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2 DELEUZE E OS NOMES DE MARX

2.2 A máquina Deleuze-Guattari-Marx

Ao “ocuparem funções” em um grupo social, as pessoas contribuem para a manutenção das relações que as dispuseram nestas funções. O valor de uma função como “proletário” ou “capitalista” transcende a troca econômica e assume um valor simbólico. O lado “psíquico” do pertencimento ao capital possui tanto ou mais peso do que a troca de capital em si. O capital simbólico é componente da economia da mesma forma que as trocas financeiras. As relações precedem os objetos.

§ Página10

Toda estrutura é uma multiplicidade de coexistências virtuais. Louis Althusser, por exemplo, mostra em um certo sentido que a originalidade de Marx (seu anti-Hegelianismo), reside na maneira que o sistema social é definido por uma coexistência de elementos e relações econômicas, sem que um seja capaz de engendra-los sucessivamente de acordo com a ilusão de uma falsa dialética59.

O anti-hegelianismo de Marx estaria na compreensão de que o sistema social é definido pela coexistência de relações e elementos econômicos. Não haveria um ponto de partida em relação ao qual os demais seriam estabelecidos em relação

“concêntrica”, ou por uma derivação falsamente dialética. A questão do negativo como um “não-ser” que forçosamente refere-se apenas ao ser e não à diferença retorna neste trecho.

2.2 A máquina Deleuze-Guattari-Marx

appropriation). Each mode of production is thus characterized by singularities corresponding to the values of the relations. And if it is obvious that concrete men come to occupy the places and carry forth the elements of the structure, this happens by fulfilling the role that the structural place assigns to them (for example the "capitalist"), and by serving as supports for the structural relations. This occurs to such an extent that "the true subjects are not these occupants and functionaries... but the definition and distribution of these places and these functions." The true subject is the structure itself: the differential and the singular, the differential relations and the singular points, the reciprocal determination and the complete determination.

59 Na edição: Every structure is a multiplicity of virtual coexistence. Louis Althusser, for example, shows in this sense that the originality of Marx (his anti-Hegelianism) resides in the manner in which the social system is defined by a coexistence of elements and economic relations, without one being able to engender them successively according to the illusion of a false dialectic

Ainda que os temas abordados no item anterior continuem no foco de Deleuze, a parceria com Guattari fez com que os temas econômicos, políticos e sociais, antes em um segundo plano, fossem à linha de frente da produção dos autores. Deleuze e Guattari recuperam e expandem os conceitos de Marx sobre a produção da sociedade como um todo, trazendo (ou reativando) uma definição de capitalismo que extrapola a relação de propriedade dos meios de produção, dominante na vulgata marxista, e abrange todos os processos que compõem o tecido social, o que faz com que as questões relacionadas a processos de formação de subjetividade, de subjetivação, de produção e direcionamento do desejo.

É no conceito de produção em Marx, que inclui a produção do ser e da sociedade além da produção da mercadoria, que Deleuze construirá seu próprio conceito sobre o assunto, além de encontrar ali uma base sólida para o papel do conceito de criação em sua filosofia. Marx não é apenas uma ferramenta, mas um aliado, um ponto de apoio e um adversário simultaneamente. Uma diferença crucial, ressaltada pelo próprio Deleuze à época, é o fato do marxismo operar na lógica da necessidade, enquanto D&G60 consideram que o motor das decisões humanas é o desejo. Porém, a análise dos textos de Marx afasta parcialmente este vínculo à necessidade (em sentido amplo, inclusive econômica) como fundante da vida social, como na passagem a seguir da tese sobre Demócrito e Epicuro: "o que devemos admitir é o acaso e não Deus, contrariamente ao que julga a multidão. Seria uma desgraça viver na necessidade; mas viver na necessidade não é uma necessidade"

(DDE, p. 151).

*1972

"E QUANTO A VOCÊ? QUE SÃO SUAS 'MÁQUINAS DESEJANTES’?" – Republicado em A Ilha Deserta

§ Página 188

E quanto a você? Que são suas máquinas desejantes? Num difícil e belo texto, Marx invocava a necessidade de pensar a sexualidade humana não apenas como uma relação entre dois sexos humanos, masculino e feminino, mas como uma relação "entre o sexo humano e o sexo não humano” (DLa).

