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3 DIFERENÇA NEGATIVA

3.3 Intermezzo dialético

3.3 Intermezzo dialético

Seeing more and feeling less/ Saying no but meaning yes This is all I ever meant/ That's the message that I sent (I Can´t Give Everything Away – David Bowie)

Se a dialética como contraponto de imagens de pensamento é abandonada por Deleuze, por seu compromisso com o real e com o materialismo, não se pode dizer que a dialética problema-solução é simplesmente descartada enquanto procedimento: é possível pensar que o método deleuziano de aproximação e ressonância com outros filósofos104 e sua articulação de conceitos e elementos de fora da tradição acadêmica podem ser, com alguma ou muita liberdade, pensados como um tipo aberto de dialética, pois tais articulações não caminham para uma síntese que esgote o assunto, e sim para abrirem novos pontos de apoio (de forma positiva, mas mesmo assim com uma mecânica interna dialógica-relacional).

Fazendo uma comparação próxima ao universo deleuziano, em música, a ressonância ocorre quando um emissor de ondas (a corda) vibra em uma frequência próxima (ou igual) à frequência natural de um instrumento. O corpo de um instrumento musical, um violão, por exemplo, é uma caixa de ressonância. As vibrações da corda entram em ressonância com a estrutura da caixa de madeira que

"amplifica" o som e acrescenta vários harmônicos, dando o timbre característico do instrumento. Ou seja: parte-se de duas ou mais fontes sonoras que interagem de forma sistêmica com o objeto, gerando não apenas a amplificação da nota, como produzindo harmônicos (frequências múltiplas da nota principal, derivadas desta, que de certa forma a contém. Os harmônicos compõem a nota principal assim como são realçados, abafados ou criados por ela.). Na afinação de um instrumento musical, a técnica de batimento dos harmônicos acaba por gerar um outro conjunto de ondas resultantes das duas ondas iniciais, de modo que o par de cordas está afinado entre si quando as ondas coincidem (se sintetizam), liberando toda a complexidade do campo harmônico – o timbre do instrumento.

104 O “pensar com” cf. MACHADO, 2009, passim. Isso é, em resumo, a ideia de aproximação dos planos de imanência da filosofia de Deleuze e de seus objetos de estudo. Deleuze não estabelece sistemas ou interpela os filósofos aos quais se dedica até mesmo por coerência aos pressupostos da filosofia da Diferença: estabelecer a crítica ou o negativo em relação ao pensador estudado não geraria a possibilidade de criação de novas formas de pensar a partir das relações com os conceitos destes pensadores. ZIZEK (2003) irá apontar este resíduo dialético no pensamento deleuziano, ainda que contestável.

Mais ainda: ao analisar-se a Lógica do Sentido deleuziana, percebe-se que esta não consiste em uma lógica excludente (onde os valores possíveis são apenas os de verdadeiro ou falso), mas sim em uma lógica de “condição da verdade” (ou sob quais condições a proposição X seria verdadeira – DeR, p. 25). Paradoxalmente isso levaria o movimento da lógica do sentido a efetuar uma série de contradições no melhor estilo dialético, notadamente se o conceito de diferença interna, em Deleuze, estiver atrelado à esta lógica. É preciso avançar nesta análise.

É sabido que, para Deleuze, “a diferença e a repetição tomaram o lugar do idêntico e do negativo, da identidade e da contradição” (DeR, p. 25). A razão para esta substituição seria o fato da diferença não implicar o negativo e não se deixar

“levar até a contradição, a não ser que na medida em que continua-se a subordiná-la ao idêntico” (DeR, p. 25). Como Deleuze busca pensar um conceito de diferença sem negação105, uma diferença que não seja redutível ao oposto do termo dado, ele considera que o negativo é uma ilusão (termo repetido insistentemente, aliás) e que a dialética seria “uma escolha moral que se levanta contra a diferença106”, um tipo de pensamento premeditado para impedir a diferença como multiplicidade.

