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Pais professores na pesquisa sociológica brasileira

Foram encontrados apenas três trabalhos de autores brasileiros que focalizam práticas educativas familiares de pais professores. Trata-se de três dissertações de Mestrado defendidas na Pontifícia Universidade Católica de Salvador (em 2005), na Universidade de São Paulo (em 2006) e na Universidade Federal de Santa Catarina (em 2006).

Regina Santana (2005) pesquisou pais professores que exerciam a docência na rede pública estadual de Salvador, nos anos de 2003 e 2004 e constatou que, mesmo dispondo de recursos financeiros reduzidos, eles optam por fazer “sacrifícios” para colocar os filhos na rede particular de ensino. Segundo a autora, do grupo de professores pesquisados, apenas 33% colocaram os filhos na rede pública em algum momento da trajetória escolar. Desse

11 As pesquisas se utilizaram de dados estatísticos produzidos pelo Ministério da Educação Francesa em 1960, pela enquete “Éducation et Famille, publicada pelo INSEE (Institut national de la statistique et des études économiques), em 2003, e os dados do Panel 1995, versão 2008.

total, mais da metade declara que o fez “por não ter conseguido evitar essa situação” (p. 103), em razão de condições financeiras muito precárias. Os resultados da pesquisa apontam, como principal fator de rejeição da escola pública, o fator “credibilidade”. Por credibilidade, os professores pesquisados entendem “a competência da escola em preparar os alunos para as exigências do mercado as quais ele terá que enfrentar ao longo da vida, como estudante e como profissional” (p.127). Assim, esses pais professores veem a escola pública como “escola de pouca ou nenhuma credibilidade” e repudiam, segundo Santana, a ideia de nela matricular seus filhos. O segundo fator de rejeição apresentado pelos pais professores foi a “segurança”. Para eles, a escola pública não oferece a segurança necessária para que os filhos sejam protegidos contra a violência da sociedade contemporânea.

Na mesma direção, a pesquisa de Rosemeire Reis (2006) — que resultou numa dissertação defendida na Faculdade de Educação da USP — investigou relações estabelecidas por professores da rede pública estadual de São Paulo com a educação escolar dos filhos. O trabalho examina as estratégias desenvolvidas pelos professores nesse âmbito, focalizando a escolha do estabelecimento de ensino. O estudo — realizado no período de 1998-2001 — promove uma importante discussão sobre os motivos que levam os professores da rede pública a escolherem determinado estabelecimento de ensino para a escolarização de seus filhos.

Segundo Reis, 60% do grupo de professores da escola pública, por ela investigado, escolhem escolas particulares para a escolarização de seus filhos. Através de uma análise qualitativa, Reis analisou os sentidos atribuídos pelos professores à sua trajetória de vida, à formação e à experiência profissional e sua relação com a escolha da escola particular como estabelecimento de ensino apropriado para os filhos. Essa análise demonstra que os motivos que levaram os pais — quase todos pertencentes a segmentos mais desfavorecidos das camadas médias — a realizarem pesados sacrifícios econômicos para oferecer aos filhos determinadas oportunidades educacionais não se resumem à questão da qualidade do ensino. Os depoimentos das professoras mostram que, se a qualidade do ensino é um forte motivo, outros critérios também são levados em consideração. Dentre esses critérios estão: preocupação com a segurança dos filhos, preocupação com o perfil da clientela do estabelecimento (com as companhias consideradas boas ou más), com as condições disciplinares e com o tratamento dispensado ao aluno (massificado ou individualizado). Dessa forma, Reis reconhece que o critério qualidade é apenas uma das dimensões observadas por esses pais, ao optarem pela escola particular como lugar privilegiado para a escolarização dos filhos.

Entretanto, as constatações de Reis sobre os motivos da escolha do estabelecimento de ensino pelos professores da escola pública levantam algumas interrogações: que processos antecedem essa decisão e a sucedem? Que condutas os pais assumem quando colocam seus filhos nas escolas selecionadas, no sentido de favorecer o processo de escolarização e otimizar essa escolha? Como se dá o envolvimento dos pais na vida escolar?

A terceira pesquisa, realizada por Joelma Marçal de Andrade (2006) e inserida na sua dissertação defendida na Universidade Federal de Santa Catarina, abordou a escolarização dos filhos de professoras do Ensino Fundamental da rede pública. A pesquisa focalizou a influência profissional docente na educação escolar dos filhos, buscando conhecer as estratégias educativas desenvolvidas por mães professoras dos anos iniciais do Ensino Fundamental. O grupo pesquisado por Andrade foi composto por 20 professoras da rede estadual de Santa Catarina, sendo que apenas oito delas possuíam, no momento da pesquisa, o curso superior completo.

