• Nenhum resultado encontrado

Dimensão do acompanhamento familiar nos processos de escolarização

Segundo Lareau (1987), os estudos sociológicos deixaram de focalizar somente os resultados educacionais e passaram, a partir da década de 1980, a dar atenção, também, aos processos, por meio dos quais, as desigualdades se constituem. Trata-se de investigar as dinâmicas familiares em diferentes meios sociais e a forma como se articulam aos processos de escolarização, ou seja, de que modo elas contribuem para a configuração de distintas trajetórias e diferentes destinos escolares (LAREAU, 1987, 2007; LAHIRE, 2004; VIANA, 1998; NOGUEIRA, ROMANELLI e ZAGO, 2000; ALMEIDA e NOGUEIRA, 2002). Se, justificada por estudos clássicos, a variável “pertencimento social” (e suas derivações) não pode ser desconsiderada, no entanto, estudos recentes nos alertam que aspectos internos ao funcionamento familiar podem, até certo ponto, inflexionar (reorientar, modificar) a influência da origem social e, por isso, precisam ser investigados.

Nesse sentido, estudos atuais têm se dedicado a identificar e analisar as variáveis que compõem a organização familiar (regulação do cotidiano da família, exercício da autoridade, modos de monitoramento da vida escolar dos filhos, relação com a cultura) e os comportamentos e expectativas dos pais em relação à escola. Vale a pena destacar, entre esses elementos, a focalização de estratégias como, por exemplo, a escolha do estabelecimento de ensino e o tipo de atividades extraescolares que os pais oportunizam aos filhos.

Tendo em vista a diversidade das variáveis que compõem a dinâmica familiar, pode-se afirmar que os estilos educativos postos em prática pelos pais na regulação do cotidiano familiar não dependem unicamente de aspectos estruturais. Kellerhals e Montandon (1991), em aprofundado estudo sobre as práticas educativas familiares, explicitam quatro componentes do processo educativo que, articulados, contribuem para definir o estilo educativo de uma determinada família: os objetivos e finalidades dos pais, suas técnicas pedagógicas, as regras educativas e a coordenação entre os diversos agentes da educação. Os autores consideram que as práticas educativas dos pais são influenciadas por três tipos de

fatores ou imperativos: os recursos econômicos e culturais, o tipo de coesão familiar e as expectativas dos pais quanto à integração social futura da criança.

Na mesma direção, Boyer e Declaux (1995) definem os grupos familiares como “sistemas de ação, portadores de um projeto autônomo e resultante de uma dinâmica normativa interna”. As autoras afirmam que o entendimento do meio familiar como algo complexo que extrapola a visão de um simples reflexo do pertencimento social se inscreve como uma variável intermediária que mediatiza as relações entre posição de classe, atitudes, e modos de relação com a escola.

Em suas pesquisas, elas destacam, não apenas, a existência de modelos diferenciados de estratégias educativas familiares e de formas e graus variados de mobilização em relação à escola, como também, modos diferentes de mobilização entre grupos sociais distintos (e no interior de um mesmo grupo), tanto em relação às atividades escolares, quanto em relação às atividades extraescolares. A mobilização das famílias no âmbito das atividades extraescolares pode ser explicada, na visão das autoras, pelo fato de que os pais de hoje procuram proporcionar aos filhos atividades que possam rentabilizar as aprendizagens escolares e alargar os benefícios proporcionados pela escolarização.

No entanto, segundo Lareau (2007), embora saibamos que as dinâmicas familiares têm impacto sobre as oportunidades de vida dos filhos, os modos pelos quais os pais transmitem essas vantagens ainda não foram completamente compreendidos. Em pormenorizado estudo etnográfico, ela demonstrou que os pais de diferentes classes sociais se diferenciam em relação à maneira como veem seus papéis parentais na vida dos filhos e na forma como concebem a infância.

A pesquisadora investigou três dimensões dominantes nos ritmos da vida familiar que se tornaram dimensões-chave para a análise dos modos de criação dos filhos: a organização da vida diária, o uso da linguagem e os laços sociais. Seu trabalho acurado de observação a levou a distinguir dois modos de criação de filhos: o “cultivo orquestrado”, encontrado em famílias de camadas médias (brancas ou negras) e o “crescimento natural”, observado em famílias de camadas populares (brancas ou negras)7. As famílias pertencentes às camadas médias acompanham, de modo sistemático, as atividades tanto escolares quanto

7 Lareau (2007) definiu como pertencentes às classes médias as crianças que viviam em lares em que pelo menos um dos pais estava empregado em uma ocupação que exigia considerável autoridade gerencial ou necessitava de alta escolarização. Nas classes populares, ela distinguiu crianças pobres e crianças de classes trabalhadoras. As “crianças pobres” eram aquelas que viviam em casas cujos pais não tinham uma ocupação regular e dependiam de ajuda governamental. As classes trabalhadoras englobavam aquelas crianças cujos pais estavam empregados em uma posição com pouca ou nenhuma autoridade gerencial e que não exigia um alto grau de escolarização (p. 22-23).