Ele, evidentemente, não se referia aos animais, mas ao que há de não-humano na sexualidade humana: as máquinas do desejo. Talvez a

60 Deleuze & Guattari, não Dolce & Gabbana

psicanálise tenha permanecido numa ideia antropomórfica da sexualidade, e isso até na sua concepção do fantasma e do sonho. Um estudo exemplar, como o de Pierre Bénichou, apresentando máquinas masoquistas reais (também existem máquinas paranoicas, máquinas esquizofrênicas reais etc.), abre o caminho para tal funcionalismo ou para uma análise, no homem, do "sexo não humano".

(DLa) K.Marx, Critique de la philosophie de l'Etat de Hegel, in Œuvres complètes, IV, Paris, Gallimard, coll."Bibliothèque de la Pléiade", pp. 182-184.

Nunca deseja-se da mesma forma a cada vez, mesmo que, hipoteticamente, o objeto ao qual direciona-se o desejo seja o mesmo. As máquinas de desejo, ou as formas pelas quais a ação do desejo se articula, são variantes constantes.

Seria possível afirmar que deseja-se o desejo em relação ao objeto deste desejo, e isto seria o sexo não-humano ao qual Deleuze se refere em Marx? O trecho da Crítica da Filosofia do Direito de Hegel ao qual Deleuze se refere está na página 105

No que concerne ao primeiro ponto, polo norte e polo sul são, ambos, polo;

sua essência é idêntica; do mesmo modo, os sexos feminino e masculino são um gênero, uma essência, a essência humana. Norte e sul são determinações opostas de uma essência; a diferença de uma essência em seu mais alto desenvolvimento. eles são a essência diferenciada. Eles são o que são apenas como uma determinação diferenciada, e precisamente como essa determinação diferenciada da essência. Verdadeiros extremos reais seriam polo e não polo, gênero humano e inumano. A diferença é, aqui, uma diferença da existência, lá uma diferença da essência, de duas essências. (CFDH, p. 105)

Levando tal raciocínio ao extremo, não existiria uma “dialética do desejo”

operando por oposições, mas por variações diferenciais nas relações humano-humano. A dialética operaria entre humano e máquina desejante, ou entre a pessoa e a ação do desejo, tendo como não-síntese uma percepção do objeto de desejo sempre diferente (tanto do desejo inicial como do que o objeto é em si). Também é possível entender o trecho como um indício da leitura do “Marx filósofo da diferença”

e a crítica de Hegel: não há uma oposição entre sociedade civil e estado que se reconcilia em um estado melhor acabado; o estado e a sociedade são inter-relacionados. A referencia feita por Marx à sexualidade pode ser vista como um indicativo do desejo (entendido como pulsão ou libido) como componente básico da construção do tecido social.

Pode-se imaginar que, ao pensar-se o desejo como partícipe da

infraestrutura, relações econômicas, políticas e sociais passam a ter um componente de afecto (ou um componente esquizo) que as torna imprevisíveis. Por exemplo, um fetiche mutante, que nunca se repete, mesmo que seu mecanismo seja similar a cada vez: em uma ocasião, a mercadoria encanta pelo status ou por seu valor sígnico; em outra vez, o encanto se dá por apego sentimental, fidelidade à marca, satisfação pessoal para compensar “um dia ruim”, etc. Tal mecanismo pode, também, ser pensado em relação ao fetiche de cunho sexual: ambos remetem à ideia de tomar a parte pelo todo.

Comparativamente, a referência de Deleuze ao texto de Bénichou remete ao seu Sacher-Masoch e a noção de contrato presente no masoquismo: um acordo para a operação de uma máquina de desejo. Isso pode, talvez, ser mais visível em relações consideradas como desviantes, esquizo ou per-versas, mas também seria perceptível em algo mais prosaico como uma pessoa “gostar de gostar”. Este texto de Deleuze é contemporâneo ao Anti-Édipo, porém somente será compilado à suas obras de forma completa em 2002.

