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Escolha do estabelecimento de ensino: uma escola que seja “criativa”

3.2 Grupo 2: Famílias fortemente orientadas para a realização pessoal

3.2.2.2 Escolha do estabelecimento de ensino: uma escola que seja “criativa”

Todas as famílias do grupo 2 escolheram a rede particular para escolarizar seus filhos. A opção pela escola particular não é novidade, pois, como vimos, a preferência é bastante comum em todo o universo pesquisado. Segundo Ballion (1982), as famílias que procuram a rede particular são “consumidores especializados”, que atuam em três dimensões: a) fazem um levantamento da oferta educacional no mercado; b) classificam os estabelecimentos e separam aqueles que poderiam atender à sua demanda; c) procedem a uma análise custo- benefício que pode variar ao longo da escolarização, dependendo da idade e do nível escolar do educando.

Tal comportamento “especializado” também pode ser observado nas famílias desse grupo. Os relatos revelam que elas classificam as escolas do município de acordo com as suas expectativas educacionais e com o conhecimento produzido/adquirido a respeito de cada um dos estabelecimentos. Segundo Establet (1987), as famílias cujos pais, principalmente, a mãe, possuem formação de nível superior realizam um “verdadeiro trabalho para o conhecimento total da vida escolar dos filhos” para, de posse desse conhecimento, fazerem as escolhas acertadas. No caso dos pais professores, essa tarefa é considerada por eles como algo “natural”, tendo em vista que estão imersos no mundo escolar e possuem uma rede de relacionamentos que possibilita acesso mais fácil a essas informações sobre as escolas.

Eu escolhi o CS [colégio de tradição na cidade]. A escolha é assim algo natural, né? A gente que é professor já conhece as escolas, você sabe aquela que tá mais de acordo com o que você pensa, com o que você acredita, né? Você vai observando as escolas, sabe aquela que trabalha os valores que você acredita, que tem um bom ensino mesmo. E, também, as que a gente não conhece por dentro diretamente, a gente conhece muita gente. De todo modo, a gente entende pela fala dos outros como é que é a escola, entende? (Mãe professora de Português, dois filhos)

A preocupação com a escolarização das crianças também se iniciou bem cedo, no seio dessas famílias. Os pais relatam que, desde a educação infantil, procuraram escolher uma escola que atendesse às suas expectativas. Mas quais são essas expectativas? Que critérios são utilizados pelos pais na hora de escolher a escola? Que aspectos da escola ligados à “ordem expressiva” prevalecem na escolha? Que dimensões da ordem instrumental são observadas pelos pais? Qual o papel exercido pelo fator “clima escolar” nos processos de escolha? Os pais utilizam critérios de ordem funcional como a localização da escola, por exemplo?

As expectativas desses pais em relação à escola podem ser inferidas por meio da análise dos critérios que eles utilizam para selecionar o estabelecimento de ensino. Tal seleção é uma estratégia educativa que não pode ser vista isoladamente, mas integrada a outras estratégias formando um “sistema”. Assim, cada estratégia está ligada a outras estratégias anteriores e posteriores e depende dos resultados esperados de cada uma delas (BOURDIEU, 1989b, 1990). Partindo do pressuposto acima, a análise dos critérios de escolha pode contribuir para a compreensão mais ampla do sistema de estratégias educativas dessas famílias.

TABELA 43

Pais professores do grupo 2 segundo critérios para escolha do estabelecimento de ensino

Critérios adotados N.

Proposta pedagógica e qualidade do ensino Valorização da criatividade e da reflexão

Bons professores e boa gestão Clima escolar favorável e boa clientela

Segurança

Infraestrutura e condições materiais Mesma escola em que o professor trabalha

9 7 7 6 4 1 1

Fonte: Dados coletados através de entrevista realizada com os 40 pais professores selecionados.

Como os dados revelam, os aspectos “avaliatórios” se sobrepõem amplamente aos “funcionais”, o que não causa surpresa, levando-se em conta o perfil social e cultural dos sujeitos em questão (BALLION, 1982). O que chama a atenção é que, pela primeira vez, no

conjunto dos 40 pais professores entrevistados, o critério “valorização da criatividade e da reflexão” foi por eles declarado.

