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A Dinâmica da formação das gangues: quando os “ratos” tornam-se uma família

ANATOMIA E PERFORMANCE DAS GANGUES

5.2. A Dinâmica da formação das gangues: quando os “ratos” tornam-se uma família

As gangues atraem adeptos que constituem fortes laços de solidariedade, pautada principalmente nos sentimentos de fraternidade, lealdade e fidelidade, na motivação de responder pelo coletivo. Permanentemente dispostos a “brigar uns pelos outros”, os jovens se dizem parte de uma “família”, utilizando uma categoria típica do domínio privado para definir um espaço de segurança e confiabilidade, assegurado num ambiente imprevisível e hostil, como a rua.

Esta “família da rua” é percebida como uma comunidade emocional que ampara, apóia e dá proteção em situações nas quais a “família de casa” não pode intervir, mesmo porque quase sempre desconhece as inquietações dos jovens, que são abertamente discutidas nesse outro cenário de socialização. Na gangue, ou “família da rua”, abre-se um espaço de escuta, fala-se sobre problemas similares, o que aflige e alegra, cria-se um ambiente propício para conversar sobre temas que no seio da “família de casa” seriam menosprezados ou incompreendidos. Na “família da rua” o jovem pode construir uma outra posição no espaço social, distinta da que é pautada pela relação vertical e assimétrica existente na “família de casa”, pois encontra interlocutor semelhante com o qual estabelece uma relação horizontal, de compreensão plena, circunscrita a uma comunidade lingüística comum: “as formas de ser e estar confluem em um espaço compartilhado de idéias, práticas, pensamentos, saberes, éticas e estéticas” (Cerbino, 2006).

As gangues, usualmente, surgem de modo quase espontâneo, não deliberado. São formadas por grupos de amigos nas quadras – “Junta um grupo de galera tipo assim da mesma área, da mesma rua. Tu fala que ta a fim de formar uma galera, já inventa uma sigla, neguinho já se interessa” – e também nas escolas, onde os que se consideram mais espertos, mais malandros, mais “ratos” aproximam-se. Existe um certo acaso na montagem desses grupos. Os jovens se juntam, por exemplo, para defender um amigo ameaçado ou agredido por outro jovem, que, por sua vez, reúne outros amigos para se vingar. Momentaneamente todos desenvolvem o mesmo sentimento e compartilham o mesmo objetivo e, nesse jogo, a cumplicidade e os elos de amizade vão se tornando mais sólidos, dando origem a uma relação quase fraterna, e o grupo termina por se consolidar, assumindo alguns aspectos de uma organização.

É o caso das gangues de pichadores. Uma de suas características é terem cadastros do nome, apelido, endereço, telefone de cada integrante. Em alguns casos, são cadastrados também o grafite de cada um, e os jovens se vestem da mesma maneira, com as mesmas marcas de roupa, com a mesma cor de boné e de camisas, criam uma linguagem própria, com gírias e cumprimentos diferenciados.

Esses grupos podem ter até mais de cinqüenta integrantes, sendo que Isac, líder de um deles, afirmou possuir uma lista de mais de trezentas pessoas que fariam parte da sua gangue. Segundo ele, tudo começou com apenas cinco pessoas, das quais três estão mortas. Há um cadastro feito em computador ao qual somente os líderes a ele têm acesso, por receio da listagem acabar parando nas mãos da polícia4. Nesta lista constam inclusive nomes de pessoas mais velhas, mães de família dispostas a ajudá-los em momentos difíceis, sobretudo quando precisam encontrar refúgio em casos de perseguições policiais. Nestas situações, podem passar vários dias escondidos

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A polícia, em algumas cidades satélites, possui a listagem dos integrantes das gangues, conseguida por meio de sua própria investigação. Em Planaltina, tive acesso a uma dessas listagens elaboradas pela polícia. Dela constavam os nomes dos jovens, as alcunhas, os endereços e os nomes dos pais. Segundo o agente investigador, essa listagem havia sido solicitada pelo alto comando da Polícia Civil. Na Ceilândia, a Polícia Militar possuía mapeadas as áreas mais violentas da cidade, com indicação dos lugares onde os jovens costumavam se concentrar. Em relatórios confidenciais, aos quais não tive acesso, são detalhados o modo de funcionamento das gangues, lideranças e ocorrências. Todos esses registros permitem à polícia informar os pontos de atuação de cada gangue e apontar seus integrantes.

em casas de vizinhos ou mesmo de pessoas que vivem em outras quadras ou em outras cidades do Distrito Federal.

Vários estudiosos salientam que os jovens, tanto homens quanto mulheres, aderem às gangues buscando encontrar resposta para as suas necessidades básicas, como o sentimento de pertencimento, de identidade, auto-estima e proteção, e a gangue parece ser uma solução para os seus problemas em curto prazo5. De fato, os jovens entrevistados reforçam essas idéias e esclarecem um pouco mais sobre o que os levam a aderir às gangues. As razões de entrada são explicadas e justificadas pela falta de alternativas, pelo fato de não se ter nada para fazer, pelo sentimento de exclusão e pela falta de dinheiro. Como membro de uma gangue, o jovem tem em seu imaginário o poder de conseguir dinheiro facilmente, bem como a possibilidade de tornar-se conhecido e famoso.

