• Nenhum resultado encontrado

O Estado Autor-itário

No documento TESE DE DOUTORAMENTO Lisboa Junho, 2013 (páginas 190-194)

No processo de elaboração do que viria a ser a constituição de 1934, não deixaria de se exprimir a resiliência de uma sensibilidade “constitucionalista”; o Ministro encarregue da elaboração do novo texto constitucional, o antigo Chanceler Ender agora Ministro para os assuntos constitucionais, exprimi-la-ia de forma especial430. De qualquer

em: Verfassung 1934, em Zeitschrift für ausländisches öffentliches Recht und Völkerrecht, vol. 4.º, 1934, pp. 706 a 751; e, em versão francesa, Constitution de 1934, em Annuaire de l'Institut international de

droit public-1935, Paris, 1935, pp. 383 a 471, texto que aqui tomamos como ponto de partida para as operações de tradução de que se alimentará o § 2.º deste capítulo. Sobre o contexto de emergência do «Estado Austríaco», veja-se Eric Voegelin, The Authoritarian State, cit.; cfr. também Peter Gerlich and David Campbell Austria: From Compromise to Authoritarianism, em Dirk Berg-Schlosser e Jeremy Mitchell ed., Conditions of Democracy in Europe 1919–39…, pp. 40 a 58.

429 Para uma aproximação ao projecto político-constitucional do Estado Austríaco e ao seu “espírito das

instituições”, veja-se: Eric Voegelin, The Authoritarian State, cit.; Fr. Johannes Messner, Dollfuss: An

Austrian Patriot, versão inglesa, Gates of Viena Books, Norfolk, VA, 2004 [Dollfuß, Tyrolia, Innsbruck, Wien, München, 1935]. Pode ver-se também Adolf Merkl, Die ständisch-autoritäre Verfassung in

Österreichs: Ein kritisch-systematischer Grundriß, Julius Springer, Vienna, 1935. Cfr. ainda Gordon Brooke-Shepherd, Dollfuss, Macmillan & co Ltd, London, 1961 e Robert Pyrah, 'Enacting Encyclicals?

Cultural Politics and 'Clerical Fascism' in Austria, 1933-1938', em Totalitarian Movements and Political

Religions, vol. 8, n.º. 2, 2007, pp. 369 – 382.

430 Registar-se-iam tensões entre Ender e os líderes da Heimwehr, movimento veiculando uma ideia

monista de ordem política. Polemicar-se-ia especialmente em torno do modo de eleição do Presidente e do grau de (des)centralização que o novo Estado deveria concretizar. Quanto ao primeiro problema, Ender sustentaria que o chefe do Estado deveria ser eleito livremente pelo “povo”, ainda que a escolha devesse ser uma escolha restrita; já Heimwehr sustentou que o fosse pelo Conselho de Estado ou por um Colégio eleitoral especial. Quanto à questão da (des)centralização, se Ender defendia a retenção de ampla autonomia para as províncias, a Heimwehr favorecia uma ordem fortemente centralista baseada no padrão fascista-italiano. Dollfuss optaria por uma fórmula intermédia em tema de eleição presidencial (vide

178

maneira, a liderança-mor do processo constituinte não seria totalmente alheia a uma tal sensibilidade. Segundo Kurt von Schuschnigg, n.º 2 do Chanceler e seu futuro sucessor à frente dos destinos austríacos, entre três grandes possibilidades de estruturação do Estado – a renúncia a uma Constituição escrita, à semelhança da «Inglaterra», a adopção do «princípio “o Estado sou eu”» (em que o “eu” poderia ser «um partido», como num «regime totalitário»), e a adopção de uma Constituição escrita – só havia para os constituintes austríacos («nós», no texto de Schuschnigg a que aqui nos atemos) uma solução: «substituir uma constituição escrita por outra lei constitucional escrita»431. A Constituição austríaca conservaria efectivamente traços fundamentais constitucionalistas: um princípio de diferenciação orgânica e de distribuição (tendencial) das diversas funções do Estado por órgãos distintos (com especialização funcional tendencial dos vários órgãos do Estado) - divisão estabelecida entre a legislação federal e os seus órgãos, a execução federal e os seus órgãos, esta última subdividida entre a Administração e os seus órgãos e a jurisdição e os seus órgãos (vide as epígrafes das partes 4.ª e 5.ª); previa mecanismos judiciários de controlo da constitucionalidade das leis. (170.º); garantia a independência dos juízes, por exemplo.