*197261

Com Félix Guattari:

O Anti-Édipo

§ Página 14 - I.1.2. Natureza e indústria. O processo

Esta relação distintiva homem-natureza, indústria-natureza, sociedade-natureza, condiciona, na própria sociedade, a distinção de esferas relativamente autônomas que chamaremos de “produção”, “distribuição”,

“consumo”. Mas este nível de distinções gerais, considerado na sua estrutura formal desenvolvida, pressupõe (como Marx mostrou) não só o capital e a divisão do trabalho, mas também a falsa consciência que o ser capitalista tem necessariamente de si e dos elementos cristalizados do conjunto de um processo. É que, na verdade — na ruidosa e obscura verdade contida no delírio — não há esferas nem circuitos relativamente independentes: a produção é imediatamente consumo e registro, o registro e o consumo determinam [10] diretamente a produção, mas a determinam no seio da própria produção. De modo que tudo é produção: produção de produções, de ações e de paixões; produções de registros, de distribuições e de marcações; produções de consumos, de volúpias, de angústias e de dores.

Assim como não há completa separação entre humano e natureza (um tema 61 A famosa afirmação deleuziana sobre a atuação política (“somos todos grupúsculos”) é feita em 4 de março desse ano, no período entre os cursos de 1971 que anteciparam a produçãood e Anti-Édipo e seu lançamento de fato.

que será abordado de forma mais completa na citação da página 147 de AE), não há completa separação entre produção, distribuição e consumo. Deleuze considera que Marx, ao apontar a falsa consciência do ser capitalista sobre si e sobre os processos de produção, distribuição e consumo, indica esta ausência de separação. Tal divisão só ocorreria no campo da ideologia.

§ Página 15

Em segundo lugar, há menos ainda a distinção homem-natureza: a essência humana da natureza e a essência natural do homem se identificam na natureza como produção ou indústria, isto é, na vida genérica do homem, igualmente. Assim, a indústria não é mais considerada numa relação extrínseca de utilidade, mas em sua identidade fundamental com a natureza como produção do homem e pelo homem. (4)

Nota 4: Sobre a identidade Natureza-Produção e a vida genérica, segundo Marx, conferir os comentários de Gérard Granel [1930-2000], “L’Ontologie marxiste de 1844 et la question de la coupure”, em L’Endurance de la pensée, Paris, Plon, 1968, pp. 301-10.

A explicação da nota da página 147 pode ser trazida aqui para apontar que o humano, por meio do trabalho, modifica a natureza e a si mesmo no processo.

§ Página 22

I.2.2. Produção desejante e produção social: como a anti-produção se apropria das forças produtivas

As formas de produção social implicam também uma parada improdutiva inengendrada, um elemento de antiprodução acoplado ao processo, um corpo pleno determinado como socius, que pode ser o corpo da terra, ou o corpo despótico ou, então, o capital. É dele que Marx diz: não é o produto do trabalho, mas aparece como seu pressuposto natural ou divino. Ele não se contenta, com efeito, em se opor às forças produtivas em si mesmas.

Forças de movimento e contra-forças de imobilização imbricadas e simultâneas, geradas ao mesmo tempo e em cada processo: um tipo de dialética da criação do novo e da produção dos processos sociais. O Capital não apenas se opõe às formas de produção como é alçado à posição fantasmagórica de ser a causa deste processo de produção. Todo processo tem implicado o contramovimento que o bloqueia? Importante ressaltar que o termo socius, derivado por Deleuze de uma leitura da Genealogia da Moral, pode ser entendido como sinônimo de relações sociais de produção, em linguajar marxiano (cfe. GUERÓN esta manobra tem o objetivo de evitar o termo sociedade, sinônimo indireto de

ambos. Toda aparição do termo em questão será usada neste sentido).

§ Página 23

Como diz Marx, no começo os capitalistas têm necessariamente consciência da oposição do trabalho e do capital, e do uso do capital como meio de extorquir sobretrabalho. Mas depressa se instaura um mundo perverso enfeitiçado, ao mesmo tempo em que o capital tem o papel de superfície de registro que se assenta sobre toda a produção (fornecer mais-valia, ou realizá-la, eis o direito de registro). “À medida que a mais-valia relativa se desenvolve no sistema especificamente capitalista e que a produtividade social do trabalho cresce, as forças produtivas e as conexões sociais do trabalho parecem destacar-se do processo produtivo e passar do trabalho para o capital. Assim, o capital se torna um ser bastante misterioso, pois todas as forças produtivas parecem nascer no seio dele e lhe pertencer” - Karl Marx [1818-1883], Le Capital, III, 7, cap. 25 (Paris, Pléiade, II, p. 1.435). Cf. Louis Althusser [1918-1990], Lire Le Capital, os comentários de Ettiénne Balibar [1942], tomo II, pp. 213 ss., e de Pierre Macherey [1938], tomo I, pp. 201 ss. (Paris, Maspero, 1965).

