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Dinâmicas intrafamiliares: o “exercício da autoridade familiar”

3.1 Grupo 1: Famílias fortemente orientadas para o sucesso escolar

3.1.2 Práticas educativas e relação com a escola

3.1.2.3 Dinâmicas intrafamiliares: o “exercício da autoridade familiar”

Precisa de certo controle, vamos dizer, de uma liberdade controlada.

A importância atribuída por essas famílias à escolarização para a formação e construção de um futuro melhor para os filhos aparece como um fator determinante nas suas dinâmicas de ação. Os pais professores do primeiro grupo colocam a ênfase das suas práticas educativas no exercício de uma autoridade que contribua para a construção da autonomia dos filhos.

Entretanto, embora os pais, paradoxalmente, coloquem ênfase na construção da autonomia quando o assunto são os valores difundidos na dinâmica familiar, fica claro que se

trata de uma “liberdade controlada” ou uma “independência com segurança” — expressões utilizadas por duas mães professoras — operada em contextos educativos nos quais os pais estabelecem limites particularmente visíveis no enquadramento das atividades escolares da prole. Esses pais acompanham, de perto, todas as atividades dos filhos, sejam elas escolares ou não. Assim, nesse sentido, podemos falar de uma “autonomia vigiada” (BOYER e DELCLAUX, 1995), que pode ser constatada nos relatos dos pais, ao serem perguntados sobre os valores transmitidos aos filhos.

Essa questão de autoridade, assim de controle com os meninos, é mais na negociação do que na imposição. Às vezes, vai na imposição, às vezes vai na negociação. A gente negocia porque ajuda a construir a autonomia. Se a gente fica só mandando, eles não aprendem a escolher, a fazer opções, sabe? E eles são meninos bons, meninos obedientes, graças a Deus. Mas tem hora que a gente tem que mandar de verdade. Vai fazer assim, porque isso é que está certo, não é desse jeito que você quer. Então, eu diria que as duas coisas, autoridade e negociação, dos dois jeitos. O pai e a mãe têm que mandar. A criança tem que saber que a gente manda, em alguma coisa a gente manda, em outras a gente negocia. Por exemplo, eles podem escolher algumas coisas, mas outras não. [A pesquisadora pede um exemplo] Deixa eu ver, negociar, funciona assim, quanto ao estudo, a gente não deixa eles escolherem não, tem limite, sabe? Nós vamos direcionando mesmo, tem hora pra estudar, pra brincar, pra ver televisão. A gente vai dando os limites, os valores importantes a serem transmitidos. Nossa, todos os valores, todos esses valores, caráter, honestidade, obediência. Toda essa questão de valores é trabalhada com elas. A gente procura estimular muito isso aqui em casa. E eu faço o que eu posso pra colocar os meninos nesse caminho. Agora vou te dizer que é difícil. Tem hora que é difícil, sabe por quê? O mundo é diferente demais daquilo que a gente prega em casa. Então não é fácil, não. Questão mesmo dos bem materiais, fala muito alto, isso é uma coisa que me incomoda muito, sabe? Consumo, consumo demais. Então, a gente freia aqui em casa, eles não têm tudo que eles pedem não. A gente procura muito frear isso ai. Nós acreditamos que vale a pena investir na construção deles enquanto pessoa mesmo, nós queremos que eles sejam pessoas autônomas e felizes... mas pra isso precisa de certo controle. É assim, vamos dizer, de uma liberdade controlada. Acho que poderia dizer assim. (Mãe professora de Geografia, dois filhos)

As meninas são muito diferentes, a L. é muito perfeccionista e tudo, então, ela não aceita muito de ser chamada a atenção, então ela não erra, não faz coisa errada e não teima, pra não ter que ser chamada a atenção. Eu percebo isso muito claro na L. Como ela não concorda de ser chamada a atenção, ela prefere não desacatar em nada, então, ela é muito obediente, mas acho que mais pensando nesse lado. A E. já está maior, então é mais desafiadora [...], acho que junta tudo, né? Eu acho que quando a L. crescer, isso ai pode mudar, sem dúvida, se a E. mudou muito, ela era uma menina muito tranquila, calminha e tudo, e, hoje, eu que não tomo conta pra ver não. Mas acho que é mais a idade, vai crescendo e muda. Mas eu faço questão de estimular isso, sabe? Elas têm que aprender a defender a sua opinião, a reclamar, mas tudo com educação. Eu falo pra elas que precisa ter argumento, eu posso reclamar, mas tenho que explicar, tenho que argumentar. Às vezes, se é alguma coisa que eu já falei , se eu já conversei, aí é mais na autoridade, ou, às vezes, eu fico brava e tudo. Aí, a gente senta e conversa e negocia . Então, assim, às vezes, dependendo da situação, se eu fiquei com raiva naquela hora, acabo e decido e tudo, nós podemos até conversar, mas aí a gente conversa depois e negocia. Mas

