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3 DIFERENÇA NEGATIVA

3.1 A palavra mágica

possível partir da suposição de uma diferença conceitual sobre os significados de termos como negativo, mediação, representação e dialética. A crítica deleuziana à dialética procede? A positividade exclui necessariamente o “negativo”? O problema da representação tem um caráter político?

3.1 A palavra mágica

Deleuze sabe que a filosofia da diferença pode ser vista com ressalvas e trata de buscar blindá-la contra seus futuros críticos, especialmente os de tradição hegeliana 76 . A diferença, como positividade irrestrita, poderia ser acusada exatamente do apoliticismo e da falta de conexão com o real da qual quer escapar, além de não parecer se ajustar com a ideia de um materialismo enquanto a

“concepção de mundo como uma monstruosa coleção de forças e arranjos que estão sempre constituindo modos de existência ao mesmo tempo que os destroem”77. A acusação de bela alma78 a uma filosofia é, em síntese, chamá-la ou 76 Importante observar que o caminho da crítica hegelo-marxiana a Deleuze não é simétrico ao da crítica deleuziana a Hegel e Marx. Muitas vezes, a ortodoxia marxista cobra da filosofia da Diferença elementos que seriam melhor direcionados ao foucaultianismo, como uma ambiguidade em relação à política (um mover-se de acordo com as ondas) e a ojeriza a uma tomada de posição clara em relação às lutas de classe, como vê-se na áspera crítica de Jean-Marc Mandosio ao trabalho de Foucault. A política em Deleuze certamente não pode ser acusada desta oscilação.

Uma crítica mais agressiva e talvez mais precisa é efetuada por BADIOU (1977), que aponta que a articulação política esboçada por Deleuze assume um caráter “intelectual pequeno-burguês”, pois ainda que seja melhor uma tormenta de revoltas do que a tutela unificadora da política burguesa, o rechaço à militância tradicional por parte de D&G esconde, para Badiou, uma ojeriza ao recorte de classe, que é central no capitalismo: “Trata-se de um chamado às revoltas de massa, menos o fator da unidade antagônica, ao menos a passagem que elas sofrem pelo ponto de vista da classe. Trata-se de um chamado às forças da revolução menos o partido proletário.”(BADIOU, p. 50)

77 THOBURN, 2003 :8. Esta afirmação sobre o materialismo deleuziano, a despeito de ser associável em um primeiro momento a Nietzsche, parece ecoar o Marx do Manifesto Comunista e a famosa afirmação de que o que é sólido se desmancha no ar. O materialismo de Deleuze (e talvez o de Marx também) concebe o mundo não somente sem finitude, mas também sem sujeitos ou objetos demarcados. Isto não é uma refutação da existência das coisas, mas sim uma recusa de apresentá-las com algum tipo de primazia ontológica ou epistemológica. As leituras de Espinosa realizadas por ambos os autores podem fornecer dados para o entendimento desta concepção de materialismo.

78 Conforme Hyppolite, o conceito de bela alma em Hegel origina-se no texto Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister, de Goethe, no qual o personagem principal afirma sua consciência moral como uma convicção absoluta. A bela alma tem como objetivo a conciliação “do dever rígido com a inclinação espontânea da Natureza” (HYPPOLITE, p.

541), o que ocorre por meio do sentimento e da beleza. Na prática, porém, tal boa consciência mostra-se seu inverso, ainda que as intenções das ações sejam positivas.

desconectada com o real ou de covarde, pois na hora em que a ação seria necessária, ela recuaria a uma posição de contemplação pura. A bela alma é uma certeza absoluta de si, e também a expressão de uma razão voluntariosa, pois sob sua determinação todos os conflitos poderiam ser resolvidos. Uma crença bastante otimista nos poderes do esclarecimento, diga-se de passagem.

NANCY (apud ALLIEZ, 2000) afirma que a filosofia deleuziana não tem o real como objeto, pois não há objeto no sentido estrito da palavra: o real é o caos, uma efetividade sem efetuação, e os objetos seriam as efetuações desta efetividade (ecoando o pensamento nietzschiano de que não há fatos, apenas interpretações derivadas dos valores históricos). Assumindo isso como verdadeiro, seria bastante simples acusar o pensamento político deleuziano e, por extensão, a filosofia da diferença de ser uma abstração, pois uma interpretação, apesar de ser relacionada ao real, pode ser simplesmente uma ficção.

