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Dinâmicas intrafamiliares: a criança como pessoa e a “construção de si”

3.2 Grupo 2: Famílias fortemente orientadas para a realização pessoal

3.2.2.3 Dinâmicas intrafamiliares: a criança como pessoa e a “construção de si”

A “realização pessoal” como alvo marca as práticas educativas das famílias do grupo 2. O discurso dos pais professores acerca das dinâmicas familiares indica que a “construção de si” está no centro dessas dinâmicas e conduz suas práticas educativas. Os filhos são considerados como sujeitos capazes de utilizar recursos materiais e simbólicos na busca de um bem-estar psicológico. Nesse sentido, o papel dos pais seria o de oferecer a possibilidade para um “trabalho sobre si, assistido e orientado pelos outros”, ou seja, o de propiciar condições para que essa construção possa ocorrer, para que as aprendizagens da responsabilidade e da autonomia possam ser efetivadas.

O estilo educativo dessas famílias pode ser associado, ao menos em parte, ao estilo designado por Kellerhals e Montandon (1991) como contractualiste, de acordo com o qual as famílias educam seus filhos numa lógica baseada na sensibilidade e na autorregulação. Um

estilo educativo contractualiste valoriza práticas e estratégias que ajudem os filhos a conquistar a realização pessoal, através do desenvolvimento da responsabilidade e da autonomia. O recurso à sensibilidade e à comunicação é bastante usado por famílias que adotam esse estilo educativo, em que as “técnicas de influência” são mais fundadas na empatia do que na normatização das condutas. Os pais procuram estabelecer uma comunicação aberta com os filhos, e a negociação é utilizada sempre que o embate entre valores ou comportamentos ocorre.

A C.[filha, 8 anos], eu acho que ela tem que trilhar a vida dela. Eu coloco isso: filho é nosso enquanto tá na nossa barriga, depois que sai é pro mundo. Tem que preparar pro mundo. E tem que preparar. Então não adianta ficar cercando...ficar apoiando, apalpando porque vai chegar num dia que a minha mão não vai alcançar, não. Por isso, tem que preparar pra vida, tem que formar a pessoa como um todo. Eu acho que o mais importante é ela ser assim responsável com ela mesma e com os outros também, é ela ser uma pessoa autônoma que sabe o que quer, mas que respeita a ela mesmo e as outras pessoas. Isso pra mim é que é importante. Então, tudo aqui em casa a gente conversa sobre tudo. É no diálogo mesmo porque eu quero que ela confie em mim. Então, a gente negocia quando precisa. Ela não vai aprender a escolher se não escolher, não é? Então eu não faço tudo pra ela não, deixo ela escolher. Eu mostro os dois lados e ela escolhe. (Mãe professora de História, dois filhos)

Mais na conversa, na negociação. Eu sou um pouco brava, mas a gente conversa muito, sempre conversei com ela e coloco isso para ela. Eu falo com ela: Mamãe está te explicando, mamãe gosta de conversar com você. Mas nada de impor não, claro que algumas coisas têm regras. Algumas coisas têm regras sim, por exemplo, tem a hora de comer, tem a hora de fazer o dever, a hora de escovar os dentes. Então, ela tem os limites, tem umas coisas que a gente coloca mesmo, mas eu procuro mais ir para o lado da conversa também para chegar onde a gente quer, negociando, conversando, dialogando. Com o pai também, ele conversa, e é tudo bem tranquilo. A gente preocupa com a formação dela, assim, com os valores dessa formação. Também a gente quer que ela saiba se posicionar, que ela tenha opinião. Então a gente não fica impondo as coisas. (Mãe professora de Ciências, uma filha) Eu confesso que sou meio autoritário, eu sou assim... sou mais é... assim... mais exigente. Então, eu tenho que me policiar pra educar direito. Não é com autoritarismo que a gente educa. Pelo menos eu acredito nisso. A mãe ainda tem assim aquela figura materna, a gente não passa mão na cabeça de nenhuma delas, a gente não adula nenhuma das duas. Mas, quando tem que ser mais enérgico, sou eu. Agora, isso quase não acontece porque procurarmos conversar primeiro, na base do diálogo mesmo. Sim. Em primeiro lugar, tem que nos respeitar como pais, em momento algum a gente tenta ser muito manso e também, claro, não muito rígido. Então, primeira coisa, respeito, absolutamente nós não admitimos mentira, não que elas não mintam, mais faz parte do nosso papel mostrar que está no caminho errado. Como a gente faz isso, mostrar esses valores, a gente não impõe, a gente ajuda a construir mesmo. Vai conversando e mostrando os dois lados da moeda, eu sempre falo pra elas que na vida sempre temos dois caminhos, duas escolhas, depende da gente mesmo escolher o que for melhor. Eu quero que elas aprendam a escolher. Isso faz a pessoa ser mais humana. Eu vou ficar muito feliz se, quando adultas, elas forem pessoas resolvidas, que sabem o que querem da vida, mas que também têm