normalmente com a E., tudo tem que ser negociado, ela não aceita impor e pronto e acabou. Agora veja bem: eu converso muito com elas de igual pra igual, mas tem os limites. Eu gosto de saber tudo o que acontece com elas. Eu fico assim de olho em tudo. Eu não digo assim, vigiando, mas é um certo controle mesmo. Elas vão ter assim uma independência, mas com segurança, sabe? É preciso ter esse controle, senão, descamba tudo. Mais ainda em relação a estudo, amizades, coleguinhas. É tudo mesmo! (Mãe professora de Matemática, duas filhas)

Os pais professores desse grupo valorizam, de modo marcante, a “responsabilidade” e os “limites”, que seriam, na percepção deles, requisitos necessários para a construção da autonomia. Eles querem que seus filhos “aprendam a tomar decisões”, a “emitir opiniões” e a “fazer escolhas ao longo da vida” e, para que essa aprendizagem aconteça, todos os pais concordam em um ponto: é necessário que eles estabeleçam limites para que os filhos desenvolvam a “responsabilidade”. Em todos os 24 casos, os pais professores foram unânimes em citar a responsabilidade como um valor a ser aprendido pelos filhos. E, na maioria dos depoimentos, o papel dos pais surge como aquele de orientador: os pais devem acompanhar de perto os filhos, aconselhando-os e orientando-os nos processos de construção da “responsabilidade” e, em consequência, da autonomia.

Eu vivo falando lá em casa que é preciso ter limites em tudo na vida. Nós usamos o mesmo discurso [referindo-se à mãe]. Se você não coloca os limites na hora certa, você perde o controle. O menino não aprende a ter responsabilidade. E responsabilidade é tudo. Quem tem responsabilidade tem sucesso. Eu penso assim e procuro passar isso pra ele o tempo todo. Ele me vê trabalhando muito, na escola, em casa. Ele já sabe que pra ganhar dinheiro tem que trabalhar muito e com seriedade. A malandragem não leva a lugar nenhum. (Pai professor de Ciências, um filho)

Se a criança aprende a ter responsabilidade, aprende a ser gente, sabe? É responsabilidade, o valor que eu acho mais importante de ensinar pra eles. Desde que eles eram pequenininhos, era essa a nossa preocupação. Deles crescerem meninos responsáveis. Então a gente vai acompanhando, não damos trégua, não. Sempre foi assim, nós exigimos que eles cumpram as suas obrigações em casa, na escola, em qualquer lugar. Se você quer que seu filho seja uma pessoa de bem, mas que também saiba falar direito, argumentar, ter sua própria opinião, ser independente, é preciso ensinar, não é? Então, a gente ensina a ter responsabilidade, a assumir os erros, a pedir desculpas, tudo, tudo. [A pesquisadora pede um exemplo.] Ah... quando eles esquecem algum caderno em casa, ou uma pesquisa, a gente não leva na escola, não. Eles já sabem, se esquecer ou errar alguma coisa, tem que assumir o erro, tem que aguentar a punição, se ela acontecer. A gente vai orientando eles, ensinando o que é certo e o que é errado. É preciso isso. (Mãe professora de Matemática, três filhos)

Chama a atenção também a prioridade concedida por esses pais à comunicação no interior da família. O diálogo é valorizado por todos os pais desse grupo e citado pela quase totalidade dos filhos como algo positivo na educação recebida dos pais. A evidência do diálogo como uma prática educativa cotidiana aparece em muitos relatos: os pais conversam com seus filhos sobre os comportamentos e atitudes em casa e fora dela, assim como também buscam tratar tanto de assuntos familiares quanto de temas extradomésticos, ou seja, conversam sobre as “coisas da vida” (expressão utilizada por um pai professor).