A contradição, neste caso, se reduz à organização da diferença por meio de uma dialética entre finito e infinito na qual os termos se reportam mutuamente no seu processo de significação (noite e dia, um e muitos, ser e não-ser). Porém, isto não corresponde ao funcionamento da dialética, pois contradição não é apenas oposição formal. O limite de um termo, na negação determinada, faz parte da 105 Algo que ZIZEK observa: “O que permanece impensável para Deleuze é simplesmente uma negatividade que não seja simplesmente um desvio no caminho da auto-mediação do Uno” (2004 : 52)

106 SAFATLE, 2012. A crítica deleuziana, de acordo tanto com SAFATLE (2012) como NESBITT (1996), tem um componente moral que não pode ser desconsiderado, pois ao utilizar uma noção como ressentimento – encontrada também na posição nietzschiana sobre o tema – ou traição, Deleuze buscaria fazer um julgamento de valor sobre o método hegeliano e talvez sobre o próprio Hegel. Este procedimento, além de quebrar uma regra constante do método deleuziano – o respeito ao pensamento abordado – parece ter um caráter pessoal e polemista, o “nós X eles”, talvez incompatível com uma abordagem rigorosamente filosófica. A dialética pode realmente ser vista como uma “falha de caráter” de um filósofo? Se categorias com as quais Hegel trabalha como finito e identidade são a

“versão contemporânea do mal, agora chamado de ‘ressentimento’”, além de claramente ter se perdido o rigor necessário a uma análise, há uma confusão sobre a relação entre dever e paixão em Hegel. O pensador alemão critica violentamente posturas deontológicas de matriz kantiana, que promovem a cisão entre desejo e vontade, assim como a filosofia hegeliana pode ser vista como uma filosofia de transformação e atividade contínuas (o devir na história),o que é, segundo Safatle, “algo muito distante da fixação temporal própria a todo ressentimento”.

extensão do termo, e não pode ser reduzido a um simples jogo de oposições verbais. Levar um termo (seja o Senhor ou o burguês) ao seu limite é, dentro desta chave, leva-lo à exaustão, romper seu caráter identitário. As contradições da sociedade burguesa a levam ao ponto de ruptura: as relações das diversas forças na sociedade criam tensões e estados metaestáveis.

Logo, a identidade é um momento da diferenciação, e não o contrário.

Contradição e diferença não se colocariam em campos opostos nem uma é limitadora da outra. Toda identidade é metaestável, e não o fim do processo. Assim, o limite funciona inicialmente como força de indeterminação e depois como força de ressignificação do objeto.

Há outro fator a ser observado dentro da filosofia da Diferença: até certo ponto, a definição da positividade opera dentro de um mecanismo de purificação ou exclusão do negativo, que em si é uma forma negativa de conceituação: diz-se o que algo não é para se dizer o que este algo é. “O negativo não aparece nem pelo processo de diferenciação, nem pelo processo de diferençação. A ideia ignora a negação (...) exclui toda determinação negativa” (DELEUZE, 1968 : 276 apud NESBITT - tradução nossa). Porém, imaginaruma diferença interna livre de interação com o real ou o externo vai em sentido contrário ao próprio postulado deleuziano de que tudo é relação.

A diferença interna em si mesma assumiria a forma de uma “astúcia da razão”107? Se a ideia se diferencia de si em si, como Deleuze coloca, pode-se lembrar que o próprio Hegel aponta que todo ente - que na sua imediaticidade primeira se mostra ao observador como uma totalidade unificada, fixa - é internamente não-idêntico, auto-diferenciado e revela-se a si no tempo (talvez como uma duração). Em Hegel, de acordo com ELLRICH (1996), já encontra-se a diferenciação de si e a questão da multiplicidade caras a Deleuze, notadamente na Ciência da Lógica108.

107 No prefácio da Fenomenologia do Espírito, Hegel define a astúcia da razão como uma atividade do conhecimento que está absorvida dentro do próprio conteúdo do conhecimento, ou seja, ocorre na própria definição daquilo que é conhecido. A ideia de uma astúcia da razão aparece quando se tenta explicar uma complexa, e às vezes contraditória, sucessão de fenômenos. É uma ideia que se encontra com mais frequência nas explicações de fenômenos históricos. Comparativamente, se em Hegel o Espírito é o motor da história, ou como a razão mostra sua astúcia, em Marx é a Luta de Classes e em Deleuze seria a Diferença interna.

108 Ao dividir a lógica objetiva a partir das noções de ser e essência, Hegel busca introduzir uma “esfera de mediação, esfera do conceito como sistema das determinações de reflexão”.

