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3 DIFERENÇA NEGATIVA

3.2 O problema da representação

3.2 O problema da representação

Há uma diferença importante, no entanto, entre a forma pela qual Deleuze e Marx lidam com o problema da representação do pensamento. O primeiro busca pensar para além da representação, notadamente sobre a possibilidade de pensar uma ontologia. O pensamento representacional giraria em falso, retornando à afirmação de uma unidade da identidade, onde até mesmo a oposição entre elementos funcionaria apenas como reafirmação do elemento inicial (como se ao dizer-se“ser” e “não-ser” somente fosse possível determinar o segundo em um retorno ao primeiro). A filosofia da Diferença não pode admitir tal operação.

É importante notar que, sobre a determinação de predicados ao sujeito, desde a Antiguidade a representação é uma determinação por “oposição, identidade, semelhança e analogia98”. Porém, o pensamento, em Deleuze, é uma atividade criadora, violenta até. Antes de montar-se um esquema de representação que dê conta do pensamento, é preciso literalmente redefinir o conceito de pensamento como cria e não como reflexãor: o próprio ato de pensar é trespassado por uma potência de criação – ou só ocorre tendo esta potência como motor.

O que é primeiro no pensamento é o arrombamento, a violência, é o inimigo, e nada supõe a Filosofia; tudo parte de uma misosofia. Não contemos com o pensamento para fundar a necessidade relativa do que ele pensa; contemos, ao contrário, com a contingência de um encontro com aquilo que força a pensar, a fim de erguer e estabelecer a necessidade absoluta de um ato de pensar, de uma paixão de pensar. As condições de uma verdadeira crítica e de uma verdadeira criação são as mesmas:

destruição da imagem de um pensamento que pressupõe a si próprio, gênese do ato de pensar no próprio pensamento. (DeR, p. 230)

O pensamento representacional tem como características fundantes ser norteado por um senso-comum (responsável por construir uma imagem dogmática do pensar) e por uma relação pressuposta entre o que é pensado e a busca de verdades universais e atemporais, como se o pensar, automaticamente, buscasse o que é verdadeiro.

98 Cfe. SAFATLE (2009), os princípios em questão são a identidade em relação ao conceito, a analogia entre julgamentos, a oposição entre os predicados de um mesmo sujeito ou entre sujeitos exteriores e a semelhança entre os objetos percebidos. Desta forma, no interior deste modo de disposição que funda aquilo que Deleuze chama de “representação orgânica”, a diferença distingue-se da diversidade e da alteridade, aparecendo submetida à oposição, que é elevada à condição de diferença fundamental.

O foco deleuziano passa a ser o combate ao modelo da recognição, no qual afirma-se que conhecer é, no fundo, re-conhecer por meio do uso congruente das faculdades da razão. Reconhecer o que permanece idêntico a si é reconhecer a própria verdade, assim como a verdade do modelo está corroborada por sua identidade, por ser idêntico a si mesmo. Esta é uma relação essencialmente contemplativa entre pensamento e mundo.

Tal modelo é baseado na distinção platônica entre os mundos inteligível e sensível. Porém, Deleuze nota que a distinção entre estes mundos é apenas parte da questão. Outra distinção, mais profunda e fundamental, perpassa a filosofia de Platão e, por extensão, a de todo o ocidente: a separação entre cópia (duplicata que conserva uma boa relação com a coisa mesma ou com a essência99 presente no mundo inteligível) e o simulacro, que não possui este atributo. Representar seria, então, buscar a identidade das coisas, reproduzir de alguma forma sua essência. A identidade que existe entre a cópia e o copiado é indicativo da verdade do modelo.

Já o pensamento anti-representacional faz uma distinção entre o pensamento (ou o pensado) e o ato (a ação) de pensar. O ato de pensar é efeito da relação entre pensamento e signo. Este é aquilo que retira do pensamento o caráter abstrato, retira seus pressupostos representacionais. O signo se torna aquilo que nos obriga a pensar, por impedir a recognição: é o novo e inesperado. Assim, o ato de pensar gerado pelos signos é o pensamento criador.

O que nos força a pensar é o signo. O signo é o objeto de um encontro; mas é precisamente a contingência do encontro que garante a necessidade daquilo que ele faz pensar. O ato de pensar não decorre de uma simples possibilidade natural, é, ao contrário, a única criação verdadeira. A criação é a gênese do ato de pensar no próprio pensamento. Ora, essa gênese implica alguma coisa que violente o pensamento, que o tira de seu natural estupor, de suas possibilidades apenas abstratas (PeS, p. 96).

