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VIVER NA PERIFERIA: O COTIDIANO E O OLHAR DOS JOVENS

1.3. Viver em Planaltina

A noite não se dorme aqui. Se escuta os tiros e quando passa o final de semana eu ouço os comentários: morreu fulano, beltrano e ciclano. O pessoal da classe nobre de Planaltina vive desprezando quem mora na parte de cima, quem mora no Pombal, no Garrancho, no Buraco Fundo e no Agreste. Vivem falando da violência que aqui acontece. Porque na alta sociedade o que manda é o dinheiro e o que manda na comunidade pobre é o medo da morte, é o medo da bala, é o “ferro” em punho.

(Rap de autoria do grupo Código Penal)

Planaltina, situada a quarenta e cinco quilômetros do Plano Piloto, se opõe, em termos geográficos, à Ceilândia e Samambaia, estando fora do principal eixo da metrópole em formação. Sua imagem está vinculada à história da construção de Brasília, pois nas suas proximidades foi implantada, em 1922, a “Pedra fundamental” da futura capital. A cidade, fundada nos tempos do Império, mantém parte de seu traçado e edificações originais, onde residem fazendeiros e famílias tradicionalmente enraizadas no local. Os novos assentamentos33 ou setores, construídos na extensão do núcleo histórico, abriga uma população cuja socialização e sociabilidade passam ao largo das da comunidade tradicional. A face nova de Planaltina, composta por bairros com infra-estrutura precária e cujos moradores foram em grande parte removidos de invasões nas cercanias do Plano Piloto34, está praticamente ausente das imagens correntes acerca da cidade, que por muito tempo esteve

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Os termos “assentamento” e “assentado” são utilizados por órgãos dos governos Federal e do Distrito Federal.

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Também foram transferidos para os novos assentamentos inquilinos de fundo de lote vivendo na própria Planaltina ou em outras cidades-satélites de Brasília. Além disso, muitas famílias que viviam na área rural da cidade receberam lotes do governo nesses novos setores.

centrada no pacato estilo de vida de uma comunidade de interior35, com pouco mais de 2.000 moradores.

Atualmente, a cidade, com 147.114 habitantes (IBGE, Censo Demográfico 2000), chama a atenção pelo grande número de casos de violência envolvendo tráfico de drogas e jovens. Planaltina foi a única cidade em que muitos dos jovens entrevistados afirmaram ter vontade de se mudar, sair, viajar. A maioria é nascida em Planaltina fora do núcleo antigo ou na área rural do entorno, enquanto outra parte veio de outras localidades do Distrito Federal. Também a maioria dos informantes não mora no setor tradicional da cidade: vive nos novos assentamentos, lugares sombrios, onde praticamente não existe iluminação pública e as casas e barracos escondem-se detrás da proteção de altos muros frontais36.

Nesses locais, o esgoto escorre pelas ruas de terra vermelha do cerrado, misturando-se ao lixo e a toda a sorte de imundice que é jogada displicentemente nos espaços públicos, uma prática que poderia ser compreendida, nos termos de Goffman (1973), como uma situação extrema de “ofensa territorial”. Todavia, neste caso, a “ofensa” é mais ou menos dirigida contra si mesmo. Não posso deixar de sublinhar que a sujeira vista nas ruas não impede que os moradores mantenham seu espaço privado dentro de um padrão de limpeza impecável, o que muitas vezes pude observar.

Planaltina é sempre qualificada pelos jovens como “muito violenta” e “muito perigosa”. Viver na cidade pode ser “bom”, “legal”; mas nem sempre; somente de

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Na verdade, a vida tradicional da cidade de Planaltina, pautada num forte senso de comunidade, vem sofrendo significativas transformações desde a construção de Brasília. Como diz Max Weber, uma relação social é chamada comunidade “quando a atitude na ação social – no caso particular, em termo médio ou no tipo puro – inspira-se no sentimento subjetivo-afetivo ou tradicional – dos partícipes da constituição de um todo” (Weber, 1973: 1). Exatamente este “sentimento do todo” de que fala Weber é que foi sendo minado ao longo dos anos. Nos dias atuais, não existe a “comunidade de Planaltina”, mas sim indivíduos e grupos com diferentes interesses residindo no mesmo local e que não compartilham, com as antigas famílias, valores e práticas da comunidade tradicional, mencionadas em estudo de Zatz (1986) sobre a Festa do Divino e outras manifestações populares naquela cidade.

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Nas localidades mais pobres do Distrito Federal, nas quais a infra-estrutura é extremamente precária, chama a atenção a grande dimensão da altura dos muros. De modo geral, a sua construção é colocada como prioridade pelas famílias, antes mesmo da construção da casa em alvenaria, sob a alegação da falta de segurança e da ocorrência de freqüentes roubos e furtos. Decorre daí uma paisagem urbana desoladora: as ruas transformam-se em verdadeiros corredores fechados por paredões (muros) quase sempre sem acabamentos, faltando reboco, impregnados da poeira vermelha do solo sem asfalto ou qualquer tipo de calçamento.

vez em quando, pois existem, segundo os jovens, muitos malandros, assassinos, assaltos, muitas brigas, mortes, drogas e tráfico:

A violência aqui é demais. A morte anda lado a lado com a gente.

