um tempo convulsionado das relações entre economia e política.

Já em tempos mais burocráticos, ou administrados, uma filosofia política realmente comprometida com a ideia de ruptura e mudança do status quo capital-dominação teria características de expressão à primeira vista muito mais herméticas.

A inovadora e muitas vezes impenetrável linguagem deleuziana provoca um curto-circuito nas formas de pensamento de uma sociedade que atravessa a “trégua” do welfare state e vivencia a irrupção de maio de 68. Mas hoje em dia, um tempo no qual a linguagem “fácil” e irrefletida parece ser veículo para uma nova ascensão totalitária, a criação de palavras e conceitos parece operar como forma de divisão e alienação ao invés de abrir possibilidades revolucionárias. A abstrusão de conceitos e palavras de ordem no campo progressista faz com que ele torne-se autorreferente e deslocado dos processos do cotidiano para as pessoas ditas "comuns".

Não à toa, Deleuze dirá que o publicitário virou o grande "criador de conceitos" (ABC, letra R) - ou seja, o filósofo – da atualidade, pois a mensagem da mercadoria é cada vez mais simples de ser assimilada nos níveis racional e

emocional. Para re-tensionar a política, é preciso dizer de novo o que é a política, não o dizer a política de novas formas nem simplesmente com um novo léxico. O conceito do minoritário, presente em Deleuze, pode ser articulado com conceitos como comunismo, práxis revolucionária ou revolução permanente em uma dimensão eminentemente materialista e política, tema caro a ambos os autores (e que o herdariam, em algum grau, de Espinosa)?

Por fim, a problemática das sociedades de Controle, à qual Deleuze remeteu-se ao fim da vida, parece o campo par excellence para uma aproximação entre os dois autores e para uma análise que envolve os campos da economia, da política e da subjetividade como formadores do tecido social, partindo do duplo papel do desejo enquanto força de revolução e de conservação na sociedade. Se em 68 o desejo era visto como a força motriz para a derrubada do capitalismo e da opressão, a readaptação do capitalismo e dos mecanismos de dominação na sociedade passou exatamente pela imbricação máxima com esta potência, ao ponto dela tornar-se o combustível para a perpetuação destes.

É preciso, então, traçar um mapa sobre as formas pelas quais controle e desejo operam na sociedade, quais são as mudanças na matriz do capital e suas correlações com as mudanças nas formas de dominação e poder na sociedade e nas percepções e direcionamentos do desejo na contemporaneidade. O capitalismo hoje não trata apenas da produção de mercadorias, mas também da produção e direcionamento dos fluxos do desejo. A pergunta após 68 deixou de ser "como o fluxo do desejo é capturado e escravizado pelo capitalismo" para ser, talvez, a de como cria-se e fomenta-se um capitalismo na medida para satisfazer os desejos pelo caminho mais fácil - e isso subsumiu o desejo ao capital.

Se desejo é produção, produz-se também as formas para o direcionamento do desejo e sua satisfação. A produção da satisfação do desejo não estaria relacionada à falta fictícia do objeto, mas à destinação desse desejo para qualquer objeto, inclusive para o medo da ausência de um objeto ou da presença do concorrente na disputa pelos meios para atingir esta satisfação. É possível pensar no medo como imagem especular do desejo, ou como outra faceta deste, numa sociedade do medo do que se tem e do que não se tem. Medo como falta, não-produção de algo ou não-produção da ausência de alguma coisa?

Ainda que as sociedades disciplinares tenham sido habilmente descritas no século XX, este período presenciou exatamente a decadência dos poderes

baseados eminentemente na disciplina e comando externos, dando espaço a um híbrido interessante de máxima sedução (não a simples ordem ou norma) externa e rígida disciplina interna, auto-aplicada e confundida com segurança de si ao ponto da repressão e alienação42 serem desejadas e solicitadas pelos indivíduos como expressão de sua liberdade. O capítulo intenta realizar um mapeamento das formas de operação do controle nas sociedades do capitalismo neoliberal: descentralizado, com lideranças mutantes - o líder é um tipo de slot que é ocupado de acordo com a conveniência -, ideológico, horizontalizado e de vigilância de todos por todos e cada um.