Se o ato de pensar é efeito do encontro do pensamento com os signos - e estes interpelam a segurança da representação – o ato possui materialidade, 99 De acordo com Deleuze, o conceito de essência na filosofia platônica guarda uma relação estreita com o conceito de identidade: a essência é o modelo primeiro, imutável, aquilo que é idêntico a si próprio. Já para ele a essência é parte das séries, e é variável de acordo com o tipo de encontro que ocorre entre pensamento e signos, pois estes encontros marcarão cada indivíduo de modo particular. A essência, ou ponto de vista, é o caminho pelo qual se produz uma verdade parcial e implicada na realidade. A essência não é universal, mas sim individualizante e produtora de diferença.

entendendo esta como sua ocorrência no mundo ou na realidade à qual o encontro acontece. Assim, o ato de pensar é parcial e implicado, pois é efeito de determinados signos em particular: é a forma pela qual o indivíduo interpreta os signos que o atingem. Desta forma, suas verdades não são fruto da vontade, da consciência ou do inteligível, mas da realidade em si.

Para Deleuze, não seria uma tarefa difícil separar a produção filosófica em dois grandes campos: os filósofos afiliados à tradição da representação (como Platão, Kant e principalmente a sua nêmese Hegel100) e os que se afastam deste modelo abrindo espaço para a diferença, como Nietzsche, Espinosa e Foucault.

Porém, há um silêncio de Deleuze sobre qual seria a posição de Marx neste embate.

O que é possível aferir é que Marx vê relação direta entre produção de representações e a vida material dos seres humanos, estando a primeira ligada à 100 Novamente é preciso questionar se esta posição de Deleuze não é baseada em uma leitura enviesada da filosofia hegeliana, até mesmo pelo amálgama operado entre representação e dialética. Deleuze considera a posição hegeliana muito próxima à de Aristóteles, já vista anteriormente, sobre a diferença e a determinação. Se a diferença específica aristotélica pode ser pensada por Deleuze como uma forma de submissão da experiência da diferença às limitações representacionais do conceito – o que transformaria a diferença apenas em uma enunciação de predicados – ao passar para Hegel a contradição dialética seria apenas uma forma radicalizada da contrariedade aristotélica. Porém, Hegel não pensa os polos de uma dialética como fruto de relações de exterioridade. Logo, não é possível reduzir a contradição à contrariedade nem a algum tipo de incompatibilidade material (volta-se a pensar, apenas como ilustração em chave marxiana, como uma visão do proletário como incompatível ao burguês simplesmente arruinaria a dinâmica da luta de classes). A saída de Deleuze para este problema é propor que a representação, de alguma forma, tenta englobar sua negação, capturando o “sentimento” da infinitude: a assim chamada “representação orgiastica”, quando o conceito opera a internalização das diferenças exteriores a ele, e aquilo que não cabe nas amarras do conceito seria jogado para a categoria do negativo. O ponto duvidoso nessa interpretação, que ecoa as críticas de Heidegger e Nietzsche sobre a dialética, está no fato de que o próprio Hegel, na Fenomenologia, coloca a contradição como um “índice de verdade” e não como um sinônimo de contrariedade ou impensável. A contradição deve ser pensada e tensionada até desarticular aquilo que estava fundado anteriormente, levar a identidade até o ponto na qual exatamente por sua invocação percebe-se que não se sabe mais do que se falava.

SAFATLE (2012) observa que “O Espírito não é uma consciência hipostasiada, mas outra forma de pensamento, radicalmente distinta da forma de pensamento que define a consciência. A Fenomenologia do Espírito não é uma antropologia da consciência, nem a consciência infeliz é seu destino final, o que seria bizarro já que Hegel criou tal figura da consciência para dramatizar as clivagens próprias à consciência moral kantiana, que ele critica”. Em suma, pensar o conceito significa pensar para além da representação, e não circunscrever o pensamento a ela. Deleuze parece não levar isso em conta na sua crítica. O interessante é que esta crítica sobre a relação conceito e representação não é nova.

