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Em direcção a «novos modos e ordens» A Constituição de 1935: um decálogo comunitário(-monoárquico)

No documento TESE DE DOUTORAMENTO Lisboa Junho, 2013 (páginas 118-122)

A Constituição de 1935 definiu, nos seus primeiros dez artigos, uma ortodoxia pública, contemporaneamente tida como ersatz das “tradicionais” declarações de direitos; e também como instância de «propaganda moral normativa e poesia do direito»271. O novo decálogo civil deu corpo a uma ortodoxia pública comunitária estatal-nacional não monista/não absorvente, evocando e sistematizando os «ideais de patriotismo, virtude cívica, dedicação à raison d’ tat polaca do campo Piłsudski»272.

Em tal parte principialista, o Estado polaco é representado como Bem Supremo, como «o bem comum», como realidade e grandeza a se não contratual. O artigo 1.º, nos seus vários números, veiculava transparentemente uma tal dogmática: «1 – O Estado polaco

presidencial de dissolução da Dieta requeria um voto qualificado do Senado – 3/5 –, conduzindo à automática dissolução deste último.]. O Presidente passaria também a poder emanar decretos-lei no lapso de tempo entre a dissolução da Dieta e do Senado e a reunião da nova Dieta (tais decretos não podiam modificar a Constituição nem as leis sobre as eleições parlamentares). Possibilitou-se outrossim que as leis pudessem autorizá-lo a emanar regulamentos com força de lei (os quais teriam como limite a intangibilidade da Constituição). Em matéria orçamental, dispôs-se que se, num prazo de 5 meses, o Parlamento não votasse o orçamento, o projecto governamental de orçamento adquiriria força de lei; em caso de dissolução da Dieta, o Governo passaria a poder prolongar a vigência do orçamento do ano precedente.

270 Veja-se o texto da Constituição polaca de 1935 no Annuaire de l'Institut international de droit public-

1936, Paris, 1937, pp. 405 a 435 («Constitution de la Repúblique de Pologne du 23 avril 1935»).

271 Cfr. Giorgio Stefano Langrod (Instituto Polaco de Direito Público Universidade de Cracóvia), La

nuova Costituzione della Reppublica di Polonia, em Rivista di Diritto Pubblico e della Pubblica

Ammninistrazione in Italia, La Giustizia Amministrativa – Parte I., 1937, pp. 69.

272 Já na ironia dos seus críticos, o regime limitar-se-ia a misturar as filosofias de Nietzsche e Kant: o seu

nome juntava «nicze», que na gíria de Varsóvia significava «lixo», a «kant», significando «trapaça» – Norman Davies, Heart of Europe The Past in Poland’s Present, cit., p. 109.

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é o bem comum de todos os cidadãos. 2 – Reconstituído pela luta e pelos sacrifícios dos seus melhores filhos, deve ser transmitido, a título de herança histórica, de geração em geração. 3 – Cada geração tem o dever de acrescentar, pelo seu próprio esforço, a potência e a dignidade do Estado. 4 – [Cada geração] Responde, pela sua honra, diante da posteridade quanto ao cumprimento desse dever».

Segundo dispunha o art. 6.º, «os cidadãos devem fidelidade ao Estado, sendo obrigados a cumprir conscienciosamente os deveres que este lhes impõe». Não bastava, pois, como numa relação contratual externa de do ut des, uma obediência mecânica, convinha uma obediência “deontológica” in interiore hominem.

É no quadro do Estado que a vida da colectividade se desenvolve (apoiando-se nele) art. 4.º n.º 1 – , cabendo ao Estado a missão de unir os cidadãos numa colaboração harmoniosa em proveito do interesse comum (art. 9.º). A correspondência aos interesses do Estado, tal como definidos pelas leis, era configurada como medida da licitude das actividades da “sociedade” – art.10.º, muito em especial o seu número 1.

No artigo 7.º n.º 1, liga-se especificamente a concessão dos «direitos a exercer influência nos negócios públicos», não já à qualidade abstracta (estática e tendencialmente universal) de cidadão, mas sim ao grau de serviço ao interesse comum revelado por cada cidadão na sua acção “política”. O trabalho obteve consagração como base do desenvolvimento e do poderio da República – art. 8.º, n.º 1273.

Na referida parte principialista da Constituição foi, porém, imaginada uma polis não absorvendo a totalidade do espaço axiológico-político. Não deixa de se reconhecer explicitamente – art.4.º, n.º 2 – dever o Estado assegurar o «livre desenvolvimento» da sociedade. A acção do Estado em termos de “condução da sociedade” aparecia, aliás, subordinada (implicitamente) a um princípio de subsidiariedade: art. 4.º, n.ºs 2 e 3. No n.º 1 do art. 5.º, declarava-se ser «a acção criadora do indivíduo alavanca da vida colectiva». De acordo com o n.º 2 deste artigo, o Estado devia assegurar aos cidadãos a liberdade de consciência, a liberdade de expressão de opinião (de palavra, traduzindo à letra os enunciados linguísticos da Constituição) e a liberdade de associação; no seu n.º 3 enunciava-se, porém, para além do “tradicional” critério “privatístico” liberal de harmonização dos direitos individuais, o critério do «interesse público» como critério de definição dos limites de tais liberdades.

273 No número seguinte do artigo 8.º ficava estipulado que o Estado protege e o trabalho e controla as suas

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Na doutrina jurídico-constitucional polaca, registavam-se ressonâncias entre tal axiologia e o pensamento comunitário de teóricos políticos polacos “clássicos” ou entre tal axiologia e modernas teorias “socializantes” do direito – solidarismo de Duguit ou direito social de Gurvitch; enfatizou-se precisamente a natureza mista da nova axiologia pública: uma axiologia (re)valorizadora da comunidade política, mas não rompendo totalmente com o individualismo274.