Com a previsão constitucional de um amplo círculo de direitos gerais dos cidadãos do Estado (arts. 15.º a 33.º; segunda parte da Constituição), a constituição não deixou também de acolher o idioma dos direitos432.

Não obstante, a Constituição concretizava claramente a ideia Dollfussiana de um Estado dirigido, na sua vida interna e na sua acção exterior, por um centro de poder director, de um Estado-Executivo ou Estado-Governativo, visto como condição mesma da desejada

Heimwehr, tendo concordado com a nomeação de um director de segurança para guiar cada governador provincial. Sobre a Heimwehr e a sua ideia política, veja-se Ludwig Jedlicka, La Heimwehr austriaca. Un

contributo alla storia del fascismo nell’Europa centrale, em Dialoghi del XX, Fascismo Internazionale 1920/1945, ano 1, n.º 1, Il Saggiatore, Milano, 1967, pp. 144 a 164.

431 Vide Kurt Von Schschnigg, Áustria, Pátria Minha!, Editorial Inquérito, Lisboa, 1938, pp. 345 e 346. 432 Segundo Alexander Somek, a ordem austríaca de 1934 «aceita estruturas de governança que contêm a

maioria das características da democracia constitucional com a notória excepção da própria democracia (parlamentar)» e um direito constitucional que pode incluir «o Estado de direito, a protecção de direitos fundamentais e traços da separação de poderes, mas que não obstante exclui a eleição de, e o controlo por, assembleias populares, em nome de um projecto de integração social ou reconstrução social». Tratar-se ia de um «constitucionalismo autoritário». Cfr. Alexander Somek, Authoritarian Constitucionalism:

Austrian Constitutional Doctrine 1933 to 1938 and its Legacy, em Christian Joerges e Navraj Singh Ghaleigh (dir.), Darker Legacies of Law in Europe, cit., pp.361 a 388.

179

existência de comunidade política. De acordo com uma tal ideia, na síntese de um intérprete coevo do processo de reconstitucionalização austríaca (Eric Voegelin), síntese elaborada tendo em conta os grandes discursos do Chanceler que prepararam e acompanharam um tal processo: «1 – o Governo tem autoridade porque é o representante do Estado; 2 – a função autoritária do Governo, no sentido literal de autoria, é o arranjo da multidão dos interesses materiais e intelectuais da sociedade num todo unificado; 3 – o esforço autoritativo [sic] coloca o Governo numa relação de representação em relação ao Estado como um todo; 4 – assim, autoridade não é despotismo ou ditadura mas é definida como poder ordenado de acordo com representação autoritária/autorial (sic); 5 – ao Estado deve ser dada uma estrutura hierárquico-autoritária concentrando o poder de jurisdição soberana [hoheitsrechtliche Gewalt] mais estritamente do que antes nas mãos do Governo»433.

Desde logo, na denominação da comunidade política como «Estado Austríaco», significativamente, preferiu-se o nome Estado ao nome República. No novo ordenamento constitucional, o Governo deixa efectivamente de depender da confiança das novas instituições ersatz da instituição parlamentar (vide infra), sendo-lhe também atribuído, em exclusivo, um direito de iniciativa legislativa. O Presidente Federal, de quem o Governo agora dependia, deixava de ter o tradicional “o povo” com fonte da sua designação; caberia agora aos “Presidentes de Câmara” escolher o Chefe do Estado de entre uma lista de três candidatos propostos por um órgão. Segundo Voegelin, «A hierarquia do executivo forma um círculo no qual o nível mais baixo na hierarquia cria a mais alta autoridade executiva, da qual todas as outras directa ou indirectamente decorrem»; a Constituição de 1934 definia um «coração autoritário do Estado completamente auto-enclausurado»434.