Schelling, em carta a Hegel, observa: “Reconheço não apreender até aqui o sentido da oposição que você estabelece entre conceito e representação”(Carta de Schelling a Hegel, 02 de novembro de 1807). E é em direção a Schelling que Hegel dirige o conceito de “bela alma”, aquele do qual a filosofia da diferença é anistiada em nome de Marx.

segunda. Isso é bem diferente de uma representação que se dê apenas na ordem do sujeito ou da consciência. A representação, em Marx, pode ser vista como “a linguagem da vida real”, e a própria produção da consciência está diretamente relacionada à atividade e ao comércio material dos homens.

O representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens ainda aparecem, aqui, como emanação direta de seu comportamento material. O mesmo vale para a produção espiritual, tal como ela se apresenta na linguagem da política, das leis, da moral, da religião, da metafísica etc. de um povo. Os homens são os produtores de suas representações, de suas ideias e assim por diante, mas os homens reais, ativos, tal como são condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e pelo intercâmbio que a ele corresponde, até chegar às suas formações mais desenvolvidas. A consciência [Bewusstsein] não pode jamais ser outra coisa do que o ser consciente [bewusste Sein], e o ser dos homens é o seu processo de vida real. Se, em toda ideologia, os homens e suas relações aparecem de cabeça para baixo como numa câmara escura, este fenômeno resulta do seu processo histórico de vida, da mesma forma como a inversão dos objetos na retina resulta de seu processo de vida imediatamente físico.

Totalmente ao contrário da filosofia alemã, que desce do céu à terra, aqui se eleva da terra ao céu. Quer dizer, não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou representam, tampouco dos homens pensados, imaginados e representados para, a partir daí, chegar aos homens de carne e osso; parte-se dos homens realmente ativos e, a partir de seu processo de vida real, expõe-se também o desenvolvimento dos reflexos ideológicos e dos ecos desse processo de vida. (AIA, p. 93-94)

Marx confronta a ideia da representação atribuindo a ela um poder mistificador, não podendo ela ser tomada como ponto de partida. Todas as representações partem da realidade histórica dos indivíduos: são expressões conscientes – ilusórias até certo ponto, mas conscientes - das “verdadeiras relações e atividades” (AIA, p. 93), pois para Marx o inverso, ou seja, as relações e atividades serem expressões da consciência, apenas seria possível se existisse um “espírito à parte101” além dos indivíduos materialmente condicionados. A ilusão da consciência como autônoma e formadora exclusiva do real é fruto, para Marx, de um modo limitado da atividade material e das relações entre os indivíduos em uma sociedade.

Em suma, esta modalidade de representação é bastante aparentada com o conceito 101 Essa inversão na percepção e na ordem entre a realidade e a representação como um efeito de uma limitação na construção da sociedade acaba por remeter à conhecida frase da Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, quando Marx aponta a religião como “o espírito de um mundo sem espírito” e como “consciência invertida do mundo, porque eles próprios (Estado e sociedade) são um mundo invertido”: parece haver uma necessidade em fabricar uma narrativa ou elemento que transcenda a realidade e dê sentido ao existente (a religião, a razão, a sociedade, o Estado, a história). Porém, esse elemento transcendente parece não ter lugar em um tempo no qual as certezas se desvanecem rapidamente, como o próprio Marx detecta.

de ideologia, um espelho invertido da realidade. Toda representação é falha ou ideológica, pois não captura o real de forma plena.

É importante mencionar os conceitos possíveis para ideologia no pensamento de Marx: o termo significa, em momentos diferentes da obra do autor, “ideias puras, autônomas e eficazes, sem ligação com a realidade” (a posição dos hegelianos descrita em A Ideologia Alemã), as “ideias da classe dominante” (ainda no mesmo texto) e um sistema de representações que serve para sustentar relações de dominação (como em O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte)102. Todos estes conceitos nascem das tensões existentes na sociedade: as ideias – errôneas ou não – são fruto de tais contradições, e estas são o principal problema a ser enfrentado na sociedade. Sem a solução destas, torna-se impossível superar o pensamento ideologizado.

os homens, por força de seu limitado modo material de atividade, são incapazes de resolver essas contradições na prática, tendem a projetá-las nas formas ideológicas de consciência, isto é, em soluções puramente espirituais ou discursivas que ocultam efetivamente, ou disfarçam, a existência e o caráter dessas contradições. Ocultando-as, a distorção ideológica contribui para a sua reprodução (BOTTOMORE, 1998 : 592)