A ideia de bela alma poderia representar simplesmente uma visão bastante otimista dos processos e agenciamentos envolvidos na compreensão do tecido social, ou uma criação livre de sentido que poderia soar como, no mínimo, conformista. Fazendo um paralelo tipicamente deleuziano, não seria Alice no País das Maravilhas como protagonista, mas sim Poliana agenciando o Jogo do Contente79.

Adotar essa posição para o trabalho com o pensamento deleuziano seria privá-lo de seu maior trunfo: a capacidade de criação como uma forma original de buscar soluções onde estas não estão aparentes. A alegria do projeto deleuziano não pode ser confundida com um otimismo inocente e muito menos com uma 79 No livro de Eleanor H. Porter, Poliana é uma pré-adolescente que possui um otimismo inabalável: toda situação, por mais escabrosa que seja, é vista por ela de forma positiva, eliminando a negatividade de qualquer maneira (entendendo aqui negatividade no seu sentido comum). Certamente Deleuze não pratica a mesma postura da garota, mas é uma interpretação comum – ainda que equivocada, como a tese busca mostrar - sobre seu pensamento uma tendência ao conformismo e à busca de triunfos pontuais, que não significariam uma revisão ou modificação concreta de parâmetros na sociedade. Novamente a crítica de BADIOU (1977; 1997) aponta nessa direção, afirmando ainda que as diferenças em ideia acabam por reforçar dramaticamente o poder do UM tão combatido por Deleuze, e isto estaria visível já na famosa fórmula n-1, que funcionaria como um reforço da identidade e não o contrário: “Mas essas multiplicidades, que só são puras graças a esse “menos”, se validam no exterior de si mesmas com isso que perdura, intacto, do Um que lhe é irredutivelmente hostil.”(BADIOU, 1977, p. 50). Isso faria, de acordo com Badiou, o retorno ao UM burguês, pois a precondição de afirmação dos múltiplos, a manutenção de sua pureza ontológica, somente é possível por contraste à unidade, que acaba por se reafirmar no processo.

integração reformista ao modelo vigente. Deleuze combate a prioridade do pensamento sobre a matéria não para inverter estas posições, mas para estabelecer relação entre tais domínios. Em defesa da radicalidade de seu projeto, Deleuze é curto, mas enfático, em um comentário diretamente endereçado à Fenomenologia do Espírito hegeliana:

Evidentemente, a filosofia da diferença deve temer, aqui, entrar no discurso de uma bela alma: diferenças, só diferenças, numa coexistência pacífica, em Ideia, dos lugares e funções sociais...Mas o nome de Marx basta para preservá-la desse perigo. (DeR, p.197-198, itálicos nossos)

Como a invocação do nome de Marx afasta o perigo da bela alma? Seria isso apenas uma provocação, um talismã ou uma boutade? Pode-se considerar que Deleuze insinua aqui, de forma sutil, que a Filosofia da Diferença encontra um de seus pontos de apoio e geração em Marx, e não apenas em Nietzsche e Bergson80, como comumente aceito. Afinal, a ideia de que diferenças são sempre conciliáveis ou possam coexistir pacificamente não corresponde ao que ocorre na realidade, um campo de tensões e forças disputando espaço de forma violenta.

O real (o social) é um campo de batalha que exige posicionamento e no qual as coisas estão em perpétua metaestabilidade, um sistema no qual as relações “se tornam antiquadas antes que possam se ossificar81”. O mundo seria, então, um campo de revoluções permanentes - a não-cristalização do processo de interpelação da realidade, já que a separação entre estado e sociedade cindiu o próprio terreno da política.

O nome de Marx não é apenas um recurso de linguagem: significa a defesa da filosofia deleuziana perante a crítica de interpretações mais ortodoxas do 80 A defesa em questão parece remeter a um debate ocorrido no passado entre Adorno, Heidegger e Bergson, mas referenciado pelo primeiro em sua Dialética Negativa. Adorno não abdica das mediações, mas as expande exatamente para forçar a impossibilidade da síntese. Para ele, é impossível não existir ao menos um nível de mediação, pois o próprio reconhecimento do caráter do dito imediato, do impacto inicial do fato sobre o ser, envolve um movimento reflexivo do pensamento. Pensa-se o tempo todo, ininterruptamente, e todo pensamento é mediação. O pensar sobre o imediato já é em algum nível mediação. A intuição também. Não existiria uma percepção imediata, pois a percepção de um fato (ou da impressão causada pelo fato) é mediada em algum nível pelo que percebe. Desta forma, não existiria um “fato puro”. O descarte do sal dialético em prol da imediaticidade dos dados da consciência recairia no idealismo que pretensamente se buscaria abandonar. Como seria possível produzir uma diferença caso o fato puro e a consciência/percepção do fato sejam símiles?