433 Vide Eric Voegelin, The Authoritarian State, cit., p. 102. O autor teve em conta na elaboração da

síntese os seguintes testemunhos públicos do fundador do «Estado Austríaco»: o discurso no

Trabrennplatz de Viena proferido 11 de Setembro de 1933, o editorial no Reichspost de 24 de Dezembro de 1933, bem como a alocução radiofónica de 1 de Maio de 1934.

434 Vide Eric Voegelin, op. cit., pp. 255 a 257. A Constituição de 1934 continha, ademais, em si mesma,

para além da “constituição da normalidade”, uma “constituição extraordinária” autoritária (ainda que certos elementos constitucionalistas não deixassem de marcar esta última, simbolizando a natureza mista do discurso constitucional global) – vide a 10.ª parte da Constituição (intitulada «Direitos da Administração em caso de necessidade»).

180

No novo ordenamento constitucional era nítido um afastamento, por razões de salus populi, em nome de valores comunitários, em relação a um modelo de Estado baseado em direitos subjectivos (rights-based). Em tema de liberdade de expressão da opinião – artigo 26.º (1) – estatuía-se expressivamente: «Todos os cidadãos da Confederação têm o direito expressar livremente a sua opinião oralmente, por escrito, imagem, impressão, ou por qualquer outra forma, dentro dos limites prescritos pela lei. (2) Especialmente, uma lei pode prever medidas nos casos seguintes: a) Para prevenir delitos contra a ordem, a tranquilidade e a segurança públicas ou contra as leis penais, um exame prévio da imprensa, também do teatro, rádio, do cinema e de todas as outras apresentações públicas, e, em conformidade com a competência das autoridades, a interdição de tais apresentações; b) Medidas para combater a imoralidade ou graves violações da decência; c) Medidas para a protecção da juventude; d) Medidas para a salvaguarda de todos os [outros] interesses do povo e do Estado»435.

Em simultâneo com a emanação de um novo ordenamento constitucional, os projectistas da ordem institucionalizariam também uma organização pública política denominada «Frente Patriótica» – Lei de 1 de Maio de 1934 sobre a Frente Patriótica. Os dois primeiros parágrafos da que ficaria conhecida por «primeira Lei sobre a Frente Patriótica» afiguram-se eloquentes quanto à natureza e finalidade da nova organização: § 1 (1) «A totalidade das pessoas físicas e jurídicas da “Frente Patriótica” formam uma associação de direito público construída sobre uma base de organização autoritária». (2) À Frente Patriótica é reconhecida personalidade jurídica; § 2 º - A Associação da Frente Patriótica é chamada a ser o portador da ideia estadual austríaca. O seu objectivo é a reunião política de todos os cidadãos/nacionais que aceitam um Estado federal austríaco independente, cristão, alemão e corporativo e se submetem ao actual líder da Frente Patriótica, ou ao seu sucessor designado»436. O Acto de Transição Constitucional de 19 de Junho de 1934 (Verfassungsübergangsgesetz), por exemplo, atribuía à Frente

435 As liberdades com projecção pública apareciam, aliás, como que desconstitucionalizadas, remetendo a

Constituição para o legislador a definição da configuração concreta dos direitos – genericamente previstos – de reunião, associação, e de livre expressão da opinião (vide arts 24.º e 26.º).

436 Nos termos do § 3 º (1), o Führer federal (líder federal/Bundesführer) da Frente Patriótica deveria

nomear um “delegado” (Bundesführer-Stellvertreter) que se ocuparia da “liderança corrente” da organização.

181

Patriótica o direito de sugerir propostas de nomes para as dietas das Províncias Federais e das Comunas, em sede de nomeação dos membros destas (arts. 29.º e 39.º desse acto).

No documento TESE DE DOUTORAMENTO Lisboa Junho, 2013 (páginas 190-194)

Outline

Documentos relacionados