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GANGUES E GALERAS: A VIOLÊNCIA FAZ A DIFERENÇA

4.2. Os jovens e o imaginário da violência

A violência não é estranha aos jovens moradores da periferia de Brasília: ela está presente no seu cotidiano, sem subterfúgios. Esta proximidade banaliza o comportamento violento, tornando-o, por vezes, trivial. Os jovens relatam inúmeros casos por eles presenciados ou vividos por um amigo, um vizinho, um parente. Contam de assaltos, roubos, estupros, brigas, homicídios, pancadarias, sendo que alguns estiveram envolvidos como atores protagonistas dessas histórias:

Aí quando fui descer pra amarrar o meu cadarço, no que levantei, o cara estava com a faca aqui: “Não corre não! Tira a jaqueta”. Tirei a jaqueta e dei pra ele. [...] Aí na hora que eu fui assim ele ia me dá uma facada aqui assim, aí fui e botei o braço, pegou aqui.

A violência, entendida em seu sentido mais estrito – intervenção física de um indivíduo ou grupo contra outro indivíduo ou grupo –, tornou-se uma dimensão rotineira de suas existências. Dizem estar acostumados a ela, que a mesma relaciona-se com a vida e com a morte e que está presente em todos os lugares: em casa, na rua, na escola, enfim, ela está em toda a parte.

Para alguns, violência “é uma coisa muito ruim que uma pessoa faz pra outra”. Para outros, ela é necessária e até mesmo “legal”, “muito massa”: “Quando uso violência, eu fico feliz”, diz Alain, que já teve passagem pelo CAJE. Outro informante declara: “Violência mesmo a gente tem que espancar legal, tem que deixar ruim. Tem que pisar legal mesmo, pra que saiba que não vai te conhecer mais e não vai nem lembrar”.

O imaginário juvenil comporta, portanto, uma visão positiva da violência física. Isto porque a força física figura, tradicionalmente, como um dos valores cardinais da cultura de rua, principalmente a masculina, constituindo-se numa dimensão fundamental da virilidade. A valorização da potência física é expressa sobretudo nos gestos e palavras dos adolescentes para os quais, nas relações interpessoais, “a utilização da força física constitui um meio perfeitamente legítimo do exercício do poder, ao mesmo tempo que uma forma privilegiada de gerir e resolver seus conflitos” (Lepoutre, 1997: 217)14.

A violência é, muitas vezes, entendida como parte da natureza humana: o ser humano é violento. Ela, normalmente, acontece “sem querer”, quase por instinto, pelo fato da pessoa “estar nervosa”, “de cabeça quente”.

Violência: acontece sem querer

“Pessoal vai e briga, não sei o quê [...] vai enchendo meu saco, enchendo tua cabeça, o outro fica nervoso, fuma um baseado, você sai de casa, você atira nele e já começa”.

“É uma ação que às vezes você tem que exercer sem querer, e as pessoas que estão do outro lado às vezes não aceita. Acho que é do ser humano mesmo. Vai da pessoa [...]”.

“A pessoa já nasce com isso: tem pavio curto, fica nervoso”.

“Tem hora que eu tenho a cabeça quente, eu tenho sangue de nordestino, como se fosse o demônio”.

“Hoje em dia não existe mais paciência. Rolou um frevo errado, o cara já rola todo mundo, tá de cabeça quente”.

(Trecho de entrevistas com jovens integrantes de gangues e galeras. Ceilândia, Samambaia e Planaltina)

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Voltarei ao tema no capítulo V, onde discuto o significado da introdução das armas de fogo na cultura jovem/adolescente de rua.

A tendência entre os jovens é de, em um primeiro momento, quando indagados sobre o que entendem por violência, defini-la, exclusivamente, como toda forma de confronto corporal ou armado. A violência é, portanto, física: brigar, bater, apanhar, matar, suicidar, estuprar, espancar. Violência é

“pancadaria”, é ver “neguinho sangrando”, é “tudo que acontece a respeito de briga, o que gera a morte”, é “matar, estuprar, assaltar, roubar”. As ações das gangues, mesmo para os que nela estão envolvidos, também representam uma faceta da violência: andar armado, trocar tiros, roubar, assaltar, são percebidas como formas de violência.

À medida que as falas se desenvolvem, a definição de violência tende a adquirir um significado mais amplo. Além da violência física, a noção passa a incluir o abandono e problemas familiares, a falta de amor, a falta de respeito pelo outro e pelo ser humano. A discriminação social é também percebida como uma forma de violência, na qual, conforme foi assinalado, os jovens sentem-se diferenciados. Ainda, o consumo de drogas, o vício, a dependência, inscrevem-se na percepção do que seja violência – “Violência é a droga” –, assim como a polícia: “Violência é a polícia”.