Essa pesquisa demonstrou que as mães professoras se serviam do conhecimento possuído sobre o funcionamento escolar, ao escolher o estabelecimento de ensino, e, até mesmo, a professora regente. Em relação à escolha da professora para o filho, a pesquisadora aponta alguns aspectos interessantes. Das 20 professoras pesquisadas, apenas três viveram a experiência de ser, concomitantemente, mãe e professora de seu filho, sendo que todas elas disseram não aprovar tal experiência, mesmo que a tenham realizado por causa da insistência dos filhos. Todas as mães professoras pesquisadas afirmaram que, no final do ano letivo, já começavam a pensar na escolha da professora para o ano seguinte. Os critérios utilizados por elas eram três: a) o domínio de uma gama de informações e conteúdos, b) utilização de uma pedagogia “avançada”, com o desenvolvimento de métodos didáticos não tradicionais, c) valorização de hábitos e atitudes.

Entretanto, a autora evidencia a existência de uma relação bastante frágil entre as práticas de acompanhamento escolar desenvolvidas pelas mães e a busca de um melhor desempenho dos filhos na escola. Ressalta-se, assim, a constatação da autora sobre os limites da mobilização do capital cultural e profissional pelas mães professoras, no sentido de favorecer a escolarização dos filhos. Segundo Andrade (2006), “a ação pedagógica parental tem seus limites, sobretudo se considerarmos as condições precárias de trabalho das professoras das séries iniciais no Brasil e pela origem social desse grupo (baixo capital escolar e cultural”. De modo geral, as mães professoras, no contexto da investigação realizada, apesar de possuírem o “sentido do jogo” (na perspectiva bourdieusiana) proporcionado pela convivência no interior da escola e pelo capital social produzido pela rede de relacionamentos

nesse ambiente, acabavam por restringir sua intervenção na vida escolar dos filhos, no que diz respeito às condutas emergenciais, resolvendo problemas e dificuldades mais imediatas. A autora afirma, ao final da pesquisa, que as docentes entrevistadas “não encontram as disposições ideais para oferecer aos filhos condições propícias para a apropriação de seu patrimônio cultural e profissional” (ANDRADE, 2006, p. 142).

No entanto, em primeiro lugar, as constatações de Andrade não invalidam todo um conjunto de trabalhos (Cf. item 1.3 acima) que demonstraram as vantagens associadas à profissão docente, quando se trata da escolarização dos filhos. Sua pesquisa exerceu um efeito provocador e estimulante em vários questionamentos feitos durante as análises realizadas no presente trabalho. Em segundo, se, conforme Andrade, as mães professoras investigadas encontravam limites profundos para a mobilização de um capital cultural que favorecesse a vida escolar dos filhos, as análises realizadas no capítulo 3 deste trabalho, mostram que, no caso dos pais professores do presente estudo, constatamos que, mesmo quando desprovidos de um alto capital cultural, eles mobilizam outros recursos simbólicos e materiais no sentido de beneficiar a escolarização dos filhos, obtendo resultados bastante favoráveis.

Assim, é importante levar em conta em que medida e com quais nuanças os múltiplos aspectos intrínsecos à heterogeneidade de um grupo de pais professores com formação superior — em relação ao sexo, ao grau e à rede de ensino de atuação, à área de conhecimento da formação e da disciplina ensinada — podem impactar a vida escolar dos filhos e das filhas. Além disso, o que chamou atenção na discussão realizada por Andrade é a utilização do conhecimento da instituição escolar — denominado, pela autora, como “capital profissional” — pelas mães professoras, na solução das dificuldades escolares enfrentadas pelos filhos e dos problemas causados por desentendimentos com a professora ou com outros profissionais da escola. O capital que a autora denomina como “profissional” se refere ao conhecimento dominado pelos professores, da dinâmica escolar, do seu modo de funcionamento e de suas regras explícitas e implícitas. A expressão “capital profissional” também foi utilizada por Nogueira (2003, p. 143) em estudo sobre as trajetórias escolares de filhos de professores universitários. A autora partiu do pressuposto de que os pais professores universitários se beneficiam de um tipo de capital que não se reduz ao capital cultural, apesar de estar intrinsecamente vinculado a ele. Segundo ela, “trata-se de um patrimônio que decorre da sua condição de produtores do saber, de sua relação profissionalizada com ele (e sua transmissão metódica) e que pode ser investido lucrativamente na escolaridade dos filhos”. Em suma, o “capital profissional” se refere, segundo a autora, a um conjunto de recursos — conhecimentos, práticas e percepções — que consciente ou, inconscientemente, são

adquiridos tanto nos processos de formação quanto no exercício prático da profissão e na vivência nos locais de produção e reprodução dessas práticas.