Deleuze critica ferozmente a concepção hegeliana sobre a relação entre identidade e diferença, e rapidamente subsume a dialética em geral à rubrica de filosofia da identidade. Entretanto, Deleuze não observa que Hegel transforma a metafísica da substância em uma teoria das relações e (...), de fato, conceitualiza a reorientação do pensamento. Não totalmente em desacordo a Luhmann, Deleuze entende a famosa fórmula “identidade da identidade e diferença” como uma declaração unívoca sobre a prioridade da identidade sobre a diferença, não como uma figura que posiciona a co-originalidade de ambas. Ele não nota, entretanto, que a análise de Hegel sobre a identidade como determinação da reflexão resulta em uma “não-identidade absoluta-em-si” (LII, 41) (ELLRICH, 1996: 466-467)

A “identidade da identidade e diferença” pressupõe um Outro, ou muitos outros? Na Lógica do Sentido, algo está pressuposto: uma simultaneidade.

A lógica do sentido é necessariamente determinada a posicionar entre o sentido e o não-senso um tipo original de relação intrínseca, um modo de co-presença que por agora podemos somente sugerir, tratando o não-senso como uma palavra que diz seu próprio sentido. (LS, p. 85 – tradução e itálicos nossos)

Uma negação com dignidade ontológica, uma coexistência de fatores nominalmente opostos (senso/sentido e não-senso – negação de senso) e um valor diferencial (e existente) a aquilo que é colocado inicialmente como oposição. Muito da dialética marxiana – e estranhamente de sua base no próprio Hegel – parece estar contemplado neste raciocínio deleuziano.

A principal diferença qualitativa entre as visões marxiana e hegeliana da dialética pode estar na inserção e diálogo com o real: o movimento do pensamento somente se dá, na visão marxiana, a posteriori das condições de possibilidade e dos elementos dados pelo real109. Os polos desta dialética não podem, desta forma, A essência opera a função de mediação entre o ser e o conceito, e tal mediação permite que seja descartada uma noção fixa e identitária de objeto em benefício da ideia de que o

“objeto” é o nome dado a uma estrutura relacional. Conforme SAFATLE (2015), em Hegel “o conceito não é conceito de objeto, o conceito não tece relações biunívocas com objetos isolados. Antes ele é a formalização de relações entre objetos, o conceito é um conceito de estados de coisas”. Se isso for verdade, a influência de Hegel no pensamento de Marx se torna mais visível, pois este último também combate a representação em prol da relação.

109 Importante lembrar de um trecho crucial do prefácio à segunda edição de O Capital, onde Marx afirma que “por seu fundamento [Grundlage], meu método dialético não só difere do hegeliano, mas é também sua antítese direta [direktes Gegenteil]. Para Hegel, o processo de pensamento [Denkprozeß], que ele, sob o nome de ideia [Idee], transformada num sujeito autônomo, é o demiurgo do efetivo [Wirklichen], este apenas a sua manifestação externa”.

Se há alguma aproximação entre Ser e Ideia para Hegel, uma interpretação bastante difundida de sua teoria, em Marx “pelo contrário, o ideal [Ideelle] nada mais é senão o

deixar de estarem relacionados ao concreto: são concretos. A negatividade, ou a contradição, se dá entre elementos existentes, positivos. É a articulação entre eles que gera o suceder de contradições (ou multiplicidades?). O negativo pode ser entendido como uma não-realização de potencialidades, ou como a realização de um outro conjunto destas110.

Assim, o conceito de dialética poderia ser pensado de forma não totalizante ou diversa da síntese de opostos: uma diferença se dá a partir de uma relação (não necessariamente uma oposição ou negação) entre elementos. Em uma rede ou rizoma, os objetos não são determinados em sua totalidade (são sem totalização):"Subtrair o único da multiplicidade a ser constituída; escrever a n-1. Tal sistema poderia ser chamado rizoma." (MP, v.1, p. 13).

É preciso entender de que modo este conceito opera para que possa-se estabelecer mecanismos de produção na problemática analisada. A fórmula que o define não apenas evitaria a totalização (visto que sempre “falta” ou deriva algo) como também evita um Múltiplo que esteja, de alguma forma, subordinado a uma imagem prévia de pensamento.

