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Estudos sobre o Estado Novo

No documento TESE DE DOUTORAMENTO Lisboa Junho, 2013 (páginas 49-53)

Embora a II.º República portuguesa não constitua objecto principal ou privilegiado deste trabalho, justifica-se aqui (nem que seja existencialmente, por se escrever em Portugal e para a academia portuguesa) umas quantas palavras sobre o estado da arte em sede de estudos sobre o Estado Novo.

Ao nível das tematizações da identidade e diferencialidade do Estado Novo, pode observar-se a cristalização de imagens interpretativas conflituantes radicalmente distintas (pelo menos à superfície), como que a convidar a uma sua superação (no sentido hegueliano do termo) num plano analítico que de algum modo as possa compor: O Estado Novo tem sido categorizado como instância de uma fundamental univocidade fascista e totalitária genéricas94.

Foi-o também como “espécie” de um registo fascista genérico, do qual, porém, o regime nacional-socialista não constituiria declinação (a medida-norma do género seria o Estado fascista italiano)95.

contemporains, em Revue du Droit Public et de la Science Politique en rance et a L’ Étranger, tomo 60,

1945, pp. 334 a 352.

94 Fernando Rosas, O Salazarismo e o homem novo: ensaio sobre o Estado Novo e a questão do

totalitarismo, em Análise Social, vol. XXV, n.º 157, Lisboa, 2001, pp 1031-1054; Luís Reis Torgal,

Estados Novos, Estado Novo, vol. 1, 2.ª edição revista, Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2009, pp. 282 e ss. e 364 e ss.; Manuel Loff, O nosso s culo ascista!: o mundo visto por Salazar e Franco (1936-1945), 1. ed, Campo das Letras Editora, Porto, 2008. Na doutrina jus-constitucionalista, para uma inclusão do Estado Novo no género Estado Fascista Totalitário, embora não sem menção a uma sua relativa especificidade autoritária, vide – Jorge Bacelar Gouveia, Manual de Direito Constitucional –

Volume I, Almedina, Coimbra, 4.ª Edição, 2011, pp. 224 a 228 e também pp. 474 a 491.

95 Manuel Lucena, A evolução do Sistema Corporativo Português, Tomo I o salazarismo, Perspectivas &

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O regime tem sido também classificado como instância de autoritarismo genérico, por vezes com equiparação específica ao Estado Austríaco, ao Franquismo e ao Regime de Vichy96.

Constatamos também a existência de imagens ou caracterizações diametralmente opostas se nos focarmos na questão da relação entre o político e o religioso – questão que parece cada vez mais tender a “impor-se” como questão central, ainda que se não tenham afirmado trabalhos propriamente inscritos na área de vanguarda dos estudos sobre a sacralização da política. A especificidade (social-)cristã da génese e da “coloração ideológica” do Estado Novo em face do fascismo tem sido sublinhada – maxime no quadro das equiparações específicas que acabámos de mencionar97. O Estado Novo tem mesmo sido descrito, em última análise, como regime «transcendentista» contraposto a regimes «imanentistas» como o regime Fascista ou regime Nacional-Socialista98. Para outros autores, ao invés, o regime parece poder ser

96 Fazem-no António Costa Pinto e Manuel Braga da Cruz, em António Costa Pinto, Salazar’s

Dictatorship and European Fascism, Problems of Interpretation, SSM-Columbia University Press, New York, 1995 (do mesmo autor, ver também prefácio a Michael Mann, Fascistas, vers. portuguesa, Edições 70, Lisboa, 2011, pp. 9 a 26) e Manuel Braga da Cruz, O Partido e o Estado no Salazarismo, Editorial Presença, Lisboa, 1988. Cfr. também Filipe Ribeiro de Meneses, Salazar: Uma biografia Política, vers. portuguesa, 3.ª edição, D. Quixote, Lisboa, 2009. Na doutrina jus-constitucionalista, veja-se Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional - Tomo I - Preliminares - O Estado e os Sistemas

Constitucionais, Coimbra Editora, Coimbra, 9.ª edição, 2011, pp. 300 a 332.

