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Dialogando sobre Gênero, Religião e Políticas

No documento Download/Open (páginas 34-38)

As três deputadas negras evangélicas cujas atuações parlamentares analisamos, seguem a esteira das pioneiras na política acima apresentadas. Conforme observamos, a participação das mulheres negras na política brasileira é uma temática relacionada à articulação entre gênero, raça/etnia e política. No caso das trajetórias religiosas e políticas de Benedita da Silva, Tia Eron e Rosângela Gomes, é necessário ainda acrescentar a religião ao diálogo interseccional. Por conseguinte, serão apresentadas algumas breves referências conceituais que embasam essa articulação.

Sobre a articulação de gênero e religião, Linda Woodhead (2013, p. 80) afirma que os dois temas representam o poder na sociedade. A religião pode reforçar o poder de grupos dominantes como também aproximar um grupo com menor poder social de outros ambientes, tais como: política, economia e cultura. A religião pode reforçar a dominação entre os sexos como também pode ser um caminho para transformar estas relações. Nesta articulação entre religião e gênero, os homens sempre são favorecidos, mas muitas mulheres se mobilizam dentro das igrejas através de grupos para auxílio de outras mulheres buscando assim um fortalecimento do papel feminino dentro desta instituição (WOODHEAD, 2013). Contudo, as mulheres têm buscado romper com essa dinâmica, cultivar o habitus e conquistar espaços na política. Este é o caso das três deputadas aqui pesquisadas. Uma chave para entender isso talvez seja justamente a sua participação no campo religioso: percebe-se que o engajamento religioso e o engajamento político sempre caminharam juntos. Cabe investigar se esse cruzamento entre religião e política contribui para a ascensão de cada uma delas enquanto figura pública.

Sandra Duarte de Souza (2011, p. 114) afirma que religião e gênero não são temas prioritários dentro da academia, sendo que a religião não é considerada importante nesse contexto por estar ligada às instituições eclesiásticas, e gênero é considerado secundário, sendo interessante basicamente para pesquisadoras feministas. As estudiosas feministas têm se esforçado para que este tema seja transversal às áreas do conhecimento e não apenas um assunto de mulher (SOUZA, 2011).

No campo religioso, Sandra Duarte de Souza analisa a literatura evangélica direcionada para mulheres e enfatiza que esse material está voltado para os valores da família nuclear e qualquer mudança dentro deste núcleo é ameaçadora. As literaturas reforçam e legitimam os papéis de dominação entre o masculino e o feminino, e as mulheres em seus cotidianos têm questionado essas representações e ampliado suas participações em outros espaços (SOUZA, 2011, p. 127). Cumpre destacar que tais espaços também se referem à participação política destas mulheres, que encontram resistências e obstáculos ao se inserirem neste ambiente de decisão de poder.

Ainda sobre este ponto da articulação entre religião, gênero e campos de poder, é pertinente trazer os conceitos de Pierre Bourdieu (1989), para quem as pessoas e as instituições estão distribuídas no espaço social conforme o capital que possuem. O espaço social pode ser considerado um campo de forças, em que os atores sociais estão disputando entre si. Bourdieu salienta que o espaço social não é “unidimensional”, mas sim “multidimensional”, pois além do campo econômico, existem os campos cultural, político e religioso.

O capital – que pode existir no estado objetivado, em forma de propriedades materiais, ou, no caso do capital cultural, no estado incorporado, e que pode ser juridicamente garantido – representa um poder sobre um campo (num dado momento) e, mais precisamente, sobre o produto acumulado do trabalho passado (em particular sobre os instrumentos de produção), logo sobre os mecanismos que contribuem para assegurar a produção de uma categoria de bens e, deste modo, sobre um conjunto de rendimentos e ganhos. As espécies de capital, à maneira dos trunfos num jogo, são os poderes que definem as probabilidades de ganho num campo determinado. (BOURDIEU, 1989, p. 134).

Outro conceito importante de Bourdieu (1989) para o presente trabalho é a ideia de habitus.

Habitus tem a ver com uma inclinação, disposição, capacidade, habilidade. Ele é adquirido através

da socialização proporcionada pela posição no campo social que a pessoa ocupa. Uma pessoa nascida no seio de uma família bem posicionada no campo social, por exemplo, estará acostumada a visitar espaços eruditos e, com isso, ganhará a habilidade de apreciar e criar produtos valorizados do ponto de vista da cultura erudita dominante, mantendo ou aumentando seu status social.

O tipo de habilidade que a pessoa adquire depende do tipo de campo no qual ela está posicionada e quais as ações esperadas, exigidas ou valorizadas pela lógica do campo. É importante lembrar também que uma pessoa que não tenha capital suficiente, não conseguirá desenvolver o

habitus exigido e, por isso, estará numa posição de subordinação ou opressão dentro do campo em

questão. Neste sentido, é interessante refletir sobre as barreiras e limitações que sujeitos experienciam em esferas diversas.

Há vários campos que são negados às mulheres. Conforme dito acima a partir de diferentes referências teóricas, o campo da política oferece muitos obstáculos para a plena participação feminina: suas regras, exigências e relações de força são direcionadas ao mundo masculino, colocando as mulheres em uma posição subalterna. Por não participar do cenário político, as mulheres não desenvolvem o habitus necessário da participação pública; seu potencial não é aproveitado, e muitas vezes elas sequer têm tempo suficiente para cultivá-lo, pois já estão incumbidas de muitas tarefas no âmbito privado, algo que lhes dá uma desvantagem importante com relação aos homens.