extraescolares dos filhos. A vida das crianças é organizada e controlada pelos pais que valorizam atividades extraescolares que contribuam para desenvolver nelas talentos e habilidades que possam ampliar seus horizontes e possibilidades futuras (escolar e profissional). Quanto ao uso da linguagem, há a presença de um padrão de negociação e de racionalização nessas famílias. As conversas entre pais e filhos são fundamentadas na racionalização, no diálogo e no exercício de habilidades verbais como resumir, clarear e ampliar as informações: os pais encorajam os filhos a dar sua opinião, explicitar suas idéias e elaborar argumentos para a negociação. As interações sociais se dão menos com a família estendida e mais com grupos homogêneos de crianças (da mesma idade) e com adultos. As crianças também aprendem a pensar em si mesmas como “possuidoras de direitos”, sendo capazes de explicitar seus pontos de vista e argumentar sobre eles, não somente dialogando com os pais, como também com outras pessoas (médicos e professores, por exemplo). Em síntese, essas famílias manifestam um “cultivo orquestrado” na educação dos filhos, esperando que suas ações, planejadas e organizadas, resultem em melhores chances para o filho obter uma vida “feliz e produtiva”.

Em contrapartida, os pais das camadas populares (pobres e trabalhadoras) apresentam um modo de educar caracterizado pelo “crescimento natural dos filhos”. Eles estruturam poucas atividades extraescolares, sendo que as próprias crianças organizam a maior parte do seu tempo livre. Desse modo, a vida diária dessas crianças flui mais livremente e é muito mais direcionada pelas crianças do que pelos pais. Quanto ao uso da linguagem, os pais conversam menos com os filhos e não enfatizam o desenvolvimento da racionalização e da negociação. Com o uso de diretivas e instruções, na maioria das vezes, não negociáveis, os pais esperam respostas afirmativas e rápidas das crianças. Essas crianças brincam muito fora de casa, interagindo sempre com crianças de faixas etárias diferentes da sua e com adultos e crianças da família estendida. A relação com essa última é sempre considerada importante e confiável. Por fim, essas crianças não aprendem a se ver como “pessoas de direitos”, capazes de argumentar e defender seus pontos de vista. De acordo com Lareau, o comprometimento dos pais em nutrir um desenvolvimento natural da criança gera um “sentimento emergente de restrição”, de dependência em relação às autoridades e às instituições.

Em suma, as análises de Lareau indicam que, apesar de existirem variações no interior das famílias pesquisadas, há um padrão de criação de filhos que sofre influência muito mais da classe social do que da raça. E, apesar de a raça se constituir como um aspecto importante, as experiências de vida e seus recursos (fontes econômicas, condições ocupacionais e passado

educacional) condicionam mais a vida diária das famílias, influenciando mais fortemente o modo de educação dos filhos (LAREAU, 2007, p.70).

Tendo em vista essas considerações sobre práticas educativas parentais diferenciadas, o que se poderia dizer sobre os pais professores no que concerne à condução da vida diária familiar e à escolha de atividades extraescolares para seus filhos? Como se articulam essas escolhas ao contexto da escolarização formal e de que modo as atividades escolhidas são vivenciadas pela criança e pela família?

Outra dimensão da relação família-escola, que vem sendo foco de estudos, principalmente no exterior, é a escolha do estabelecimento de ensino pelas famílias (GISSOT, HÉRAN e NANON, 1994; GEWIRTZ, BALL e BOWE, 1995; BALLION, 1982, 1986; LANGOUET e LEGER, 2000ª, 2000b; DUBET e MARTUCCELLI, 1996). Os resultados dessas pesquisas convergem para a constatação de que as famílias dos diferentes meios sociais são desigualmente preparadas e instrumentalizadas, no que tange às condições e aos conhecimentos necessários para uma escolha eficiente do estabelecimento de ensino para os seus filhos. Alguns aspectos em relação a essa escolha por pais professores são apontados em três dessas pesquisas e serão explicitados mais abaixo.

Se podemos enunciar pesquisas que têm se debruçado sobre o tema da escolha do estabelecimento de ensino, os estudos sobre o acompanhamento cotidiano da escolaridade dos filhos não são abundantes (DIOGO, 1998; QUEIROZ, 1992; SILVA, 1994; LAREAU, 2007). As investigações realizadas por Annette Lareau junto a famílias norte-americanas têm contribuído para apontar a existência de variações e diferenciações no acompanhamento familiar da escolaridade dos filhos, tendo em vista unidades familiares de diferentes grupos sociais. A autora afirma que essas diferenças se instauram não somente em relação à situação de pertencimento social, mas também elas ultrapassam o efeito linear e automático da classe social.