Apesar de no novo decálogo civil se vislumbrarem influências da doutrina social da Igreja, não foi porém construída uma Comunidade política Heteronormada, ou explicitamente recebida uma ética antecedendo e transcendendo o Estado.

À nova valorização da comunidade política, aparecia associada uma nova valorização da figura do Presidente da República. A Constituição polaca de 1935 elevou, nesse quadro, o Presidente a uma posição chave e cimeira na ordem político-constitucional, redefinindo em sentido monoárquico as formas e as instituições jurídico-constitucionais pré-vigentes. No art. 2.º podia ler-se: «1 - O Presidente da República encabeça o Estado. 2 – Responde diante de Deus e diante da História dos destinos do Estado; 3 – O dever supremo do Presidente da República consiste em velar pelos interesses do Estado, pela sua capacidade de defesa, bem como pela situação que ocupa entre as outras nações. 4 – A autoridade única e indivisível do Estado está concentrada na sua pessoa». O n.º 1 do artigo 3.º fazia do Presidente da República instituição directora dos outros órgãos estaduais: «[O]os órgãos do Estado colocados sob a autoridade do Presidente da República são: o Governo, a Dieta, o Senado, as Forças armadas, os Tribunais, o Controlo do Estado». O Presidente adquire mesmo o direito de interferência na escolha do sucessor, passando a poder escolher um candidato à sua sucessão, de tal modo que, a olhos de observadores autorizados coevos comprometidos com a nova

274 Ver, por exemplo: Antoine Peretiatkowicz, La Déclaration constitutionnelle de Pologne de 1935, em

Archives de Philosophie du droit et de Sociologie juridique, n.ºs 3-4, 1937, pp. 227 a 232. (Rapport

présenté au II:e Congrès des juristes polonais, nov. 1936); Antoine Peretiatkowicz, Il bene comune e la

sicurezza giuridica nella nuova Costituzione di Polónia (23 Aprile 1935), em Rivista Internazionale di

Filosofia del Diritto, Ano XVII, 1937, pp. 625 a 630; Eugène Jarra (Professor na Faculdade de Direito da Universidade Joseph Pilsudsky), La concorde civique et la Constituion de la République de Pologne, em

Introduction a l’Étude du Droit compar , Recueil d’Etudes en l’honneur d’Edouard Lambert, Troisième Partie/Quatrième Partie, Librairie de la Société Anonyme du Recueil Sirey, Paris, 1938, pp 222 a 234.

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constitucionalidade, a Constituição de 1935 pareceu querer definir uma «monarquia republicana»275.

O perfil competencial concreto do Presidente ficava, porém, aquém da imagem que a parte principialista dele fazia – imagem, a final, largamente simbólica. Adoptou-se um modelo de presidencialismo sui generis combinado com alguns traços de parlamentarismo.Nos termos art. 29.º da Constituição, o Ministério e os Ministros, para além de serem politicamente responsáveis perante o Presidente, não deixaram de ser também, em alguma medida, de ser configurados como responsáveis perante o Parlamento: a Câmara baixa podia solicitar a demissão do Ministério ou de um Ministro; se o Senado desse o seu acordo a tal pedido, o Presidente teria forçosamente de optar entre a aceitação do pedido da Dieta ou a dissolução do Parlamento276.

Novos modos e ordens

Depois da emanação da nova constituição, as Leis eleitorais para a Dieta e para o Senado de 8 de Julho 1935, para além de bloquearem e filtrarem o acesso à sede da representação política por parte (dos partidos) da oposição, empurrariam definitivamente a ordem in fieri para novos modos e ordens. Declinou-se um racional nacional-comunitário não monístico (por referência a uma sociedade política organicamente concebida como instituição de instituições), não se tendo superando totalmente, aliás, um princípio individualista-abstracto na “tecnologia jurídico- institucional” que predispunham:

Na Lei eleitoral para a Dieta, para além de se reduzir o número de deputados do Sejm de 444 para 208, determinava-se que os candidatos à Dieta passassem a ser designados exclusivamente por assembleias de circunscrição na dependência de um comissário

275 Veja-se Antoine Peretiatkowicz (Reitor da Universidade de Poznan), Le Césarisme démocratique et la

nouvelle Constitution de Pologne, em Revue du Droit Public et de la Science Politique en France et à

l’Étranger, Tomo 56, 1936, pp. 309 a 325. Não obstante, a Constituição previa a interferência no

processo de “sucessão” presidencial de um colégio eleitoral – composto por 80 membros, entre os quais 50 eleitores designados pela Dieta e 25 eleitores designados pelo Senado – que devia escolher um candidato à sucessão presidencial. O texto constitucional previa que através da realização de um plebiscito o eleitorado pudesse decidir qual dos dois candidatos seria eleito Presidente – vide arts. 13.º, n.3, al. a) e 16.º. [No anterior ordenamento constitucional, o Presidente era eleito pelo Parlamento].

276 O Senado devia examinar o pedido da Dieta caso este não tivesse dado origem a um acto livre do

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eleitoral nomeado pelo Ministro do Interior; as quais reuniriam predominantemente representantes de «instituições autónomas» regionais e económicas e de «organizações profissionais», eleitos no seu seio277. Nas várias circunscrições eleitorais, os eleitores poderiam também indicar delegados a estas assembleias (um grupo de 500 eleitores)278. No que toca ao Senado, um terço dos seus 96 membros deveria agora ser escolhido pelo Presidente, sendo os restantes dois terços seleccionados por Colégios Eleitorais provinciais compostos por delegados escolhidos por um específico círculo de cidadãos eleitores definido em função de méritos nacionais e sociais dos cidadãos, de auctoritas nacional e social279.

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