• Nenhum resultado encontrado

O Estado corporativo: Quadragesimo Anno e projecto corporativo

No documento TESE DE DOUTORAMENTO Lisboa Junho, 2013 (páginas 196-199)

Em 15 de Maio de 1931, o Papa Pio XI, assinalando os quarenta anos da Rerum Novarum (Leão XIII) com a emanação da encíclica Quadragesimo Anno, actualizava a tradição político-constitucional católica. Tal documento convidava à edificação de uma ordem social corporativa de tipo associativo – a encíclica distanciava-se explicitamente, aliás, do modelo corporativo fascista, nela se podendo ler: «Basta reflectir um pouco, para ver as vantagens desta organização, embora apenas sumariamente indicada: a pacífica colaboração das classes, a repressão das organizações e violências socialistas, a acção moderadora de uma magistratura especial. Para não omitir nada em matéria de tanta importância, e em harmonia com os princípios gerais acima recordados e com o que em breve acrescentaremos, devemos contudo dizer que não falta quem receie que o Estado se substitua às livres actividades, em vez de se limitar à necessária e suficiente assistência e auxílio; que a nova organização sindical e corporativa tenha carácter excessivamente burocrático e político; e que, não obstante as vantagens gerais acenadas, possa servir a particulares intentos políticos mais que à preparação e início de uma ordem social melhor». Tal ordem deveria assentar num ethos cristão, tido como sua condição mesma de possibilidade444.

O regime do Estado Austríaco terá procurado moldar-se de acordo com essa actualização contemporânea da tradição político-constitucional católica. Nas palavras de Engelbert Dollfuss (Setembro de 1933): «Pretendemos construir um Estado Cristão- Alemão na nossa pátria! … Adoptaremos formas e bases corporativas, como a encíclica Quadragesimo Anno tão belamente nos anuncia, como fundação da nossa vida constitucional. Temos a ambição de ser o primeiro país em que a vida do Estado genuinamente obedece à chamada desta gloriosa encíclica»445.

444 Vide Pio XI, Carta Encíclica Quadragesimo Anno

http://www.vatican.va/holy_father/pius_xi/encyclicals/documents/hf_p-xi_enc_19310515_quadragesimo- anno_po.html.

445 Cfr. Robert Pyrah, 'Enacting Encyclicals? Cultural Politics and 'Clerical Fascism' in Austria, 1933-

1938', cit., p. 369 e p. 379, nota 1. Já Kurt von Schuschnigg, por exemplo, se notava a imprecisão e a equivocidade da designação – «porque o Santo Padre não quis, por meio da sua Encíclica, estabelecer o princípio basilar duma Constituição, mas indicar as reformas úteis ao saneamento de uma sociedade regida, de futuro, pela justiça social» – reconhecia que na Áustria, as directrizes da Encíclica papal foram julgadas decisivas e esta convicção exprime-se na nova Constituição corporativa da Áustria A encíclica

184

A Constituição de 1934, adoptava um princípio corporativo como princípio de organização da polis, como princípio de formação “social” e mesmo como princípio de formação das instituições do Poder político.

A Constituição austríaca previa a existência de um Conselho Económico Federal, composto por 70 a 80 representantes dos «corpos profissionais» (art 48.º), bem como de um Conselho Cultural Federal, composto por 30 a 40 representantes de associações eclesiásticas, de instituições de ensino, de educação e de cultura, do mundo das ciências e das artes (art. 47.º), mas também de um Conselho das Províncias Federais composto por dois representantes de cada Estado Federado e da Vila de Viena (art. 49.º), e de um Conselho de Estado, composto por membros nomeados pelo Presidente da Confederação (art. 46.). Com base em tais instituições, a Constituição erigia uma Dieta Federal, em cuja composição reentrariam (art. 50.º) 10 deputados do Conselho Cultural Federal, 20 deputados do Conselho Económico Federal, para além de 20 deputados do Conselho de Estado e de 9 membros do Conselho das Províncias Federais. Aos quatro conselhos individualmente considerados atribuía-se-lhes tão-só um papel representativo-consultivo em sede de procedimento legislativo; a Dieta apenas decidiria em última instância em tema de emanação de legislação federal, limitando-se a aprovar ou rejeitar iniciativas legislativas governamentais446. Uma Assembleia Federal, órgão resultante da reunião do Conselho Cultural Federal, do Conselho de Estado, do Conselho das Províncias Federais – sem intervenção do “elemento económico”, portanto – , designaria os candidatos à Chefatura do Estado.