A criação da ideologia que recobre os processos de produção econômicos e sociais ocorre a partir do estabelecimento das relações de produção. O capitalismo é um sistema que simultaneamente totaliza a realidade, pois nada parece estar fora de sua alçada, e busca romper o limite do real (ou seja, seu próprio limite). Mudanças tecnológicas, por exemplo, são imbricadas a mudanças de comportamento e foram geradas por crises tanto da produção econômica como da produção social, libidinal ou comportamental. Ao mesmo tempo em que o capital é a parte visível da sociedade, seu amálgama, ele opera como um parasita que faz todo o socius funcionar para nutri-lo, pois é elemento criador deste. É o fantasma e a alma da sociedade.

§ Página 30

I.3. O sujeito e o gozo]

[I.3.1. A terceira síntese: síntese conjuntiva ou produção de consumo. — Então é...

“Então sou eu, então é a mim...” Como diz Marx, até sofrer é fruir de si. Sem dúvida, toda produção desejante já é imediatamente consumo e consumação, logo “volúpia”.

Deleuze alude a este trecho dos Manuscritos Econômico-Filosóficos:

Cada uma das suas relações humanas com o mundo, ver, ouvir, cheirar, degustar, sentir, pensar, intuir, perceber, querer, ser ativo, amar, enfim, todos os órgãos de sua individualidade, assim como os órgãos que são imediatamente em sua forma como órgãos comunitários, são no seu comportamento objetivo, ou no seu comportamento para com o objeto a apropriação do mesmo, a apropriação da efetividade humana (por isso ela é

precisamente tão multíplice quanto multíplices são as determinações essenciais e atividades humanas), eficiência humana e sofrimento humano, pois o sofrimento, humanamente apreendido, é uma auto-fruição do ser humano (MEF. p. 108)

Desta forma, todo desejo envolve um tipo ou índice de fruição, ainda que o desejo não seja satisfeito ou não tenha objeto definido. Até sua sublimação ou repressão podem envolver algum tipo de gozo (vide o êxtase divino de Santa Teresa De Ávila ou o impulso erótico do fascismo).

§ página 38

I.4. Psiquiatria materialista]

[I.4.1. O inconsciente e a categoria de produção. Teatro ou fábrica? O processo como processo de produção

Clérambault é o Feuerbach da psiquiatria, no sentido em que Marx diz:

“Quando Feuerbach é materialista, não leva em conta a história, e quando leva em consideração a história, ele não é materialista” [Karl Marx, A ideologia alemã, MEGA: Marx-Engels Gesamtausgabe, vol. V da Seção I (1932), item II, 2, § 10. A referência é ao pensador alemão Ludwig Andréas Feuerbach (1804-1872).

Como será melhor detalhado posteriormente, a citação a Clérambault faz parte de uma estratégia de diferenciação entre Deleuze e Lacan. Deleuze e Guattari, na discussão sobre a psiquiatria, comparam-se a Marx na crítica que ele dirige a Feuerbach. Se Marx critica mas recebe certa influência de Feuerbach, uma relação análoga com Lacan pode ser estabelecida por Deleuze e Guattari.

§ Página 40

E ainda aqui recordemos a advertência de Marx: não é pelo gosto do trigo que se adivinha quem o cultivou, nem é pelo produto que se adivinha o regime e as relações de produção. O produto aparece tanto mais específico, indizivelmente específico, quanto mais o reportamos a formas ideais de causação, de compreensão ou de expressão, mas não ao processo de produção real do qual ele depende.

A mercadoria como entidade deificada, desconectada do processo de produção que a gera, exerce seu fetiche sobre quem a consome ou produz. Quanto mais ignora-se as condições da produção, mais fácil é investir a mercadoria de significados e fazê-la objeto do desejo. É fácil associar a uma marca de smartphone valores como inovação, diferenciação e exclusividade. Convenientemente esquece-se, ignora-se ou finge-se não saber que sua produção, em sweatshops na China, é feita nas mesmas fábricas da concorrência. O que diferencia é a marca, uma forma

ideal de causação, compreensão e expressão na qual investe-se afeto e desejo.

Isso permite uma aproximação com a declaração de Deleuze, em O que é a Filosofia?, de que a publicidade e o marketing criam os conceitos na sociedade atual, substituindo a filosofia.