Eu fico pouco tempo em casa, eu trabalho nos três turnos, praticamente nos três turnos, agora eu aproveito muito bem o tempo, uma coisa que é bom, é que eles estudam no mesmo colégio que eu trabalho, então eu acordo, minha rotina, eu acordo 5 e meia da manha, preparo o café, já acordo minha família. A gente fala muito lá em casa, todo mundo. Aí a gente começa a conversar, ai eu trago eles, eu venho com eles pro colégio, na hora da volta, eu volto com eles. Aí chego, preparo o almoço, sempre conversando, ai eu volto, agora a F. [filha mais velha, 14 anos] volta comigo, também, né? A gente conversa sobre tudo. Mas eu tenho muita leveza, pra chegar neles, pra conversar, a gente é muito aberto. Eu gosto assim: Vamos sentar eu e você e vamos discutir como que vai ser. As coisas não são impostas, elas são conversadas mesmo. Um dia, a F. falou que queria namorar. Ela já sabe de tudo o que ela pode fazer, o que ela deve e não deve fazer. A gente conversa sobre isso.. Então, ela não precisa esconder essas coisas que eu acho que é elementar no namoro não. [...] Aí, eu falei, pode namorar, mas não pode atrapalhar os estudos, tem hora pra namorar e hora pra estudar [risos]. Nós fizemos juntos um, assim, um planejamento do tempo [risos]. Coisa de professor. [risos] A gente vai orientando, vai mostrando o que é melhor pra eles. E os melhores amigos da gente estão na família, né? Eu acho, querendo ou não, eu tenho muito esse laço de sangue comigo. A família tem que ser unida, pra isso eu acho que é importante conversar muito, tudo lá em casa é na base da conversa, até as imposições [risos]. A gente ensina o sim e o não, mas através de muita conversa, costuma dar certo. (Pai professor de Matemática, dois filhos)

Bom, procuramos sempre dialogar sobre tudo. A mãe sempre respeita as minhas decisões e, eu, as dela. Quanto há divergências de idéias, conversamos longe dos meninos para chegar num consenso. Com as crianças é do mesmo jeito, nós procuramos conversar bastante sobre tudo.[a pesquisadora pede um exemplo] Ah, a gente conversa quando eles têm algum problema na escola, ou com um amiguinho. [...] Não dá pra ficar resolvendo tudo com castigo, com punição. Nós vamos mostrando pra eles, isso tá certo, isso não e eles acabam entendendo. Até quando damos um castigo [risos], de vez em quando, é preciso, né? A gente sempre conversa: Olha, essa atitude não foi correta, você repetiu. Então, eles acabam aceitando e entendendo que é para o bem deles. É uma aprendizagem mesmo. O mais velho não dá nenhum problema não, mas o mais novo é da pá virada. Com ele, precisamos ficar mais firmes, mas nunca repreendemos sem explicar os motivos da bronca. Na escola, ele de vez em quando ele apronta, aí temos que trabalhar com ele isso, nós não permitimos relaxamento na escola não. Tem que estudar, tem que fazer tudo direito. Nisso ficamos de cima mesmo. (Pai professor de História, dois filhos)

Em relação a todos os aspectos, fica bastante claro que estamos falando de famílias “orientadas para a pessoa” (BERNSTEIN, 1973). Famílias cujas práticas educativas são fundadas no preceito da “comunicação aberta” e cujas decisões e julgamentos são elaborados com base nas qualidades psicológicas da pessoa e não no seu estatuto formal (de filho ou de pai). Os pais professores desse grupo estabelecem relações em que pais e filhos operam com um vasto leque de alternativas de pensamento e de ação e não com práticas previamente estabelecidas pelos papéis atribuídos a cada membro da família. Num sistema com tal orientação, a educação dos filhos é prioridade familiar, e todos os comportamentos são discutidos e elaborados verbalmente, conduzindo a um tipo particular de “conversa” em que o conteúdo da comunicação são os juízos e as suas consequências. “Meu pai me escuta, “ele me orienta, ele me explica o que é melhor pra mim” afirma um dos filhos. Muitos outros ponderam igualmente: “eu confio no meu pai, ele é exigente, não me dá trégua, mas ele sabe conversar comigo, a gente tem diálogo”; ou “puxa, minha mãe conversa sempre comigo, ela me dá liberdade, mas, ao mesmo tempo, me cobra muito, acho que esta exigência é bom pra mim, então eu entendo ela”.