Aqui é o seguinte: é a lei da vida; ou você dá ou você morre; você fica ou você corre.

Aqui menino de seis anos agora é malandro. Aqui não tem o que presta.

Aqui está cheio de mala. Aqui só tem bagunça e poeira.

É uma cidade badalada, cheia de violência.

Aqui é muito paia37, cheia de violência. Lá onde eu moro mesmo, se você passar, o quê, as dez da noite, é tiroteio, você mal pode ir na esquina. Você não pode ir numa farmácia comprar um remédio, por quê? Maior tiroteio sempre. Você não pode sair na esquina porque você não sabe se vai voltar, se vai continuar vivo, se você vai voltar a ver as pessoas. Você sai, quando volta, olha: “é, eu tô bem”. Você sempre tem que tomar muito cuidado.

É esse o primeiro retrato, semelhante ao de um campo de batalha, que os jovens pintam de sua cidade: “Isso aqui é Sarajevo, é tiro assim pra mais de hora, você fica até cego de tanto tiro” (grifo meu), resumiu Júlio, 20 anos, traficante de

drogas envolvido no crime organizado, mencionando o conflito da Bósnia que na época estava no auge38. Alguns atribuem esse quadro ao desemprego que deixaria como opção roubar, assaltar e matar. Outros dizem serem as drogas e o tráfico, principalmente a disputa pelos pontos de distribuição de drogas, o fator predominante gerador da violência. E há, ainda, os que apontam o grande número de novos assentamentos como razão da violência que impera. A cidade, antes da existência dessas novas áreas, não convivia com esses problemas: “Planaltina era mais tranqüila... Essas invasão tudinho, o povo que vem de fora.

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Ruim, “não tem nada a ver”.

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Note-se que é comum apropriar-se de locais distantes e conjunturalmente marcados por conflitos de guerra e violência para simbolizar, nominar e caracterizar outros espaços, onde ocorrem violências ou estão em condições degradadas. Como me narrou o professor Wilson Trajano Filho, na pacata ilha de Santiago, em Cabo Verde, um bairro da cidade da Praia passou a ser conhecido como Tchetchênia, depois da ocorrência de algumas situações de violência. A quadra 410 da Asa Sul, no Plano Piloto de Brasília, foi por muito tempo designada de Coréia, em referência às suas condições de degradação e à utilização de apartamentos por garotas de programa.

Por aqui não tinha esses loteamentos, nem aquele, nenhum. Aí o governo deu a terra...”, tenta explicar Paulo, de 17 anos, quando reflete sobre minha pergunta sobre o porquê de toda aquela violência que ele estava me narrando. Seu discurso, pela idade que tem, leva a crer que está fazendo uma reflexão baseado na fala de pessoas mais velhas portadores de uma memória do lugar. Esses adultos que viveram as grandes transformações pelas quais Planaltina passou podem ser encarados tanto como produtores quanto transformadores de um discurso sobre o passado da cidade – os tempos felizes, calmos, tranqüilos... –, discurso aos quais os jovens são sensíveis, pois faz eco em suas falas.

O cotidiano marcado pela violência aparece nos discursos sempre de modo enfático e, ao contrário do que ocorre entre os jovens de Samambaia e Ceilândia, não existem muitas tentativas de desfazer, nem mesmo de neutralizar ou matizar essa primeira imagem construída acerca da cidade. A maioria dos informantes de Planaltina, quando fala da violência ali reinante, não defende sua cidade, não critica as construções de estereótipos vindos do exterior. A mídia, longe de ser acusada de produzir uma imagem ruim do local, pode, para alguns, legitimar e dar credibilidade às suas falas, como no caso de José: “Planaltina está em primeiro lugar na violência, no roubo, no assalto, em tudo [...]. Estou falando porque a gente vive e vê no jornal tudo que se passa. Aqui morre é cinco por semana”.

Como nas outras cidades, os jovens dizem que não há muito o que fazer, falta “animação”, “diversão” e lazer. Ir à escola, sair para dançar em forrós, boates, bailes e festas, beber, consumir drogas, ficar em casa jogando baralho ou assistindo à televisão, “curtir um som”, conversar com amigos nas esquinas, andar de skate e bicicleta fazem parte das diversões. Criticam o fato de apenas haver opções de lazer na cidade no tempo da política, quando os candidatos levam trios-elétricos, promovem campeonatos de futebol, gincanas e outras atividades: “Dia de lazer pra gente é isso: é dia em que vem a politicalha aí. Só acontece quando tem política. Acabou, pronto. Esvaziam a cidade”.

