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ANATOMIA E PERFORMANCE DAS GANGUES

5.10. Gangue: rito de passagem?

Neste capítulo detive-me nas características e dinâmica de ação das agregações juvenis chamadas “gangues” dentro do contexto brasiliense, tal como percebidas e descritas por meus informantes. Creio importante destacar o caráter flutuante e efêmero desses grupos, o que parcialmente explica o fato de muitos jovens terem narrado suas experiências em tempo pretérito: “Quando eu era da ‘X’...”; “No meu tempo de ‘y’...”. Ouvi de Tita, um informante, 19 anos:

Esse lance de gangue é o seguinte: é um círculo vicioso. Os jovens de idade mais avançada vão ficando pra trás e eles vão servindo como espelho para a rapaziada nova, tipo assim, ‘vamos fazer como eles fazia’. Daí surge outra gangue que uma hora ela também vai servir como espelho para os mais novos. É esse lance de círculo vicioso, ta ligada?.

Por um lado, Tita revela com suas palavras uma percepção das classes de idade característica dessa fase da vida designada “juventude”. Isso se traduz por sua maneira simples de classificar os jovens como “de idade mais avançada” e “os mais novos”. Cabe dizer que as diferenças de idade nesse período da vida não constituem uma barreira relacional, ao contrário, no interior de um grupo as relações entre diferentes classes de idade são freqüentes e multiformes. Os “mais novos” nunca ignoram os “de idade mais avançada”, a quem admiram, respeitam e, em algumas ocasiões, desafiam. De sua parte, os “de idade mais avançada” não necessariamente desprezam os “mais novos”, a quem protegem, dominam e, principalmente, iniciam.

Por outro lado, as palavras de Tita mostram ainda uma percepção de que na história de vida dos jovens de sexo masculino da periferia que participam da cultura das ruas – e, em alguns casos, de sexo feminino –, o tempo da gangue faz parte de uma trajetória “natural”, de um momento de passagem bem definido no seu processo de socialização. Podemos indagar: em que medida é possível pensar a gangue como um rito de passagem?

Lembremo-nos que o rito de passagem é um período particular na vida de um grupo que marca a passagem de um estado a outro. Em sociedades tribais o rito de passagem da infância para a idade adulta caracteriza-se por um período de separação, durante o qual a criança é apartada da vida cotidiana.

Passa-se depois a um período de margem, um estágio liminar de transição, no qual os futuros iniciados são submetidos a diversas provas infligidas pelos homens mais velhos que, ao mesmo tempo, ensinam-lhes certos segredos. Finalmente, como parte da última fase do ritual, há um período de agregação que marca o retorno do iniciado à comunidade, agora tendo garantido o seu novo status de adulto (Van Gennep, 1978).

Bloch e Niederhoffer (1974), considerando esses ritos tribais e comparando-os com as práticas usuais das gangues juvenis novayorquinas, arquitetaram toda uma teoria sobre a delinqüência dos jovens reunidos nesse tipo de agregação. Para os autores, a gangue seria um rito de passagem que substituiria eficazmente os ritos coletivos em decomposição nas sociedades industriais.

“Do momento em que as cerimônias de puberdade perdem sua significação funcional, para não serem mais do que ‘sobrevivências’, os adolescentes buscaram outras vias na direção do estado adulto” (Bloch & Niederhoffer, op. cit: 174).

Tais agrupamentos estariam fundados na necessidade de afirmação da virilidade, aspiração universal de todos os adolescentes, não importando a cultura a qual pertenceriam. Essa necessidade impulsionaria os jovens de sexo masculino a se reagruparem em gangues sobre quem seria possível fazer estudos comparativos.

Bloch e Nielderhoffer reúnem uma série de elementos, como as tatuagens, as cicatrizes adquiridas em brigas de rua, a aquisição de um nome e de uma linguagem novos para comparar as práticas da iniciação nas sociedades tribais com as das gangues juvenis nas sociedades industriais e vêem uma extrema similaridade entre elas. Subjacente a esses ritos, existiria uma situação psicológica universal: o desejo de o adolescente se tornar um adulto.

Contestando os autores, Jean Monod (1968) argumenta que nenhuma das práticas por eles apontadas serviriam para caracterizar a iniciação como tal, nem tampouco a adolescência. As tatuagens, por exemplo, não são usadas apenas por adolescentes, mas também por adultos. Entre marinheiros e prisioneiros estas seriam recorrentes e quase obrigatórias.