Desse modo, a maneira de essas famílias se comunicarem pode ser associada ao que Bernstein (1973) denominou como “interação dinâmica”, modo de comunicação comum às famílias de classe média. Nessa modalidade de comunicação, existe uma pressão — por parte dos pais — no sentido de intensificar e verbalizar a consciência da separação entre “eu e os outros” e entre “eu e os objetos”, fazendo com que os objetos tenham maior significado e possam ser pensados e refletidos: os objetos não são apenas dados, eles se tornam centros de inquérito e pontos de partida para o estabelecimento de novas relações. Esse tipo de comunicação opera muitos efeitos nas experiências das crianças, tornando-as cada vez mais conscientes da existência dos objetos, o que aguça sua vontade de conhecer e compreender o mundo e, ao mesmo tempo, recompensa seu movimento exploratório. Os pais incentivam os filhos a verbalizar suas impressões sobre os objetos e as situações, permitindo que a cada objeto possam ser dadas diferentes interpretações e significados. É interessante observar que, socializada nessa lógica, a criança torna-se, segundo Bernstein (1973), mais receptiva aos ordenamentos dados pelo adulto sem que abdique de sentimentos de rebeldia e da liberdade de expressá-los. Além disso, a criança, socializada nesse modo de comunicação, aprende a utilizar duas linguagens: a linguagem do “entre iguais”, com os pares, e a linguagem formal, que contribui para a sua inserção em uma vasta gama de situações sociais, dentre elas, a situação escolar.

A consonância entre as lógicas socializadoras familiar e escolar possibilita aos filhos do primeiro grupo a apreensão e o domínio de elementos constituintes do mundo escolar: o modo de comunicação, o modo de autoridade e a relação com o tempo (CHAMBOREDON e PREVOT, 1973; THIN, 2006). O mundo escolar é marcado não só por um modo de comunicação baseado na “interação dinâmica” (citado acima), como também por um modo de autoridade construído na contextualização e na negociação de significados. Ademais, o universo escolar é regido por calendários e horários, é marcado por uma temporalidade regulada, que coincide com a forma como os filhos dos professores organizam seus tempos na vida cotidiana (horário determinado para as tarefas, tempos marcados para as atividades de lazer, etc).

Para os filhos das famílias desse grupo, o mundo escolar é uma continuidade do mundo familiar. A construção da autonomia e da autodisciplina – enfatizadas nos discursos dos pais professores – constitui também a tônica das pedagogias modernas. A autonomia, entendida como autodisciplina do corpo e da mente, parece ser também algo bastante valorizado pela escola (LAHIRE, 2004, 2007). Um bom aluno é aquele que sabe ouvir, que pede a vez para falar, que se comporta bem, que tem iniciativa nas atividades escolares, que não depende inteiramente do professor, que sabe fazer sozinho algumas atividades e que, principalmente, é organizado e apresenta uma regularidade no trabalho. Assim, a imagem de um bom aluno coincide com a imagem de um “bom filho”: “Ele é um bom menino, ele vai bem na escola”, “eles são ótimos meninos, não dão trabalho na escola”. E ainda: “Ela é uma boa filha, tira sempre boas notas”, “ele é um bom filho, não precisa ficar mandando fazer” são falas recorrentes nos depoimentos dos pais.

De acordo com Lahire (2004, p. 64), “uma vez que a criança formou, na interdependência com seus pais, um conjunto de disposições e de competências, escolarmente adequadas, pode enfrentar, ‘sozinha’, as exigências escolares”. Os filhos dos pais professores, imersos numa lógica socializadora que os capacita a um self-government, construído num “ethos que reconhece, imediata e tacitamente, princípios de socialização, regras do jogo não muito distantes daquelas que presidiram sua própria produção” (p.65), estão aptos a decifrar o mundo da escola e a “virar-se bem” nele, porque interiorizaram os esquemas mentais e os comportamentos necessários ao sucesso escolar.