"O que Guattari e eu chamamos rizoma é precisamente um caso de sistema aberto. Volto à questão: o que é filosofia? Porque a resposta a essa questão deveria ser muito simples. Todo mundo sabe que a filosofia se ocupa de conceitos. Um sistema é um conjunto de conceitos. Um sistema aberto é quando os conceitos são relacionados a circunstâncias e não mais a essências. Mas por um lado os conceitos não são dados prontos, eles não

material transposto [übersetzte] e traduzido [umgesetzte] para a cabeça do homem” . (MARX, Werke, Band 23, Berlin: Dietz-Verlag, 1998, p. 27)

110 Sabe-se da afiliação de Deleuze a uma crítica da negatividade baseada na visão de Bergson. Em Diferença e Repetição, o próprio conceito de diferença não é tensionado até o ponto da contradição ou negação. Todavia, o essencial do problema é compreender se aquilo que é chamado de negação no ambiente hegeliano/marxiano é a mesma coisa que é chamada assim no ambiente de Bergson e Deleuze. Será que os conceitos se equivalem?

Pode-se afirmar, sem temor, que a negação “alemã” é de outra matriz: para Hegel, assim como para Marx, Adorno e demais dialéticos, negação é quase sinônimo de alteridade.

Conforme SAFATLE (2015), já na Lógica da Essência hegeliana “ o Outro perde o aspecto de um exterior indiferente para se tornar aquilo que está desde o início indissociável de seu oposto”, o que inverte a visão comum da afirmação da Identidade como o elemento a priori – interpretação corriqueira na leitura francesa sobre a dialética - para uma nova definição da identidade que surge a partir da diferença. O objeto, ou sujeito, é fruto de uma estrutura relacional, e não o ponto que cria e normatiza a visão da realidade. Deste Outro, que surge tanto por diferenciação como por contradições, é que se torna possível localizar, ainda que temporariamente, um Eu. A essência funciona como passagem da substância (o ser) para ser apreendida como sujeito (o conceito). De forma muito esquemática, este é o mecanismo de operação interna na Ciência da Lógica. Entender esta diferença em relação à visão de senso-comum sobre a identidade em Hegel é crucial para entender a questão.

preexistem: é preciso inventar, criar os conceitos, e há aí tanta invenção e criação quanto na arte ou na ciência." (DELEUZE, Entrevista ao jornal Liberación, 23/10/80)

O rizoma é um sistema conceitual aberto, mas nem todo sistema com essa característica é, necessariamente um rizoma. Nem toda associação livre de pensamento funcionará desta forma: é necessário um resultado, uma produção.

Nem toda aproximação produzirá algo. "O rizoma conecta um ponto qualquer com outro ponto qualquer, e cada um de seus traços não remete necessariamente a traços de mesma natureza” (MP, V.1, p. 31). Ou seja, não submete o pensamento a uma relação causal ou a um princípio fundante: “põe em jogo regimes de signos muito diferentes, inclusive estados de não-signos. (). Não tem começo nem fim, mas sempre um meio, pelo qual ele cresce e transborda. Ele constitui multiplicidades" (MP, v.1, p. 31).

A “origem” é no meio. A gênese é puro devir, não estando relacionada ao termo “originário”. É criação, não retorno, sob critérios rigorosos111. Assim, a origem

“perde seu caráter de a priori englobante, ao passo que o múltiplo se subtrai à influência do Uno (n-1) e torna-se o objeto de uma síntese imediata, dita

"multiplicidade"”, para se evitar qualquer vestígio ou retorno de elementos do

“pensamento arbóreo” e do Uno no pensamento filosófico.

Assim, o pensamento remete não apenas à experiência, mas à experimentação, tirando o investigador de uma posição burocrática e reprodutora de conceitos preestabelecidos. O pensar rizomático não é representação de pensamento: busca-se um efeito real que altere a vida e o pensamento. “É aí que pensar conquista ao mesmo tempo sua necessidade e sua efetividade, reconhecendo os signos que nos obrigam a pensar porque englobam o que ainda não pensamos112”.

Desenha-se então um ponto de discordância entre o que se entende por dialética e o rizoma, pilar da diferença. A própria existência de termos que possam estar em relação é colocada em xeque. O rizoma está no meio, nunca no extremo, logo qualquer totalização é falha, visto que ou falta ou sobra uma possibilidade. Não 111 A “sobriedade” deleuziana consiste em “Não julgar previamente qual caminho é bom para o pensamento, recorrer à experimentação, erigir a benevolência como princípio, considerar enfim o método uma muralha insuficiente contra o preconceito, uma vez que ele conserva pelo menos sua forma (verdades primeiras)” (ZOURABICHVILI, 2004 : 52)

112 ZOURABICHVILI, 2004 : 53

é o que se pensa ou de onde se parte, mas o como se pensa. Não se trata de unidades ou totais, mas sim de linhas. Por isso a crítica deleuziana a respeito do Uno e do Múltiplo, como já abordado. Conforme Deleuze,