Há também os que aderem às gangues para “tirar onda, crescer em cima dos outros” e para se sentirem protegidos: “Muitas pessoas entram porque se sentem inseguras. Ele tá passando aqui, aí um moleque vai, limpa ele e toma as coisas toda. Aí ele vai lá chama a gangue dele e vai atrás”. A alternativa de se integrar a uma gangue insere-se, desse modo, “dentro de uma rede de ‘proteção paralela’, em que a ‘circularidade da violência’ condensa proteção e agressão, em que atacar torna-se a regra básica de segurança” (Diógenes, 1998:118)

Segundo os jovens, são inúmeras as vantagens de aderir a uma gangue. De suas formulações discursivas fica registrado o desejo de “ser respeitado”, acima de tudo. O benefício da proteção, de ganhos financeiros, de possuir uma arma, de ter acesso mais facilmente a drogas, de ganhos de sociabilidade – ter amigos, ser popular e ter mulheres –, de sentir liberdade para fazer o que querem, de gozar do lúdico da vida, tudo isso vem mesclado ao enorme desafio e necessidade de “ser considerado”.

Esse desafio não poderia ser explicado tão somente pela exclusão social que sofrem e pela precariedade das suas condições de vida. Se fosse assim, não teríamos tantos jovens “bens nascidos” envolvidos com gangues no Distrito

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Cohen (1955) fala de uma subcultura adolescente por meio da qual o indivíduo busca a satisfação de suas “necessidades sócio-emocionais” que, não satisfeitas pelo primeiro grupo de referência, podem ser supridas pelo grupo de pertencimento.

Federal e em outras partes do Brasil6. Há toda uma outra questão que envolve a noção de honra numa etapa da vida que chamamos de juventude e que não deve ser esquecida num estudo que contempla exatamente grupos de idade inseridos nesta fase.

Lepoutre (1997) faz questão de enfatizar o quanto a noção de honra conserva, ainda em nossos dias, um enorme poder explicativo. Ao contrário de Berger (1970), que defendeu a idéia de que tal noção tornou-se obsoleta na medida em que foi substituída por outra, qual seja, a de dignidade humana, o antropólogo francês, a partir de sua experiência com jovens adolescentes da

banlieue parisiense, defende a idéia de que a honra é “determinante na análise

da conduta dos indivíduos e também dos grupos” (Lepoutre, op. cit: 270)7. Principalmente entre os jovens de sexo masculino, a honra é um valor fundamental na decisão de aderir a uma gangue, seja uma palavra praticamente inexistente em seus discursos. “Honra” comparece nos discursos por meio da noção de “reputação”, fortemente presente em suas consciências. A busca de reputação e prestígio explica numerosas condutas dos jovens e participa, fundamentalmente, da construção da identidade viril, que, retomando os termos de David Lepoutre, “passa pela demonstração espetacular das capacidades físicas e mentais e pela espetaculosidade muito elaborada de si mesmo” (Lepoutre, op. cit: 272).

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Infelizmente, a juventude de classe média brasileira não tem sido objeto de interesse de investigação. Existem estudos pontuais, como lembra o antropólogo Heitor Frúgoli, ao comentar nossa pesquisa sobre os jovens de classe média de Brasília (publicado no jornal Folha de São Paulo, 1999). Evidentemente, nesta hora o nome de Gilberto Velho precisa ser citado. O antropólogo carioca dedicou grande parte de sua carreira como pesquisador à estudos urbanos que tiveram a classe média como alvo de interesse. Contudo, a visão da juventude da classe média brasileira e a dinâmica de seus modos de sociabilidade ainda se fazem conhecidas por meio da mídia. Nos últimos anos, é ela quem alardeia a presença de uma forma inusitada de agregação juvenil entre estes jovens “bens nascidos”, que fazem das cidades o palco de suas práticas de violência: queimam mendigos, matam homossexuais, assaltam entregadores de pizza, empregadas domésticas, roubam bancos, picham e incendeiam o patrimônio artístico nacional. Que espécie de exclusão é essa, na qual existe a garantia do dinheiro fácil no bolso?

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O texto de Berger tem quase quarenta anos, o que não diminui o valor de suas argumentações. Para mim, formada com A Construção Social da Realidade, causou, num primeiro momento, estranheza as críticas de Lepoutre. Mas, em seguida, voltei à Berger, e comecei, como o mestre ensina, a ver no conceito de “dignidade humana” uma “construção social”, bem datada, o que não me impede de considerar Lepoutre um grande leitor dos clássicos da antropologia. Devo, inclusive, à Lepoutre, algumas inspirações e pistas abertas para este trabalho.

Os jovens dão grande importância para os juízos formulados acerca deles, sobretudo para os julgamentos tecidos por seus pares. O valor da pessoa é medido no interior do seu grupo, para o qual devem provar coragem física e seus corolários – bravura, audácia, intrepidez – e demonstrar que aderiram aos valores e ideais partilhados por todos os seus membros. É por isso que para ser honrado e reconhecido como membro de uma gangue faz-se necessário passar por ritos de iniciação.