A violência física e a violência moral vão, aos poucos, sendo colocadas num mesmo patamar, sem que haja uma explicitação dos contornos que as separam. De todos os jovens que entrevistei, os únicos que classificam claramente a violência como física e moral foram os integrantes de grupos de rappers. Para eles, violência moral é deixar uma criança se drogar e não fazer nada, é não ter o que comer em casa, é a fome do nordeste, é a miséria, é ser enganado pelos políticos e pelo governo, é a discriminação racial, é a superlotação dos presídios, é enfrentar longas filas de espera e não ser atendido nos hospitais, é não ter emprego, é a corrupção e a impunidade que reinam no país. Violência são as condições de vida da maior parte da população brasileira, é o sensacionalismo da televisão, é a negligência com a população da periferia. A polícia é citada como exemplo de violência tanto física como moral.

Violência é...

“Violência é o que o sistema impõe às pessoas, como viver amontoadas ali no meio do esgoto. Violência é tu pegar o ônibus às cinco da manhã. Pega dois ônibus pra ir, dois para voltar, sendo que ganha um salário mínimo pra sustentar quatro ou mais filhos. Só de passagem vai a metade do dinheiro. Isso é violência. Violência é a mídia também que não quer ver a gente aqui. Quantos caras como esse Galdino já morreram [...] quantos já morreram queimados que não deu destaque [...]. Violência é a polícia na rua, quebrando o pessoal, espancando. Todo dia você é agredido pela polícia verbalmente: ‘vagabundo’ e tudo mais. Isso é violência. Violência é pobre ser rotulado de bandido. Eu tenho a violência como ofensa, a pessoa fala uma coisa pra mim forte, eu acho que isso já é uma forma de violência moral”.

(Trecho de entrevista com CFZ, rapper do grupo “FC”)

De maneira geral, os jovens acreditam que há sempre um motivo, uma justificativa, para que a pessoa exerça a violência. A violência é considerada legítima em casos de extrema pobreza, necessidade e desemprego: “Primeiro a gente trabalhava, agora não tem emprego, tem uns que vai vender droga, matar roubar, um bocado de coisas”. Quando um pai se desespera por não poder sustentar sua família, quando um jovem não tem como pagar suas roupas, seu lazer, a sua droga, a violência pode ser explicada e aceita. Vale observar que alguns informantes sublinham a diferença entre necessidade e ambição. Essa última não justificaria, mas explicaria a violência: “Aí tem parte da ambição, uns são violentos por necessidade, outros querem mais e também são violentos. É tipo assim, cada caso é um caso”. A defesa da família, dos amigos, de um “chegado” (amigo próximo) são situações que na visão dos jovens podem legitimar o uso da violência. Também o sentimento de raiva justificaria, para alguns, a violência:

O filho de repente aparece morto, estrangulado. A cabeça sobe. O cara pega a arma e chega lá: pá! Justifica um ato violento”.

[...] matou um colega meu, eu passei a procurar ele, até um dia ele passar do meu lado [...].

A raiva, é isso mesmo, quando neguinho fica enchendo, acaba mesmo em violência.

Percebida de várias maneiras, a autodefesa é também apontada como uma das razões que podem justificar a violência. Ela é vista como resposta a uma provocação, a uma humilhação, a uma ofensa que deve ser vingada: “Se

eu me sentir ofendido assim: se tiver uma pessoa que está querendo me esfumaçar15, querendo ser mais do que eu, eu vou acabar com ele na hora”. As provocações são de vários tipos – “encarar”, “triscar a mão”, ouvir deboches, gozações e desaforos,

“tirar onda”, “fazer hora com o cara” – e levam a reações envolvendo desde confrontos corporais até o uso de armas de fogo: “Violência gera violência. Se uma pessoa mexe com você, você não vai deixar de graça”. Admite-se que a autodefesa seja

uma reação natural de violência: quando se é enganado por parceiros de roubos e assaltos; ou na situação em que é vítima de um assalto ou de uma agressão reage; explicada também dentro da lógica do “matar pra não morrer”:

“Aqui é o seguinte, é a lei da vida: ou você dá (o tiro) ou você morre”.

Estar drogado ou bêbado é visto, ora como estado que explica comportamentos violentos, porque levaria as pessoas a agirem involuntariamente – “você tá fumando, não vê nada, até esquece” –, e ora como estado que não justifica a violência, sendo criticado: “Tava doidão! Não tem nada a ver pôr a culpa na droga”.