Um se torna dois: cada vez que nos encontramos com esta fórmula, mesmo que enunciada estrategicamente por Mao Tsé-tung, mesmo compreendida o mais “dialeticamente” possível, nós nos encontramos diante do pensamento mais clássico e o mais refletido, o mais velho, o mais cansado. () O livro como realidade espiritual, a Árvore ou a Raiz como imagem, não para de desenvolver a lei do Uno que se torna dois, depois dois que se tornam quatro A lógica binária é a realidade espiritual da árvore-raiz () Isto para dizer que este sistema de pensamento nunca chegou a uma compreensão da multiplicidade: lhe era preciso uma forte unidade principal suposta para chegar aos dois seguindo um método espiritual (MP-1, p.3)

Mas é preciso repensar, no vocabulário da dialética, o que significa a totalização: ela “não é mera recontagem, redescrição do que ocorreu, mas é construção performativa do que, até então, não existia113”. Em vez de um retorno que confirme as determinações anteriores, aponta-se para uma indeterminação de conceito ou de objeto. Logo, o proceder dialético não retorna a uma definição preconcebida do ser, do ente ou do real, mas ao não determina-los, revela mais sobre eles do que parece114. Simultaneamente, nega e afirma o que está pressuposto – aquilo que faz parte do processo e o desencadeia.

Há uma outra questão a ser mostrada: existe uma diferença brutal entre a chave dialética de divisão “o um se divide em dois115” e o “um se torna dois” da introdução do platô Rizoma. A divisão dialética mostra a a inexistência do Uno como entidade, somente como cisão. Somente há consciência da existência da entidade a partir de um corte que marca, inicialmente, o que está para além dessa pseudo-unidade. Ou seja, a tomada de consciência do Um dá-se por meio do movimento.

Tudo é processo, não identidade. Esta tomada de consciência não seria uma afirmação ou fortaleza do Uno, mas um sinal de sua precariedade e 113 SAFATLE, 2015: 40

114 Nas palavras de GATTI (2009, online), “Dialética significa, antes de tudo, que a coisa não é idêntica ao seu conceito. A inscrição histórica do potencial crítico desta concepção de dialética está na configuração da identidade como a forma atual da ideologia, exigindo uma transformação da noção mesma de crítica da ideologia: não mais apontar a diferença entre realidade e conceito em vista da realização futura deste, mas expor a diferença entre coisa e conceito diante de sua identidade social aparente. A dialética torna-se materialista quando adquire consciência desta não-identidade entre coisa e pensamento.”. Logo, materialismo não é identitário, mas diferencial.

115 Cfe. BADIOU (1997, p. 45)

impermanência116.

A metaestabilidade de estados, defendida por Deleuze, é em si um sistema no qual os elementos se mostram em um equilíbrio precário, em permanente tensão.

Desta tensão surgem as possibilidades de devir, de forma aberta. Isso também encontra-se em Marx, em certo grau. Há uma articulação de elementos e procedimentos diferentes que pode ser explorada. A multiplicidade do real, sua característica rizomática, é de certa forma encontrada no próprio Marx na Contribuição à Crítica da Economia Política, quando analisa que o concreto assim o é pois “é a síntese de múltiplas determinações, portanto unidade da diversidade117”.

Nós ou encontros de fatores diversos. Outro trecho de Marx que deve ser levado em conta nesta análise em especial encontra-se em sua tese de doutoramento sobre Demócrito e Epicuro, sendo possível pensar o ser social como atomon e simultaneamente diferencial/múltiplo apenas por ser concreto.

Como existe em grande número, cada átomo possui em si mesmo a diferença que o distingue de todos os outros; logo, é em si mesmo uma multiplicidade. Mas ele existe simultaneamente na determinação do átomo, o que obriga a que a multiplicidade seja nele, de um modo necessário e imanente, uma unidade; isso acontece no átomo pelo simples fato de existir.(DDE, p. 15) 118

Se, para o pensador alemão, não é a consciência que transforma as relações materiais, mas estas que transformam aquela, as ideias são impregnadas das relações do mundo em que se vive, entrando em tensão com a realidade material, transformando as condições históricas em um devir.

Se, para o pensador alemão, não é a consciência que transforma as relações materiais, mas estas que transformam aquela, as ideias são impregnadas das relações do mundo em que se vive, entrando em tensão com a realidade material, transformando as condições históricas em um devir.