Por de trás da edificação da ordem esteve uma interpretação do projecto corporativo – seminalmente veiculada por Seipel – na qual se acentuava a necessidade de uma autoridade política directora numa ordem corporativa (bem) constituída. Estaria em causa a hipótese de um «Estado corporativo governado por um executivo político

Quadragesimo Anno como Norma concreta do/no processo de constitucionalização. Note-se que Pio XI reconheceria em Dolfuss «um homem Cristão, de coração gigante… que governa a Áustria tão bem» –

apud Michael Burleigh, Sacred Causes: The Clash of Religion and Politics, from the Great War to the

War on Terror, cit., p. 145.

446 Depois da emissão de parecer ao nível dos Conselhos sobre os projectos de lei emanados pelo

Governo, a Dieta Federal deveria aprovar ou rejeitar tais projectos – não podia votar emendas ou discutir os projectos apresentados pelo governo, à semelhança dos corpos legislativos napoleónicos – vide art.62.

185

forte»447. Daí que a representação política tivesse sido configurada também a partir de uma componente estatal-“nacional”, e numa lógica que favorecia a construção de uma autoridade política independente.

Como quer que seja, a título de projecto de ordem recebia-se a ideia de um modelo (final) de ordem política estruturada sobre/garante de espaços de autonomia social com autoridade própria não derivada do Estado; ainda que tal modelo pudesse comportar virtualidades de realização mais ou menos estatistas ou mais ou menos societalistas.448 O texto constitucional parecia reflecti-lo, ainda que não sem ambiguidades: nos termos n.º 2 do art. 32.º «os corpos profissionais podem, em virtude da lei, administrar de uma maneira autónoma os assuntos relativos à sua profissão sob a vigilância do Estado»; no n.º 3 acrescentava-se: «A formação profissional e o exercício das profissões encontram- se submetidos às leis e aos regulamentos dos corpos profissionais de direito público emanados em virtude das leis». O Conselho Cultural Federal e o Conselho Económico Federal eram configurados como instituições formadas mediante uma lógica de selecção “de baixo para cima” a partir da “sociedade”, apesar de se remeter a regulamentação da designação dos seus membros para a lei, possibilitando o erigir provisório de esquemas de selecção “de cima para baixo” de tais instituições449. O Acto de Transição

Constitucional de 19 de Junho de 1934 operacionalizaria precisamente esta última direcção, fazendo do Chanceler Federal a sede da selecção da composição desses órgãos (art. 21.º).

Em todo o caso, o princípio corporativo não deixava de ser entendido como princípio de actuação progressiva, de tal modo que a uma sua maior concretização prática correspondesse uma diminuição gradual – sem prejuízo da salvaguarda de um permanente núcleo monoárquico – dos espaços da vida do Estado regulados pelo “princípio autor-itário”, com a diminuição da influência do Executivo na selecção da composição de outras instituições. Tinha-se especialmente presente que a hipótese corporativa não poderia deixar de significar fatalmente “engenharia social” de direcção

447 Ver Alfred Diamant, Alfred Diamant, Austrian Catholics and the First Republic, 1918-1934: A Study

in Anti-Democratic Thought, em The Western Political Quarterly, vol. 10, n.º 3, 1957, pp. 603-633.

448 Daí que no seu estudo da Constituição austríaca de 1934, Eric Voegelin notasse que o programa

corporativo inerente ao «Estado Austríaco» podia ser visto como «“liberal”», da perspectiva de um programa «totalitário»: vide Eric Voegelin, The Authoritarian State, op. cit., p. 283.

186

estadual constituinte (no sentido de implicar a construção institucional ex novo e/ou reinstitucionalização de instituições e espaços sociais existentes por parte do poder estadual)450.

No documento TESE DE DOUTORAMENTO Lisboa Junho, 2013 (páginas 196-199)

Outline

Documentos relacionados