81 MC, p. 37

hegelianismo e também uma tomada de posição política de Deleuze – no sentido de aliança - com um engajamento claro ao materialismo e à ação. A formulação mais sucinta da diferença interna, por Deleuze, relacionada à duração em Bergson, é a de que esta “é o que difere ou muda de natureza, a qualidade, a heterogeneidade, o que difere em si” (DeR, p. 38). Mas isso não seria um retorno, ainda que tortuoso, à identidade? A ideia, a duração, como o que difere de si mesma, ainda que signifique a recusa da totalidade, pois algo é subtraído dela, acabaria por indiretamente remeter ao conceito do qual buscaria se libertar.

A estratégia de Deleuze para escapar desta crítica é reforçar o caráter materialista da filosofia da diferença trazendo Marx para o debate, fazendo referência à necessidade de revisão da imaterialidade da síntese dialética hegeliana (o que Marx chama de “colocar a dialética sobre seus próprios pés”)82. Deleuze usa o “nome de Marx” como uma proteção contra a acusação de que a Filosofia da Diferença possa ser reduzida à “bela alma”, ou uma diferença apenas em ideia. O real é o campo da produção incessante de elementos, e mesmo uma ideia, ao ser pensada, assume certa dimensão material por ser fruto de relações que ocorrem no existente e por ser elemento que influenciará as relações materiais em algum nível.

O pensar é fruto de um encontro, que força sua ocorrência. Seria efeito, não causa83.

Deleuze apresenta o conceito de produção como um corte profundo entre as filosofias de Marx e Hegel: para a leitura deleuziana de Marx (e claramente baseada, à época, em Althusser, como Deleuze aponta84), a divisão social do trabalho substituiria com vantagem os conceitos hegelianos de oposição, contradição e 82 O que ressoa, ainda que de forma transcendente e não-dialética, a crítica do próprio Adorno a Hegel, supondo-se que Marx funciona como uma proteção de Deleuze em relação ao debate Adorno-Bergson abordado anteriormente.

83 É neste sentido que a crítica de Adorno a Bergson em relação à atemporalidade idealista que o devir pretensamente material assumiria - e à dialética inconsciente nos conceitos de tempo e vivido que Bergson busca negar - pode ser dirigida apenas de forma parcial a Deleuze.

84 Em Diferença e Repetição, Deleuze considera que os althusserianos tem “profunda razão”

ao propor uma leitura estruturalista de O Capital, recusando uma tradição de leitura vinculada ao historicismo (e talvez, por tabela, a uma leitura baseada na Filosofia da História). Um problema da interpretação althusseriana, porém, é apontado por FAUSTO (2015) não apenas na dita centralidade do conceito de produção como também no fato de que a abordagem dos althusserianos acaba por realizar uma crítica unilateral – logo, para Fausto, uma crítica falsa – de um suposto antropologismo na dialética marxiana. Ao não realizar o movimento crítico em dois sentidos, a visão estruturalista acabaria por retornar ao próprio antropologismo que tanto critica.

alienação ao serem usados para a análise das transformações no seio da multiplicidade social.

Ao problema do trabalho abstrato, é possível opor a diferenciação resultante da divisão do trabalho concreto. Deleuze argumenta que junto à solução, há a projeção de uma falsa imagem do problema: o problema (ou sua sombra) persiste de alguma forma: “o problema sempre se reflete em falsos problemas, ao mesmo tempo que ele se resolve, se bem que a solução encontre-se geralmente pervertida por uma inseparável falsidade85”. A escolha do fetichismo como exemplo desta permanência do falso não é gratuita: o fetichismo é uma ilusão sim, mas fruto de condições sociais, não de um trabalho da consciência. Ou seja, Deleuze busca reforçar o caráter materialista da filosofia marxiana e uma ruptura de Marx com o idealismo hegeliano. Porém, uma diferenciação em relação a Hegel não faz de Marx um anti-hegeliano.