A opção pelas escolas é porque eu conheço o projeto pedagógico e eles valorizam assim a criança pensar, criar, sabe? Eu olho isto. Vejo se a escola tem uma boa proposta, tem bons professores, mas também se esta proposta é baseada numa educação mais voltada pra criança mesmo, pra criatividade. Uma escola assim mais criativa, né? A C [filha, nove anos] estudava em outra escola mais tradicional. Ela sofria lá, é tudo muito formatadinho. E foi, quando ela foi pro S [colégio particular], ela melhorou demais a aprendizagem dela, a socialização, eu vejo que ela aprende mais feliz. Mas é claro que eu olho também a questão da qualidade mesmo. (Mãe professora de História, dois filhos)

Quando os meninos foram pra escola, na educação infantil, no maternal mesmo, eu já escolhi pensando na proposta da escola. Qual a concepção deles de educação, como eles vêm a criança, tudo isso eu olhei. Você sabe que a gente que é professora acaba conhecendo isso melhor, então, a gente exige mais da escola. Eles estão na mesma escola desde a educação infantil. Lá, eu sei que é mais aberto, os meninos podem usar mais o pensamento, aprendem mesmo a pensar. Eu sei que o CS [escola de tradição na cidade] é uma escola com muito mais estrutura, focada no vestibular mesmo. Eu também preocupo com o vestibular, mas não dá pra tratar os meninos como se fossem maquininhas. Eu prefiro uma escola mais alternativa, assim, mais voltada pra criação, mais lúdica, mas é claro que com conteúdo também. É isso que eu olho. (Mãe professora de Ciências, dois filhos)

Pra escolher a escola, nós escolhemos juntos eu e o M. [cônjuge]. Ele estudou no CS [escola de tradição da cidade] desde o 5º até formar, eu já estudei no Estadual [escola pública estadual que até a década de 80 gozava de prestígio acadêmico]. Então, ele queria colocar no CS, mas eu não concordei. É uma escola maravilhosa, com muito conteúdo, né? Mas eu fico pensando se vale a pena tanto sacrifício. Eu vejo filhos de amigos meus que estudam lá, eles sofrem muito, é uma escola excelente, mas pra quem vê a educação assim. Eu não vejo. Eu acho que a criança tem que ter liberdade pra ser criança mesmo, pra ser ela mesma. Eu preferi colocar ela [filha, 10 anos] no E.[escola particular vinculada a um sistema de ensino] que também não é o ideal, mas, pelo menos, o aluno pode criar mais. Eu também trabalho lá, mas não é por isso, não. Se a escola não atendesse, eu não colocaria lá só porque trabalho na escola. É uma escola mais reflexiva, sabe como? Às vezes, eu acho que falta um pouco mais de conteúdo, mas, como ela vai bem, eu não preciso me preocupar tanto assim, e também, como não existe uma escola perfeita. A gente acha que lá ainda é melhor porque eu penso que, se a L. desenvolver o pensamento, a criatividade, o resto ela vai dar conta, independente da escola. Por enquanto, ainda não mudei de idéia, não. Não sei se eu vou mudar depois quando ela estiver maior. [Mãe professora de História, uma filha]

Os depoimentos revelam a preferência de cinco famílias por escolas menos tradicionais que adotam uma “pedagogia invisível”, nas quais o enquadramento é mais tênue, e onde o papel do professor é propiciar os contextos nos quais os discursos e seus significados podem ser criados e recriados pelos alunos. Eles recusam optar por escolas que

trabalham na perspectiva de uma “pedagogia visível”, nas quais o enquadramento é rígido e o controle sobre as relações e os discursos é mais forte e explícito47 (BERNSTEIN, 1977). Mas outra tendência também está presente, como revelam os depoimentos abaixo. Os outros quatro pais professores do grupo optaram por escolarizar seus filhos numa só escola, de grande porte, com características mais voltadas para o que Bernstein denomina como uma “pedagogia visível”.

O colégio foi a opção porque nós conhecemos o trabalho deles, né? Então, não tínhamos nem o que questionar; se lá tivesse no primeiro aninho que eu precisava colocar na escola, eu já colocaria lá, com certeza. Olha, ali no colégio, valorizo a qualidade do ensino, o cuidado, a gente sabe, conhece o trabalho dos professores. O cuidado das professores, eu valorizo demais, eu acho importante nessa idade, carinho, atenção, receber esse aluno. Então, assim os valores que a escola tem mesmo, a preocupação lá não é só com o conteúdo, é com a pessoa também. O espaço que o colégio tem, que eu acho que para criança é importante, principalmente a gente, que vive em apartamento, na hora que chega ali uma maravilha, uma maravilha! E para mim, falar da metodologia do colégio e um método que a gente acredita, né? Então, apesar de ser mais tradicional, eu acho que a escola consegue trabalhar bem a criatividade dos meninos, o modo de pensar e questionar as coisas. Apesar de que eu acho que precisava ser um pouco mais aberto. Mas você sabe que é um trabalho mais sério, mais orientado, né? Não é um trabalho qualquer. Aí a gente vem juntando um pouquinho de cada coisa para escolher, pra fazer esta escolha. (Mãe professora de Ciências, uma filha)