Ademais, muitas mulheres que fazem o esforço de participação são duramente avaliadas e questionadas publicamente sobre sua competência política muito mais do que os homens. As mulheres não têm suas capacidades reconhecidas e, por essa razão, pouco participam da vida pública; por não participarem plenamente da vida pública, acabam tendo desvantagem com relação

aos homens para efetivar o potencial de desenvolver as habilidades necessárias à ascensão no campo e, dessa forma, permanecem sendo pouco reconhecidas e incentivadas.

Patrícia Matos busca fazer um entrelaçamento entre a “sociologia disposicional” de Pierre Bourdieu (1989) e as análises interseccionais que levam em conta classe, gênero, raça e corpo (Matos, 2012). Seguindo a proposta das autoras alemãs Gabriele Winker e Nina Degele, Patrícia Matos fala acerca da importância de verificar como as desigualdades dentro da sociedade são constituídas, não apenas por uma categoria de diferenciação, mas por várias. Ou seja, para entender as hierarquias e dominações da sociedade não basta um olhar para a questão econômica, pois é preciso considerar também as várias dimensões do espaço social, incluindo-se aí a violência simbólica sofrida pelas pessoas. Baseada em Winker e Degele, Matos faz orientações metodológicas para o estudo da interseccionalidade em trajetórias individuais:

Para realizar os cruzamentos interseccionais, Winker e Degele (2009: 63-97) sugerem como primeiros passos da metodologia que os pesquisadores se concentrem na análise de cada entrevista, na percepção a respeito de quais categorias de diferenciação podem provocar diferentes formas de clivagens e desigualdades entre os indivíduos, dependendo do contexto analisado e dos níveis de análise. O primeiro passo da análise interseccional diz respeito à identificação das categorias de diferenciação que são apresentadas pelos entrevistados. Muitas vezes, é possível notar que algumas declarações dos/(as) entrevistados/(as) dirigem-se não apenas a uma categoria de diferenciação, mas, ao contrário, a várias categorias (MATOS, 2012, p. 256).

Durante três anos, Matos realizou uma pesquisa com um estrato social denominado “ralé”, caracterizado por condições precárias de trabalho que se reproduzem há gerações entre essas famílias; um “subproletariado” (MATOS, 2012, p. 260). A autora indica que, além da questão de classe que leva a uma invisibilidade e reiterado “abandono social e político” desses indivíduos, aparece uma dominação masculina que torna a vida das mulheres da “ralé”, em geral ocupando as profissões de empregadas domésticas e prostitutas, ainda mais difícil. Nos discursos dessas mulheres, ficavam patentes as experiências de sofrer abusos sexuais no seio familiar e o receio de que suas filhas também sofressem essas violências. Assim,

Ao ser notada a situação de vulnerabilidade da mulher da ‘ralé’ em geral e da prostituta, em particular, surgiram algumas questões, fundamentais nesse contexto, que indicavam a limitação de nossa abordagem voltada principalmente para a dinâmica da reprodução dessa classe social: a necessidade de interconexão de outras categorias de diferenciação como gênero, corpo e raça, por exemplo. Surgiram questionamentos relativos à disjuntiva classe/gênero/ raça/corpo que nos levaram a perceber a necessidade de aprofundamento nas questões teóricas envolvendo a

intersecção de outras categorias de diferenciação para análise das desigualdades sociais (MATOS, 2012, p. 262).

As considerações de Matos, conjugadas com a referência a Bourdieu (1989), nos ajudam a embasar o estudo das três deputadas negras evangélicas. Tais considerações pautam o presente estudo a identificar como as intersecções de diferentes categorias de estratificação social aparecem na trajetória de vida de Tia Eron, Benedita da Silva e Rosângela Gomes, incluindo nesse caso a questão da religião. Será importante verificar tanto os obstáculos quanto as estratégias que as levaram a ocupar a posição que ocupam hoje na cena política brasileira. Um elemento fundamentalmente interessante de ser observado é justamente o papel da religião no entrelaçamento com as demais categorias de pertencimento dessas deputadas. Como se viu neste capítulo, as condições de mulher negra e pobre se combinam para criar grandes dificuldades para romper com a dominação e conquistar melhores espaços na cena pública. Sendo o pertencimento ao setor evangélico assumido pelas três deputadas, pode-se perguntar, então, em que medida a religião participou de suas trajetórias políticas, ou seja, como a religião se cruza com as questões de gênero, raça, classe e política nas posições desiguais colocadas no espaço social. Utilizando uma expressão de Sandra Duarte de Souza, de que maneira o “capital religioso” dessas deputadas foi mobilizado em suas vidas (Souza, 2015, p. 1292)?

Analisando o relato das deputadas, é importante estar atento aos diferentes momentos e espaços de sua socialização, como cada categoria interseccional se apresentou nesses momentos e como isso foi pautando suas atuações nos dias de hoje. É significativo observar, nesse sentido, o relato das primeiras socializações no âmbito familiar, a condição financeira, o modo como se organizava a questão doméstica quanto ao gênero, quais os primeiros contatos com a religião, quais foram os preconceitos sofridos com relação à questão racial. Posteriormente, observar como cada deputada se inseriu no meio religioso e no meio político, quais foram os obstáculos enfrentados e em que medida elas retiraram dessas dimensões articulações que as impulsionaram a romper barreiras e se consolidar na esfera pública. Tais descrições e análises serão feitas no capítulo 2 da presente dissertação, a partir da investigação das histórias de vida de cada uma das deputadas.

No documento Download/Open (páginas 34-38)