É importante demais salientar que o uso da crítica de ambos a Hegel não ocorre com o intuito de caracterizar acerto ou precisão dos autores, nem como uma condenação prévia do pensamento hegeliano ou a eleição do dito filósofo da Unidade como um espantalho, mas para mostrar a proximidade nas percepções de Marx e Deleuze sobre estes conceitos em especial. A frase de Deleuze também representa uma ressonância à crítica que o próprio Marx faz à dialética hegeliana86 85DeR, p. 196. Há uma estranha semelhança de procedimentos nesta afirmação de Deleuze com uma visão da dialética na qual a proposição de um problema contém, de alguma forma, sua contradição de forma implícita, presente nos conceitos de “solução verdadeira” e “falsa solução” como elementos em constante articulação. Há, também, um certo julgamento de caráter moral quando se argumentam conceitos como verdadeiro e falso aplicados a ações.

Deleuze começa aqui a preparação de uma crítica mais severa ao negativo, a ser explorada no decorrer do trabalho.

86 Esta dupla crítica pode ser entendida se Hegel for tomado como uma espécie de espantalho na filosofia francesa contemporânea. A crítica deleuziana sobre o hegelianismo soa apressada demais, ainda que pertinente e necessária, e bastante influenciada por Lógica e Existência de Jean Hyppolite. O Hegel de Hyppolite, de acordo com VITALE (2014), é sufocante e faz-nos sentir “claustrofobicamente estrangulados”: “Aqui chegamos talvez no ponto decisivo do hegelianismo, nesta torção do pensamento por meio da qual nos é possível pensar conceitualmente o impensável.não podemos emergir do Logos, o Logos emerge de si permanecendo em si; por ser o Absoluto, pensa o não-pensável, o não pensamento. Pensa o sentido em sua relação com o não-sentido, com o opaco ser da natureza.” (LE, 26-7). O afastamento de Deleuze em relação a este Hegel, ou melhor, a esta interpretação de Hyppolite sobre Hegel, é necessário para o estabelecimento da filosofia da diferença como uma filosofia não identitária. O mesmo Hyppolite observa que a crítica de Marx a Hegel está sedimentada em um inteligente movimento no qual Marx projeta a antropologia especulativa de Feuerbach para dentro da Fenomenologia do Espírito, o que transforma toda objetificação em alienação, toda alienação em alienação humana e toda a história da alienação do espírito na história da alienação do ser humano. (DIEFENBACH,

na “Crítica da Dialética e Filosofia hegelianas em geral” (MEF, p. 115-137) e em comentários feitos em uma carta a Engels (janeiro de 1858), na qual Marx fala sobre o projeto de expor ao “leitor comum o núcleo racional do método dialético que Hegel descobriu, mas também mistificou” (G., p. 23, itálico nosso). A natureza desta mistificação é, para Marx, a imaterialidade da síntese dialética hegeliana.

Em Hegel, o processo do pensamento, que ele transforma, sob o nome de ideia, em sujeito autônomo, converte-se numa espécie de demiurgo do real, real que seria apenas o instrumento para a sua manifestação exterior. Para mim, ao contrário, o ideal nada mais é do que o material transposto para a cabeça do ser humano. Em Hegel a dialética está de cabeça para baixo.

Para que se descubra o núcleo racional no interior do invólucro místico, é necessário coloca-la de cabeça para cima (CFDH, p. 15).

De forma similar, Deleuze considera a dialética hegeliana a realização mais acabada do pensamento abstrato e, portanto, não é possível encontrar aí qualquer análise da realidade, apenas um esquema a priori elaborado logicamente. Ao contrário da afirmação de que “o racional é o real”, para Deleuze a dialética de Hegel é o exemplo de como a racionalidade pode estar distanciada das coisas.

Isso é evidente na crítica deleuziana à dialética do Uno e do Múltiplo, à passagem da qualidade à quantidade. Esta crítica abrigaria também uma tomada de posição política e material, além da interpretação costumeira de que o retorno ao Uno é uma operação mental necessária para se atingir a um absoluto. Uma leitura do próprio Hegel pode dar sustentação a esta ideia ao descrever o problema conceitual presente - em sua visão - nos atomistas antigos, que privilegiariam o caráter do múltiplo:

Quando fala das moléculas e das partículas, a Física, nos átomos, sofre do principio da suprema exterioridade e, com isso, da suprema aconceitualidade, assim como com a Ciência do Estado, que parte da vontade singular dos indivíduos. (HEGEL, apud HARDT, 1996 : 42)

A comparação estabelecida entre o Uno e o Estado, que parte da vontade singular (multiplicidade) em direção a uma forma mais bem acabada (a síntese), colocaria a relação Uno-Múltiplo em Hegel como fundação para uma teoria de organização social baseada na primazia do Estado na formação do tecido social. Do 2013, p. 172). É possível afirmar que esta leitura de Hyppolite, bastante influenciada pelas críticas de Nietzsche e Heidegger sobre a obra hegeliana, acaba por deixar de lado as possibilidades da dialética, tanto de Marx como do próprio Hegel, como produtora da diferença, e não como redutora do pensamento à unidade.