Sim. Elas [filhas] sempre estudaram no colégio. E, em primeiro lugar, eu não sou de Itaúna, mais minha esposa, sim. E ela em algum momento, lá na época do ginasial dela, ela estudou lá. Ela estudou no Estadual, mas fez outros cursos no colégio. Não sei se foi magistério, não lembro exatamente qual que foi. Um aqui e outro em outra escola. E ela sempre gostou daqui. E, quando eu vim pra Itaúna, eu me apaixonei pelo espaço físico do colégio. Até então, não conhecia os valores, não conhecia a estrutura pedagógica da escola em si. Mas o espaço físico era uma coisa, é uma coisa que qualquer um que chega aqui se encanta. Isso a gente não vê, eu sou de Belo Horizonte, aquela cidade tumultuada. E a gente chega aqui e essa paz. Essa alameda central, a estrutura física foi um dos fatores, mas o que me cativou a trazer as meninas pra cá foi saber que a escola preocupa com a ética, com a construção moral da criança. Isso é tudo pra mim, aí vem junto o ambiente, o clima da escola é saudável, aqui elas teriam bons coleguinhas. Nós pensamos, e então antes de decidir eu procurei saber sobre a proposta da escola, a qualidade do ensino, essas coisas. E depois eu comecei a trabalhar aqui, aí conheci melhor a estrutura interna do colégio,

47Os conceitos de “pedagogia visível” e “pedagogia invisível” foram desenvolvidos por Bernstein (1977), na busca de compreender a relação entre classe social e pedagogia. Segundo o autor, nas pedagogias visíveis a hierarquias são bastante nítidas e a regra é “as coisas devem ser mantidas separadas”: aluno x professor, conteúdo escolar x conteúdo do cotidiano. Nesse tipo de pedagogia, as fronteiras entre os conhecimentos são bastante rígidas, e a forma de aquisição dos conteúdos escolares é fundada numa lógica transmissiva. Ao contrário, nas pedagogias invisíveis, as regras de hierarquia são implícitas, e o enquadramento (controle) também é menos visível. Desse modo, nas pedagogias invisíveis, a relação professor/aluno é mais simétrica, e o professor cria os contextos nos quais o aluno pode recriar e explorar os objetos. Nessas pedagogias, a regra é “mantenham as coisas juntas” e, consequentemente, as fronteiras são assim esbatidas entre aluno e professor, entre conhecimento formal e informal. Bernstein afirma igualmente que as pedagogias invisíveis são implementadas pelas classes médias e geradas pela complexificação crescente da divisão de trabalho de controle simbólico.

a parte pedagógica, a estrutura e o apoio que o colégio disponibiliza pros professores é incomparável. Hoje eu tenho total segurança de que eu estou tendo oportunidade de oferecer o melhor pra elas, a melhor escola, um estudo de qualidade. Os meus pais falaram isso uma vez, que a escola é diferente das que eles conhecem. Eles moram em Belo Horizonte e se encantaram com a escola. Você sabe que a escola é tradicional, mas é um tradicional renovado, né? Os alunos aprendem também a ética, eles também trabalham a criatividade que eu acho muito importante, não é só conteúdo, não. (Pai professor de Espanhol, duas filhas)

O que é convergente em todos os depoimentos do grupo é que as famílias valorizam tanto aspectos de ordem expressiva quanto de ordem instrumental, mas a demanda de expressividade é posterior à satisfação dos requisitos instrumentais. Enquanto tudo transcorre satisfatoriamente, a preocupação com os aspectos estritamente escolares (formação científica), fica em segundo plano (SINGLY, 1996a): “Eu acho que falta um pouco mais de conteúdo, mas como ela vai bem, eu não preciso me preocupar tanto assim”.

Em suma, no que tange aos critérios de escolha dessas famílias, pode-se concluir que, no caso dos pais que optaram por uma escola tradicional, no centro dos argumentos, está uma ideia de continuidade dos valores da família, porquanto a dimensão moral do processo pedagógico é bastante valorizada. E, no caso das famílias que optaram por escolas “abertas”, com “pedagogias invisíveis”, o centro dos argumentos é a ideia de que uma boa proposta pedagógica deve ter como foco desenvolver pessoas criativas e reflexivas.