• Nenhum resultado encontrado

I A GEOGRAFIA DA ARQUITETURA TARDO-GÓTICA EM PORTUGAL

I.VI DIOGO E FRANCISCO DE ARRUDA E A ARQUITECTURA NATURALISTA DO CONVENTO DE CRISTO EM TOMAR.

Nos primeiros anos do século XVI, encontramos, em plena atividade construtiva, Diogo e Francisco de Arruda. As obras destes dois irmãos, especialmente as executadas durante o período do reinado de D. Manuel, contribuíram largamente para o desenvolvimento da arquitetura tardo-gótica portuguesa, abrindo as novas “rotas de inspiração” exóticas e floridas (…) de carácter tardo-goticista, mudejarista e de tumultuoso naturalismo ornamental223 e que melhor representam o manuelino224.

Educados certamente na orla do mosteiro da Batalha por João de Arruda (mestre das obras da Batalha entre 1485-1490), Francisco e, principalmente, Diogo de Arruda desenvolvem uma arquitetura de fortíssimo pendor naturalista, onde a decoração se torna o vetor principal da estrutura arquitetónica, que podemos observar em diversas das suas construções, especialmente no Alentejo onde são mestres oficialmente designados. A par da arquitectura vegetal repleto de um tumultuoso naturalismo decorativo, Diogo e Francisco de Arruda prestam um amplo serviço nas obras de engenharia militar, quer no território continental, em especial no Alentejo, quer no Norte de África.

Ao primeiro, coube a execução do baluarte do Paço da Ribeira, logo nos primeiros anos de quinhentos por incumbência de D. Manuel I. Este Paço da Ribeira mereceu referência nos apontamentos do veneziano Lunardo da Cà Masser, datado de 1504, referindo-se que “o palácio recentemente fabricado, ainda não está concluído; não é obra de grande despesa, é uma

223 SERRÃO, Vítor, O Renascimento e o Maneirismo (1500-1620), Editorial Presença, Lisboa,

2001, p. 37

fábrica com pouco desenho e pobre”225. A presença de Diogo de Arruda no

complexo arquitetónico dá-se no ano de 1508, quando D. Manuel I o encarrega de dirigir a construção do baluarte do Paço226, cargo que conserva

durante os sete anos seguintes. Já Francisco de Arruda, após a reconstrução dos castelos da raia alentejana (Portel Mourão e Moura) e depois da sua passagem por Azamor (1512-1514) surge, entre 1514-1519, na construção do baluarte de Belém, onde traça e dirige as obras, tal como consta na documentação: frco. darruda mestre do balluarte de Restello.

Mas é na obra dirigida por Diogo de Arruda, no Convento de Cristo em Tomar (fig.15), que encontramos a maior expressão da arquitetura naturalista e que, depois, se transforma no mais emblemático trabalho deste mestre, assim como da arquitetura tardo-medieval portuguesa.

A renovação do complexo arquitetónico do Convento de Tomar dá-se pela mão de D. Manuel, sucessor do Infante na Governação da Ordem, que ordenou que a igreja templária fosse prolongada para Ocidente por intermédio de uma nova construção. A obra deste novo espaço ficou a cargo de Diogo de Arruda, atestando-se a sua presença entre 1510-1512 (ano em que parte para Safim no Norte de África). Aqui, tinha a incumbência de rasgar um dos paramentos da charola românica e conectá-lo por intermédio de um arco triunfal ao novo corpo, porém, como refere Pedro Dias, é muito difícil saber exactamente o que pretendia o monarca pois o corpo que foi acrescentado à charola medieval não foi acabado pelo arquitecto (...)227, mas sim por João de

Castilho, em 1515, cabendo-lhe executar a cobertura e o portal sul.

A estranha estrutura, designada habitualmente por casa capítulo e coro- alto, é lançada por Diogo de Arruda, porém, é na decoração exterior que recai toda a atenção, nomeadamente na fachada ocidental, onde surge um exuberante programa decorativo que se ergue entre poderosos contrafortes e, que no seu eixo, se rasga a emblemática janela onde figura Jessé

225 GODINHO, Vitorino Magalhães, “Portugal no começo do século XVI: instituições e

economia. O relatório do veneziano Lunardo da Cà Masser”, Revista de História Económica e

Social, Lisboa, Sá da Costa editora, nº 4, Julho-Dezembro, 1979, p. 77.

226 MOREIRA, Rafael, “O Torreão do Paço da Ribeira”, O Mundo da Arte. Separata do nº 14,

Junho 1983.

dendéforo228. Com uma faustosa decoração de carácter heráldico e de claras referências à inevitável Ordem de Cristo e à figura do Rei, observa-se como a escultura vegetal invade toda a estrutura arquitetónica. Na realidade, esta tipologia não tem qualquer padrão referencial no nosso território, nem mesmo o Mosteiro da Batalha assume tal exuberância escultórica, o que levou a inúmeras interpretações erróneas deste espaço e da arquitetura do seu tempo. Contudo, a utilização destes elementos não é senão uma forma radical, extremada, de decorativismo característico dos finais do gótico, forma de resistência deste, precisamente, às formas clássicas e renascentistas229.

De facto, esta exuberância decorativa, emblemática e simbólica do Convento de Cristo integra-se na linha arquitetónica da Astwerk que, em meados do século XV, surge no Norte da Europa e posteriormente se desenvolve em território de Castela, onde a fachada do colégio de San Gregório (1486-1499), em Valladolid, se assume como o melhor exemplar destes formulários inerentes a Astwerk230.

Em conclusão, podemos referir que a arquitetura tardo-gótica portuguesa enquadra-se num contexto transeuropeu, com especial ênfase na relação com a arquitetura desenvolvida em Castela e levantina, para isso temos que destacar a importância da circulação de artistas que se observa por todo o continente durante o século XV e inícios do século XVI. Este importante fenómeno da migração artística, onde mestres de arquitetura, aparelhadores, oficiais ou meros executantes do labor cantaril viajam de modo ativo entre diferentes regiões e entre domínios, quer de forma individual quer em companhas. Na realidade, este fenómeno demonstra que todos estes homens são desconhecedores do conceito de “fronteira”. Desse modo, a circulação permitiu a difusão de soluções, de formas e modelos arquitetónicos que não deixaram de se adaptar às circunstâncias territoriais. Ao mesmo tempo estes protagonistas provocaram o “efeito de chamada”, o que levou à criação de

228Cf. PEREIRA, Paulo, A obra Silvestre ea esfera do rei: iconologia da arquitectura manuelina na Grande Estremadura, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1990; idem, De Aurea Aetate: O Coro do Convento de Cristo em Tomar e a Simbólica Manuelina, Lisboa, 2003.

229 PEREIRA, Paulo, Convento de Cristo – Tomar, Scala Publishers/IGESPAR, 2009, p.61. 230 PEREDA, Felipe, “La morada del salvaje. La fachada selvática del colegio de San Gregorio

uma verdadeira rede de trabalho tardo-gótica, não só à escala nacional como internacional, são também eles intermediários de práticas de trabalho e de conhecimentos motivando, assim, a transferência e circulação de ideias e formas arquitetónicas. Como refere Jean-Marie Guillouet, trata-se pois de uma problemática da receção e da influência a uma problemática do papel dos mediadores nos mecanismos destas circulações e dos seus efeitos231.

231 GUILLOUËT, Jean-Marie. O portal de Santa Maria da Vitória da Batalha e a arte europeia do seu tempo. Leiria: Textiverso. 2011, p. 205.