Van Zanten e Duru-Bellat (1999), por sua vez, falam de um “capital social interno à instituição” de que dispõem os professores e que os auxilia na escolha do estabelecimento de ensino para os filhos. Isto significa que pais professores mantêm contatos e relacionamentos no “mundo escolar” que lhes trazem benefícios e vantagens no momento de escolher a escola dos filhos.

Desse ponto de vista, podemos reafirmar o que já foi afirmado: os pais professores apresentam uma situação privilegiada no plano das relações família-escola, porque, de posse de um tipo de “capital”, obtido através de sua própria imersão no universo da escola, são mais capazes de decodificar o funcionamento desse sistema escolar e melhor se servir dele em benefício próprio.

Esses aspectos foram considerados ao longo deste trabalho, levando-se em conta a heterogeneidade das práticas culturais e profissionais dos professores. É importante lembrar, também, que a diversidade das práticas de envolvimento e participação no cotidiano dos processos de educação escolar dos filhos e os sentidos e significados conferidos aos processos de escolarização e às práticas escolares não são, aqui, vistos como estanques ou homogêneos, mas como processos dinâmicos e particulares.

Para compreender a dinamicidade das práticas educativas dos pais professores foram tomados, como parâmetros de análise, os variados aspectos constitutivos da relação família- escola: a mobilização de capital cultural e social nos processos de escolarização e elementos específicos das estratégias educativas parentais e do envolvimento na vida escolar dos filhos.

Na perspectiva dessa complexidade, os capítulos seguintes discutirão as múltiplas práticas cotidianas de escolarização que os pais professores desenvolvem no contexto da vida escolar de seus filhos. Mas, para isso, faz-se necessária uma apresentação preliminar das condições metodológicas que marcaram a investigação e a caracterização do universo de pais professores pesquisados, o que será realizado no próximo capítulo.

2 O PERCURSO INVESTIGATIVO: A PESQUISA DE CAMPO

Na esteira de Demo (2000), é de se salientar que o uso criterioso de uma metodologia requer o conhecimento teórico e crítico do processo científico, indagando e questionando, em permanência, seus limites e suas possibilidades. A opção por uma determinada metodologia implica discussão teórica anterior e posterior a todo o trabalho de pesquisa, e durante ele, de modo que a definição dos procedimentos e instrumentos a serem utilizados passe por reflexão constante e recursiva que permita avançar em relação à compreensão do objeto pesquisado, evitando-se cair no “monismo metodológico” (BOURDIEU, 1989a), que consiste em escolher determinados caminhos metodológicos por motivos alheios às exigências epistemológicas que o próprio objeto impõe.

O pesquisador deve, portanto, optar pelos instrumentos de análise mais adequados a seu problema de pesquisa, levando em conta não só os desafios impostos pela própria natureza do problema, mas também pelas possibilidades empíricas do terreno de investigação. Mas a construção de um trabalho de campo é uma experiência sempre singular que nunca está totalmente prevista nos livros e manuais de metodologia. Nesse sentido, este estudo se equilibra numa relação (e tensão) dialógica constante entre o terreno empírico e o referencial teórico-metodológico subjacente ao objeto.

A estratégia metodológica adotada nesta pesquisa combina procedimentos de cunho quantitativo com instrumentos de caráter qualitativo. Dados quantitativos foram coletados através de um questionário visando caracterizar o contexto familiar dos pais professores pesquisados, no que tange a aspectos como, por exemplo, tamanho da família, ocupação, nível de instrução dos pais, renda familiar, tornando-se fontes imprescindíveis para a análise qualitativa. Por outro lado, dados qualitativos se fizeram necessários para a apreensão das dinâmicas e práticas educativas familiares. Assim, o percurso investigativo deste estudo se deu em duas dimensões: 1) o exame de dados quantitativos coletados por meio de um questionário com o objetivo de traçar um perfil sociológico dos professores mediante o exame de dados demográficos, econômicos, educacionais, profissionais e culturais e 2) a realização de entrevistas semiestruturadas com uma pequena amostra de pais professores e seus filhos, a fim de investigar, de modo aprofundado, as práticas educativas e as estratégias de escolarização.