97 António Costa Pinto e Manuel Braga da Cruz acentuam a diferença cristã do ethos do Estado Novo em

face do fascismo. Na comunidade jurídica, António Manuel Hespanha, Cultura Jurídica Europeia -

Síntese de um Milénio, Almedina, Coimbra, 2012, p. 548, nota 107, acentuando a influência do contexto doutrina social da Igreja nos «autoritarismos conservadores» salazarismo e franquismo. Na doutrina jus- constitucionalista, José Joaquim Gomes Canotilho, embora descodificando o Estado Novo como regime «marcadamente autoritário», sublinhou a «simbiose entre o pensamento tradicionalista e a ideologia fascista» na forma Estado Novo – vide José Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria

da Constituição, Almedina, 11.ª Reimpressão da 7.ª Edição, 2011, pp 178 a 185, maxime, pp 178 e 181.

98 António José de Brito, O Pensamento Político de Salazar, Breves apontamentos, em Salazar sem

Máscaras, Nova Arrancada, Sociedade Editora SA, 1998, pp. 13 a 35. Paulo Otero, que, a final, “descodifica” o Estado Novo como «regime autoritário», destaca como diferencialidades centrais deste em face do fascismo italiano a não «divinização do Estado» e a desejada consonância com os «valores nucleares» de um cristianismo não reduzido a facto sociológico – cfr. Paulo Otero, A democracia

totalitária: do Estado totalitário à sociedade totalitária: a influência do totalitarismo na democracia do século XXI, cit., pp. 131 e ss., pp. 139-140, e 143.

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compreendido como uma construção política com uma veleidade totalitária de coloração cristã-católica, talvez mesmo como um totalitarismo de coloração cristã-católica99. Num outro registo analítico ainda, tem-se recentemente acentuado o carácter secular(secularista?) do edifício político-constitucional estadonovista e da acção constituinte e política geral do seu fundador100.

Uma diferencialidade do Estado Novo em face do fascismo tem sido também atribuída à presença na construção portuguesa de uma positividade liberal própria e residual; uma positividade capaz mesmo de explicar o próprio de discurso de demarcação cristã do Estado Novo em face do fascismo101.

De muitas das abordagens à “identidade” do Estado Novo talvez se possa dizer propenderem para um registo analítico de tipo “normativo-externo” e ou fenomenalista, no qual o Estado Novo e os regimes com que é comparado são aproblematicamente descodificados (ou recodificados) como instâncias de negatividade iliberal ou iliberal- democrática.

Por outro lado ainda, deve notar-se que produção científica comparatista de maior fôlego que tem procurado ler o Estado Novo “em relação” se tem concentrando mais em realidades contadas do que na inteira “constelação” de regimes “nacionalistas” que emergiram no entre-guerras.

Eis um conjunto de limitações que parecem justificar outros ângulos de entrada sobre o fenómeno. A perspectiva cientificamente jurídico-política aqui adoptada, talvez possa ser um desses ângulos. Uma adequada abordagem de um tópico como a influência do “religioso-tradicional” na “essência” do regime, por exemplo, talvez só possa mesmo realizar-se numa (certa) sede teórico-jurídico-política, na medida em que em última análise se trata de um problema político-constitucional – o “facto” de a Tradição

99 Veja-se Valentim Alexandre, O Roubo das Almas, Salazar, a Igreja e os totalitarismos [1930-1939],

Dom Quixote, Lisboa, 2006.

100 Para além de Luís Reis Torgal, Estados Novos, Estado Novo, vol. 1, cit., p. 423 e ss., pode ver-se, por

exemplo: António Araújo, A Lei de Salazar, Edições Tenacitas, Lisboa, 2007 e Bruno Cardoso Reis,

Salazar e o Vaticano, 2.ª ed., Imprensa de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa, Lisboa, 2007. Cfr. uma recente síntese desta linha interpretativa em Henrique Raposo, Salazar não era uma criatura da

Igreja, em Henrique Raposo, História Politicamente Incorrecta do Portugal Contemporâneo (De Salazar

a Soares), Guerra e Paz, Lisboa, 2013, pp. 17 a 38.

101 Rui Ramos, Historia De Portugal, Editora Esfera Dos Livros, Lisboa, 2010. Ver também Rui Ramos,

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Católica ser uma tradição que transporta um específico paradigma político- constitucional, para descer ao concreto, só aí será verdadeiramente visível.

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II.ª Parte

Identificando um multiverso constitucional-

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