Na falta de dinheiro para gastar com “curtição”, alguns vendem drogas para “tirar um trocadinho”. Outros assaltam, como Gilvan, de 17 anos:

Não tem dinheiro, a gente parte direto pros ganhos. A galera racha ali mesmo, o que der pra cada um tá massa. Aí tipo assim, se eu tiver dinheiro que eu ganhei, eu chamo todo mundo pra ir curtir. Aí sai todo mundo, vai pra uma lanchonete, vai pro bar. Aí eu pago pra todo mundo. A gente quer curtir de

qualquer maneira, um quer curtir com droga e tal, vai lá, compra. Cada um curte diferente e eu chamo todo mundo pra ir curtir comigo.

Como parte de suas rotinas mencionam, tal como os jovens de Ceilândia e Samambaia, as revistas policiais:

Quase todo dia tem bacu. Eles [os policiais] não tão nem aí, eles são totalmente uns animal. Eles manda você passar por baixo da viatura sem encostar a barriga no chão. E eles já fazem isso, já pra bater. Eles bate e fala: “vai embora”. Manda embora pra casa, só que ninguém vai.

As brigas, as disputas entre gangues e galeras são apontadas não somente como exemplo de violência, mas também como uma forma de diversão, de agitação, de “ação”, característica da sociabilidade dos jovens da cidade: “Tem uma diversãozinha assim, não de bom gosto, mas sempre tem. [...] a galera vai se divertir, passa do limite, sempre rola briga”.

Alguns jovens dizem que quando realmente querem se divertir sem preocupação, de modo tranqüilo, saem de Planaltina. Cidades da periferia de Brasília, como a vizinha Sobradinho, e de Goiás, como Formosa, pela proximidade do limite do Distrito Federal, são procuradas com esse intuito:

Aqui é sujeira, curtindo fora fica despreocupado. Ninguém te conhece, mexe.

Em Formosa (GO) tem altas boates, massa, só que lá, quase a gente não apronta não. Só vai pra curtir, pelo menos minha galera quando vai pra lá, só vai pra curtir.

O sentimento de serem portadores de um estigma pelo fato de morarem na periferia é partilhado com os jovens de Samambaia e Ceilândia:

A gente aqui da periferia sofre. Lá no Plano a vida deles é de alta classe, só tem lugar bem sucedido. Eles têm condições psicológicas melhor que a nossa, nunca passa por assassinato, não passa por roubo, não passa por briga, não passa por nada. Se eles passa aqui, passa de dia e escondido, entendeu? Eles têm medo, acha que na periferia é tudo bandido.

As diferenciações sociais se dão não somente em termos do contraste entre Periferia e Plano Piloto, mas também localmente, entre si. A geografia local corresponde a uma hierarquia social e os jovens moradores das áreas mais pobres de Planaltina internalizam os estigmas que lhes são atribuídos

num jogo de distinção bastante sutil entre os que, a princípio, colocam-se como iguais, como exemplifica o extrato de uma mesma entrevista:

Planaltina é uma cidade fundamental, mas esse povo do Plano discrimina muito. Ceilândia é mais perigoso que aqui. Ceilândia é que fabrica a merla, a droga vem de lá pra cá.[...] Aqui tem uns local perigoso, cheio de mala [malandro]. Tu quer sair aqui, sabe que o Pombal é perigoso. Eu já passei no Pombal e não confio mais (Túlio, 15 anos).

Aqui, quando fala que mora no Pombal, os caras fala que é ladrão, não é mais teu amigo. Fica olhando pra você e já acha que vai roubar. [...] Mas tô feliz no Pombal mesmo. Vou morrer aqui. Não tem saída pra lugar nenhum (Tadeu, 15 anos).

A lógica, para a qual chamo a atenção, do contraste com o “real imediato”, com o “igual”, dentro do jogo de espelhos que caracteriza a dinâmica da elaboração das identidades sociais, foi também estudada por Sarti (1996) no contexto da periferia urbana de São Paulo. A autora mostra que as fronteiras simbólicas de diferenciação dos moradores entre si são marcadas por uma ambivalência em relação a seus pares. Todos são pobres, mas insistem nas diferenciações. A favela, que se expandiu ao redor do bairro, corporifica os desvios temidos, o próprio mundo da desordem. No bairro ouve- se: “Somos pobres, mas não somos favelados”. O discurso do morador da favela se estrutura dentro da mesma lógica: “Sou favelado, mas pelo menos não moro debaixo da ponte”. Cyntia Sarti acaba por concluir:

Não entrevistei alguém que morasse debaixo da ponte, mas seguramente encontraria algum referencial negativo, na medida em que esta é a lógica social de identificação e diferenciação, característica deste processo de construção de identidades sociais por contraste e referências negativas (Sarti, 1996: 95).