valores, sabem conviver. Assim, elas vão se construindo enquanto ser humano mesmo. Agora a mãe é um pouco diferente, eu vou tentando mostrar pra ela. Mas na verdade, como eu fico em casa a tarde, eu trabalho de manhã no colégio e à tarde faço meus projetos, o meu escritório é aqui em casa mesmo. Então, meu tempo é mais flexível, sou eu quem cuido mais de perto da educação delas. A mãe chega sempre bem tarde. Ela trabalha na Caixa [Caixa Econômica Federal] e não tem hora pra chegar, tem dia que ela chega e as meninas já estão dormindo [risos], papéis trocados, né? [risos] Eu digo que sou o marido que toda mulher queria ter... [risos] (Pai professor de Espanhol, duas filhas)

Como se pode ver, o exercício da autoridade parental, nessas famílias, tem como fundamento o “respeito”. Aqui, a noção de respeito se refere, não ao reconhecimento de uma autoridade superior, mas ao direito, de todos os indivíduos, adultos ou crianças, de serem reconhecidos e valorizados como pessoas (SINGLY, 1996a). Então, se a regulação moral não é operada verticalmente, os pais buscam negociar com os filhos, através do diálogo, que é, como vimos, um leitmov nos depoimentos dos pais.

Valores... A gente procura ensinar pros meninos que as pessoas não são iguais, que existem formas de pensar diferente daquilo que a gente pensa. Então eu acho que é importante desenvolver neles assim um senso moral mesmo. Pra depois, eles saberem o que é certo e o que é errado sem ninguém ter que impor isso. Ah... É autonomia mesmo, né? Agora, outra coisa que eu acho importante é que eles também saibam opinar, que não aceitem tudo como uma verdade. Isso é difícil porque na escola acaba que eles [os professores] não aceitam muito os meninos questionadores. Esse é o único defeito do colégio, eu queria que eles desenvolvessem mais assim um espírito crítico mesmo. (Mãe professora de Português, uma filha)

A gente valoriza aqui em casa a sensibilidade, sabe? Se você aprende a se sensibilizar, você não fica egoísta, você aprende a ver o outro como pessoa, você aprende a se ver também como pessoa. Nós achamos, aqui em casa, que as crianças precisam desenvolver isso. A gente não nasce sabendo isso. Sensibilidade, criatividade, tudo isso a gente aprende. Mas eles precisam de regras também. Então, tem os valores assim, do respeito, do limite. Tudo isso tem que ser levado em conta na educação dos meninos. (Mãe professora de Química e Ciências, três filhos)

Os pais das famílias do segundo grupo estão mais preocupados em “deixar fluir” as potencialidades dos filhos do que em modular sua personalidade. Através de uma prática educativa fundada na premissa do “trabalho sobre si, orientado pelos outros”, eles devem descobrir os talentos “escondidos” de seus filhos (SINGLY, 1996a, 2001). Para isso, estão atentos às diferenças entre eles e buscam estimular o desenvolvimento de qualidades como “senso moral”, “espírito crítico” e “sensibilidade” e, por fim, “criatividade”.

A ênfase maior nas qualidades expressivas é própria, segundo revelam os trabalhos de Kellerhals e Montandon (1991), das famílias das classes médias e das elites. Já as famílias

que ocupam posições mais subalternas na hierarquia social valorizam, segundo os estudos citados, a inculcação da ordem e da obediência. No entanto, variações no interior das famílias podem transgredir em certa medida essa lógica, ou ainda, transmutá-la, dando a ela, graus e pesos diferentes.

3.2.2.4 Acompanhamento das atividades escolares: autoridade negociada e a construção