Nas sociedades capitalistas, a conexão entre a consciência invertida e a realidade “invertida” é mediada por um nível de aparências (ou representações) que é elemento constituinte da realidade em si. Marx chama esta esfera, fruto do funcionamento do mercado e da concorrência, de “forma fenomenal” da sociedade:

a inversão das relações reais que se dão na esfera da produção103. A ideologia (ou 102 Pode-se ainda adicionar a concepção de MANNHEIM (1954): tudo que o ser pensa é ideológico, pois é impossível não ser influenciado pela situação social na qual o indivíduo se encontra. Como todo conhecimento é condicionado de alguma forma, assim toda ideologia é igualmente condicionada. Já ALTHUSSER (1971), influência maior da leitura deleuziana sobre Marx, vê a ideologia como “representação da relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência” (1971 : 53)

103 O conceito de produção aqui pode ser expandido para além da esfera econômica.

Acompanhando o pensamento de Althusser e Balibar, os modos de produção econômico, político e ideológico de uma sociedade concorrem para a formação de uma estrutura ou formação social. Mas o próprio Marx, ao salientar que as relações econômicas e as relações sociais se imbricam no modo de produção atual, dá ao conceito uma dimensão mais social do que simplesmente o reducionismo econômico da II e III Internacionais. O próprio Deleuze dirá que é impossível fazer filosofia política sem uma análise do capitalismo. Considerando a centralidade do conceito de política em Deleuze, a ideia de produção está para além do modo, mas não pode abdicar dele.

É necessário fazer também uma diferenciação entre dois conceitos deleuzianos que se articulam com o problema: criação é aquilo que é feito por um indivíduo, criador, de acordo

representação) funciona como uma capa que recobre os processos que ocorrem na sociedade (sejam as contradições dialéticas marxianas ou os agenciamentos deleuzianos), oferecendo, à sua maneira, segurança e correspondência entre o pensamento e a dita essência da sociedade capitalista (agora naturalizada e vista como elemento transcendente à realidade).

Apenas como comentário: seria possível ver a “criação de conceitos” tão defendida por Deleuze como a função da filosofia como uma recaída no problema da representação, porém desta vez não a desafiando, mas a confirmando? O pensamento identitário pode ser inerente ao processo de conceitualização, constituído por abstrações e identificação, erigindo um mecanismo de dominação no qual a identidade entre conceito e significado é pressuposta. Criar conceitos, ainda que de forma livre, seria, no fundo, relacionar abstrações (o conceito) com dados reais da consciência (o que o conceito abarca), ainda que o conceito nunca tenha sido pensado antes ou nunca usado naquela chave.

Sobraria, no coração do processo de invenção de conceitos, um resíduo representacional que é visível, por exemplo, na esfera política: as novas formas de articulação, para além da forma-partido ou da dicotomia presente na democracia representativa clássica, também assumem um caráter representacional e de reforço de identidade a partir do momento em que um indivíduo pode falar apenas por si e sua posição no socius e não coletivamente. No mundo da publicidade, as constantes criações de categorias sociais (millenials, perennials, hipsters, etc.) também mostram o resíduo representacional na medida em que os atributos que, em tese, diferenciam o indivíduo são compartilhados em algum nível pelo grupo ao qual ele é aderido, numa relação no qual cada termo retroalimenta o outro. Em um mundo como o atual, pensar de forma puramente afirmativa ou positiva traz o risco de recair no mito ou na ideologia, em suas piores acepções.

com uma necessidade específica. Por exemplo, um filósofo precisa dar sentido à sua realidade. Logo, ele cria conceitos. Já a produção, em Deleuze, é sinônimo de movimento.

Como exemplo, a realidade se produz, isto é, seus elementos estão em permanente relação, e é a relação que produz a forma pela qual apreende-se tais elementos. A grande diferença aqui em relação à visão comum sobre o pensamento dialético hegelo-marxiano é a supressão - ou Aufhebung, na tradução de FAUSTO (2015) para o termo - dos elementos pressupostos à relação. A dialética, de acordo com Ruy Fausto, prescinde da explicitação dos termos iniciais de seu movimento, estando centrada na relação entre eles. Não deixa de ser interessante que este foco na relação acima dos termos é exatamente a posição de Deleuze, que a usa para atacar um pretenso retorno ao identitário no método dialético.