§ Página 44

Como diz Marx, não há falta, o que há é paixão como “ser objeto natural e sensível”. Não é o desejo que se apoia nas necessidades; ao contrário, são as necessidades que derivam do desejo: elas são contraproduzidas no real que o desejo produz.

Deleuze alude a este trecho dos Manuscritos Econômico-Filosóficos:

Um ser que não tenha sua natureza fora de si não é um ser natural, não faz parte da essência da natureza. Um ser que não tem nenhum objeto fora de si não é um ser objetivo. Um ser que não é, por sua vez, objeto para um terceiro ser não tem nenhum ser como objeto seu, isto é, não se comporta objetivamente, seu ser não é objetivo. (...) Um ser não objetivo é um não ser. (...) um ser não objetivo é um ser não efetivo, não sensível, somente pensado, isto é, somente imaginado, um ser da abstração. Ser efetivo é ser sensível, é ser objeto dos sentidos, é ser objeto sensível, e, portanto ter objetos sensíveis fora de si, ter objetos de sua sensibilidade. Ser sensível é padecer. (MEF, pp127-8)

O homem, como ser sensível objetivo, é um ser sofredor, e como sente seu sofrimento, um ser apaixonado. A paixão é o esforço das faculdades do homem para atingirem seu objetivo. (negrito nosso)

O desejo funcionaria como o elemento que motiva a ação humana visando atingir o objetivo. Para Deleuze, desejar significaria construir um agenciamento, ou um conjunto. Ou seja, estabelecer uma relação. De forma bastante simplificada, na frase “Fulano deseja um carro”, o desejar vem primeiro, o objeto do desejo depois.

Tem-se primeiro a vontade, depois ela é direcionada ou direcionável de acordo com as relações sociais e pessoais. Humano e mundo plasmam-se.

Porém, é preciso notar que o próprio Marx observa a existência de um certo nível de falta ou carência no processo do desejar, da paixão, notadamente neste outro trecho dos Manuscritos:

A partir daqui, ver-se-á como, em lugar da riqueza e pobreza da Economia Política, teremos o homem rico e a plenitude da necessidade humana. O homem rico é, ao mesmo tempo, aquele que precisa de um complexo de manifestações humanas da vida, e cuja própria auto-realização existe como uma necessidade interior, como uma carência. Não só a riqueza como também a pobreza do homem, adquire, em uma perspectiva socialista, o significado humano, e portanto social. A pobreza é o vinculo passivo que leva o homem a experimentar uma carência da máxima riqueza, a outra pessoa. O ímpeto da entidade objetiva dentro de mim, a rotura sensorial de minha atividade vital, é a paixão que aqui se torna a atividade de meu ser.

(MEF, p. 155)

A questão passa a ser a definição de necessidade que está em jogo:

falta/privação (necessita-se de algo) ou necessário/fundamental (por exemplo, ao desenvolvimento e manutenção da vida). Apenas a título de ilustração, pois sabe-se que não é possível igualar processos biológicos e sociais sem nenhuma mediação, o corpo tem necessidades que não podem ser ignoradas para manter-se vivo, como alimentação, evacuação, respiração, fundamentais na própria produção da vida. A fonte desta energia ou o atendimento desta demanda/impulso/pulsão pode variar (cascas de árvore ou lasanha, para ficar só em alimentos). Ao mesmo tempo, a falta de algum destes elementos é certamente mortal (ou seja, é preciso aplacar certa carência, de ar ou de comida, por exemplo).

Uma pessoa pode conscientemente deixar de comer, mas suas células irão devorar o próprio organismo. De forma análoga, o reflexo de mergulho faz com que o corpo não permita suicídio por afogamento: o instinto de sobrevivência (desejo de vida) faz com que o corpo reaja involuntariamente. Assim, a palavra em questão talvez funcione de ambas as formas e sem exclusão mútua: impulso e carência.

Usando um ditado popular, a fome e a vontade de comer andam juntas.

§ Página 45

Ela nunca é primeira: a produção nunca é organizada em função de uma falta anterior; a falta é que vem alojar-se, vacuolizar-se, propagar-se de acordo com a organização de uma produção prévia.

Ela nunca é primeira: a produção nunca é organizada em função de uma falta anterior; a falta é que vem alojar-se, vacuolizar-se, propagar-se de acordo com a organização de uma produção prévia.