Diogo (2002) também realizou pesquisa abordando práticas de acompanhamento familiar, com ênfase nos diferentes tipos de expectativas e práticas de envolvimento relativamente à trajetória escolar dos filhos. A autora analisou o envolvimento dos pais na escolarização da prole, a partir de três vértices: a influência parental na trajetória escolar, o envolvimento dos pais nas tarefas escolares realizadas em casa e a relação com o estabelecimento de ensino.

Esse trabalho corrobora outros estudos (DUBET e MARTUCCELLI, 1996; LAHIRE, 2004) que afirmam que a omissão dos pais das classes populares é um mito. Diogo constata, com efeito, que os pais se envolvem nos processos de escolarização dos filhos, quer em casa,

orientando as atividades escolares e extraescolares, quer realizando escolhas em relação à trajetória escolar, mesmo nas classes populares. No entanto, em relação a uma valorização geral da escolarização, ela destaca que existem variações de acordo com o pertencimento social, em relação ao tipo de envolvimento desenvolvido.

Embora os estudos mencionados tenham evidenciado que os pais de diferentes classes sociais acompanham a vida escolar dos filhos, outros trabalhos apontam mais detalhadamente as variações existentes no interior dessas práticas. A pesquisa de Viana (1998, 2003) constatou formas de acompanhamento realizadas por pais de camadas populares mais voltadas ao apoio moral e à valorização dos estudos, do que propriamente ao acompanhamento sistemático das atividades escolares e extraescolares. Por outro lado, pesquisas têm evidenciado o acompanhamento escolar realizado pelas camadas médias como o mais intenso e sistemático (ESTABLET, 1987; NOGUEIRA, 1995b; LAREAU, 2007; VAN-ZANTEN e DURU-BELLAT, 1999). O acompanhamento da escolaridade pelos pais das classes médias inclui, segundo os estudos citados, a ajuda direta nos deveres de casa e outras tarefas escolares e, ainda, o reforço da escolarização com atividades complementares rentáveis no mercado escolar.

Em relação à ajuda nos deveres de casa, os trabalhos de Carvalho (2006), Franco (2002) e Resende (2007) têm contribuído para a percepção de variações e nuanças nesse tipo de acompanhamento realizado por diferentes grupos familiares. Resende (2007), através de um estudo comparativo entre as formas de acompanhamento dos deveres de casa realizadas por famílias de classes populares e por famílias de classes médias, demonstra a desigualdade das condições e de estratégias em sua realização.

Há que se considerar ainda que, no interior de cada categoria social e na dinâmica própria de cada família, a forma como o acompanhamento se realiza assume muitas variações e nuanças. A compreensão dessas nuanças é de fundamental importância para os objetivos desta pesquisa. O interesse aqui é entender como se dá esse acompanhamento, quando os pais exercem a ocupação de professor. A socialização na profissão docente impactaria os modos como esse acompanhamento se concretiza, cotidianamente?

Por fim, o contato direto entre pais e professores também constitui objeto de pesquisas recentes (SILVA, 2003; DIOGO, 2002). O discurso sobre a necessidade de uma parceria entre pais e escola está presente, tanto nos trabalhos acadêmicos, quanto nas políticas educacionais e no senso comum. A intensificação dos contatos se faz acompanhar, segundo Nogueira (1998a), de uma “ideologia da colaboração” e de um discurso que prega a importância do diálogo entre pais e escolas. No entanto, é importante destacar que as

variações na forma como os contatos acontecem e a frequência e amplitude de sua influência sobre a escolarização devem ser analisadas, tendo sempre em vista a própria diversidade do terreno das relações família-escola. Lahire (2004) argumenta que existem diferentes modos de participação parental e de contatos presenciais na escola e que essas diferenças são estabelecidas de acordo com o pertencimento social das famílias. O autor afirma que, de um lado, os contatos constantes com a escola são característicos das práticas de escolarização das camadas médias e altas. E, de outro, como foi dito anteriormente, a ausência física dos pais das camadas populares não deve ser considerada como “falta” de envolvimento dos mesmos na escolarização dos filhos, pois outras formas de envolvimento podem ser desenvolvidas, mesmo que essas práticas sejam diferentes daquelas esperadas pela escola.

É interessante mencionar que há ainda muito que se investigar sobre a dinâmica dos contatos entre professores e pais e seus efeitos na escolaridade dos filhos (DUBET e MARTUCCELLI, 1996; DIOGO, 2002). Faz-se necessário compreender como os pais professores, justamente por conhecerem as dinâmicas do funcionamento das escolas, estabelecem esses contatos. O que eles pensam sobre os professores de seus filhos? Como se relacionam com eles? Em que medida esses aspectos influenciam as práticas educativas e a vida escolar dos filhos? A seção seguinte tratará de colocar em evidência os pais professores e suas práticas de escolarização.