Uno (estado, lei) deriva o Múltiplo (social) que se reconcilia no Uno (um estado mais aperfeiçoado, como o prussiano).

É possível enxergar aqui uma cisão clara entre Estado e Sociedade civil, vista como o “negativo” do estado (o que não significa dizer que ela negue o estado ou seja refratária a ele, apenas que por vezes operariam em uma relação de antagonismo). Aplicar a fórmula dialética “clássica” aqui separa as instâncias em um primeiro momento e prometeria uma conciliação em um Estado melhor acabado, que passa a regular a sociedade civil. A lei, nesta interpretação bastante simplificada de Hegel, ao regular a sociedade acabaria por formá-la.

A crítica de Deleuze segue o norte da não-separação entre os termos. Não há primazia do Estado sobre a sociedade nem em sua formação: o socius é

“divorciado” do estado não por serem incompatíveis, mas sim porque um não se reduz ao outro (há concomitância, não uma relação de subsunção ou temporalidade, apenas inter-relação).

Interessante notar que Deleuze, atacando a dialética do Uno e do Múltiplo, refaz o caminho esboçado por Marx em outras de suas críticas a Hegel: a crítica da dissociação entre o Estado e o tecido social e a abstração derivada disso. Em Marx, o estado hegeliano é visto como uma fantasmagoria, assim como a própria conciliação de opostos que caracteriza a dialética hegeliana é reduzida a uma abstração.

Hegel comete um duplo erro. O primeiro aparece mais claramente na Fenomenologia, o berço de sua filosofia. Quando Hegel concebe a riqueza, o poder do Estado, etc., como entidades alienadas do ser humano, ele as concebe somente em sua forma de noções. Elas são entes de razão e, assim, simplesmente uma alienação do pensamento puro (i. é, filosófico abstrato). O movimento inteiro, por conseguinte, acaba no conhecimento absoluto. É exatamente o pensamento abstrato de que esses objetos se acham alienados e enfrentam com sua presunçosa realidade. O filósofo, ele próprio uma forma abstrata de homem alienado, instala-se a si mesmo como a medida do mundo alienado. Toda a história da alienação, e do retraimento da alienação, portanto, é apenas a história da produção de pensamento abstrato, i. é, de pensamento absoluto, lógico, especulativo.

(CFDH, p. 121)

Ao observar que o estado não é formado apenas por indivíduos burgueses, Marx se volta contra uma versão idealizada não apenas do sujeito como do próprio processo social. A totalização promovida pelo Estado é, já em Marx, vista como abstrata e inexequível, pois não substitui os elementos particulares, apenas busca

impor-se sobre estes. Proclamar distinções e diferenças como não-políticas apenas mostra o quanto elas são políticas de fato. Conforme o autor alemão,

O Estado elimina, à sua maneira, as distinções estabelecidas por nascimento, posição social, educação e profissão, ao decretar que o nascimento, a posição social, a educação e a profissão são distinções não políticas; ao proclamar, sem olhar a tais distinções, que todo o membro do povo é igual parceiro da soberania popular, e ao tratar do ponto de vista do Estado todos os elementos que compõem a vida real da nação. No entanto, o Estado permite que a propriedade privada, a educação e a profissão atuem à sua maneira, a saber: como propriedade privada, como educação e profissão, e manifestem a sua natureza particular”. Portanto, “Longe de

O Estado elimina, à sua maneira, as distinções estabelecidas por nascimento, posição social, educação e profissão, ao decretar que o nascimento, a posição social, a educação e a profissão são distinções não políticas; ao proclamar, sem olhar a tais distinções, que todo o membro do povo é igual parceiro da soberania popular, e ao tratar do ponto de vista do Estado todos os elementos que compõem a vida real da nação. No entanto, o Estado permite que a propriedade privada, a educação e a profissão atuem à sua maneira, a saber: como propriedade privada, como educação e profissão, e manifestem a sua natureza particular”. Portanto, “Longe de