A montagem deste dispositivo está relacionada ao desejo, como já aventado, e à expansão das formas de comunicação características destas sociedades (aquilo que Deleuze chama de marketing, mas que parece extremamente identificável com as problemáticas do fetiche da mercadoria em Marx e também da Indústria Cultural e Sociedade do espetáculo vistas por Adorno e Debord).

Além das consequências econômicas de uma sociedade na qual o conceito de ”empresário de si” define a subjetividade e o princípio da concorrência irrestrita 42 Importante relembrar o movimento do conceito de alienação em Marx: a) O trabalhador é estranho ao produto de sua atividade, que pertence a outro. Isto tem como consequência que o produto se consolida, perante o trabalhador, como um “poder independente”, e que,

“quanto mais o operário se esgota no trabalho, tanto mais poderoso se torna o mundo estranho, objetivo, que ele cria perante si, mais ele se torna pobre e menos o mundo interior lhe pertence”; b) A alienação do trabalhador relativamente ao produto da sua atividade surge, ao mesmo tempo, vista do lado da atividade do trabalhador, como alienação da atividade produtiva. Esta deixa de ser uma manifestação essencial do homem, para ser um

“trabalho forçado”, não voluntário, mas determinado pela necessidade externa. Por isso, o trabalho deixa de ser a “satisfação de uma necessidade, mas apenas um meio para satisfazer necessidades externas a ele”. O trabalho não é uma feliz confirmação de si e desenvolvimento de uma livre energia física e espiritual, mas antes sacrifício de si e mortificação. A consequência é uma profunda degeneração dos modos do comportamento humano; c) Com a alienação da atividade produtiva, o trabalhador aliena-se também do gênero humano. A perversão que separa as funções animais do resto da atividade humana e faz delas a finalidade da vida, implica a perda completa da humanidade. A livre atividade consciente é o caráter específico do homem; a vida produtiva é vida “genérica”. Mas a própria vida surge no trabalho alienado apenas como meio de vida. Além disso, a vantagem do homem sobre o animal – isto é, o fato de o homem poder fazer de toda natureza extra-humana o seu “corpo inorgânico” – transforma-se, devido a esta alienação, numa desvantagem, uma vez que escapa cada vez mais ao homem, ao operário, o seu “corpo inorgânico”, quer como alimento do trabalho, quer como alimento imediato, físico; d) A consequência imediata desta alienação do trabalhador da vida genérica, da humanidade, é a alienação do homem pelo homem. “Em geral, a proposição de que o homem se tornou estranho ao seu ser, enquanto pertencente a um gênero, significa que um homem permaneceu estranho a outro homem e que, igualmente, cada um deles se tornou estranho ao ser do homem”. Esta alienação recíproca dos homens tem a manifestação mais tangível na relação operário-capitalista.

rege as relações sociais, os desdobramentos políticos deste cenário não podem ser ignorados: se os indivíduos tornam-se “mercadorias de si”, o capitalismo também produziria os “fascistas de si” em busca da máxima eficácia. A repressão do desejo por sua satisfação extrema.

Como a combinação Marx-Deleuze poderia apontar uma linha de fuga para esta instabilidade política, ou uma forma de escapar de um estado de crise permanente tanto do capital como da política que lhe dá suporte? O capital, hoje, reproduz-se em modelos de crise perpétua, cuja gestão, inclusive psicológica pelo uso calculado do binômio medo-segurança, é maximizada para proporcionar as melhores oportunidades de produção de mais-valor e lucro.

Assumindo que a substituição da universalidade da luta de classes por táticas de desestabilização local, assim como a tentativa de relegar Marx ao ostracismo na análise política (inclusive ou principalmente por parte da esquerda) vitaminou um individualismo que facilitou o trabalho de dominação das forças de mudança social, a reinvenção das formas de atuação e ação de uma práxis progressista eficaz pode parecer uma tarefa impossível, que certamente esta tese não tem a pretensão de dar conta de forma plena. Porém, o pedido deleuziano permanece como uma meta e uma divisa a ser atingida: “não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas”. A questão do sentido da dialética é, antes de tudo e de mais nada, uma questão política. Às armas, portanto.