“Trata-se de características de grupos enquanto tais – onde cada indivíduo deve vestir as insígnias de seu grupo e se conformar aos usos especiais – mais do que características da iniciação” (Monod, op. cit:: 28).

Além disso, ainda conforme Monod, a perspectiva “transcultural” de Bloch e Nielderhoffer que pretende nos esclarecer sobre o simbolismo desses ritos de passagem, sobre o acesso simbólico à condição de adulto, está baseada num princípio inaceitável em antropologia: “o de equivalência da significação de certos temas que encontramos em todas as culturas”.

De fato, a comparação de Bloch e Nielderhoffer não nos leva muito longe. Tomemos, por exemplo, o fato de nas sociedades tribais, durante os ritos de iniciação, os jovens se entregarem a atos totalmente proibidos em tempo normal (Van Gennep, 1978). Se, numa primeira aproximação, estas atitudes podem se aparentar aos atos delinqüentes cometidos pelas gangues juvenis na nossa sociedade, nas sociedades tribais as mesmas fazem parte dos rituais aceitos como parte dos períodos de margem. Estes períodos, além disso, são bem mais curtos que a vida de uma gangue, que pode durar muitos anos. De outro lado, ainda que a gangue conheça alguns ritos de entrada, quando estes ocorrem os jovens não se separam de suas condições sociais prévias: geralmente eles continuam a viver em suas casas e a manter relações com a família e vizinhos exteriores ao grupo de adolescentes.

Um ponto a que devemos prestar atenção é que, ao contrário dos ritos de passagem nas sociedades tribais, as gangues são organizadas pelos próprios jovens: “tudo se passa como se os adolescentes declarassem: ‘Vocês não querem nos submeter a provas? Está bem, nós mesmos nos encarregaremos disso!’” (Monod, op. cit: 27). A verdade é que não podemos dizer que os adultos da nossa sociedade as consideram necessárias à passagem da adolescência à idade adulta. Longe disso. As gangues, esses grupos de idade que “não têm nenhum status institucional na nossa sociedade” (Monod, op. cit: 18), fundam sua legitimidade sob os conflitos que mantêm com a mesma. Elas são o objeto de uma hostilidade manifesta, tanto nas representações das quais são objeto, quanto na ação das forças de ordem,

com a aprovação da maioria da população. Portanto, é a ruptura com a sociedade global e não o acesso a essa sociedade que é colocado em relevo.

A iniciação muda inteiramente de caráter quando não é controlada pelos adultos e sim livremente inventada. Neste último caso, trata-se de iniciação à adolescência e não à idade adulta. Bloch e Nielderhoffer parecem admiti-lo no momento em que afirmam que

[...] as cerimônias e usos das gangues não têm como efeito sua aceitação por toda a sociedade [...], mas visam realmente à integração ao estado seguinte de desenvolvimento que é o próprio mundo da gangue de adolescente (Bloch e Nielderhoffer, op. cit.:137).

Sendo assim, o problema é bastante distinto daquele implicado nos rituais de puberdade ou iniciação. Como observa Monod, estes tomam o adolescente como uma idade de passagem para o estado adulto, e é este estado que se encontra expresso no ritual. De forma inversa, uma iniciação à adolescência toma a mesma como um estado.

A puberdade é uma passagem para a adolescência que pode se prolongar (e, conseqüentemente, retardar a idade adulta) por meio de um grande número de práticas [...]. É preciso a partir daí pesquisar por quais meios os adolescentes fabricam seu mundo próprio e em que medida esse converge ou não com o mundo dos adultos (Monod, op.

cit: 29).

Se a gangue não é um rito de passagem para a idade adulta, uma fase de preparação para a entrada no mundo adulto, ela é um meio especificamente juvenil de exprimir um sistema de valores que pauta certas atitudes. A adesão a esse mundo de valores é fortemente ritualizada, com ritos codificados e executados pelos próprios jovens. Contudo, se a entrada para a gangue é elaborada, com marcadores claros que indicam a incorporação a uma nova condição, a saída é bastante difusa e não necessariamente acompanhada por uma passagem a uma classe de idade superior.

O abondono da gangue e das práticas delinqüentes encontra diferentes motivações. Como veremos a seguir, o afastamento às vezes é acompanhado pela passagem por novos ritos. Mas o tempo da gangue, mesmo quando se torna passado, não é negado pelos jovens. Ele faz parte de suas historias, ainda que o desejo atual seja o de simplesmente dormirem tranqüilos.

CAPÍTULO 6