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1.2.1 Direito à verdade o conhecimento do diagnóstico

Em situação de doença terminal a revelação do diagnóstico e do prognóstico nem sempre é feita, sobretudo se se trata de patologia neoplásica, cujas representações sociais são extremamente negativas. À palavra cancro são vulgarmente associadas as palavras vulnerabilidade, morte, ansiedade, porque é imprevisível o seu curso. A velha questão de saber se se deve ou não revelar ao canceroso o seu diagnóstico e prognóstico dominou, durante muito tempo, quase todas as discussões da psicologia do canceroso. Sabe-se que a maioria dos doentes quer saber à partida o seu diagnóstico. Também se sabe que a revelação do diagnóstico médico provoca, sem dúvida, na maioria dos doentes um choque, um sentimento súbito de perda total de valores e uma depressão que, quando acompanhada, é reversível.

Ainda hoje a atitude mais comum é a de ocultar o diagnóstico ao doente. Defende-se que ele é incapaz de suportar semelhante revelação e que vai deixar de ter vontade de viver. Tenta-se humanizar a questão, individualizar cada caso e só por vontade expressa do doente e da família é que se revela toda a verdade. Mas esta não é a realidade em todos os países. A este respeito Lucien Israel lembra que “dizer a um doente «você tem cancro» é dizer muito mais do que: «você tem uma doença possivelmente mortal». No contexto cultural que é o nosso, é roubar-lhe a alma, prometer-lhe o inferno, inflingir-lhe o último traumatismo. Os médicos sempre

o sentiram, sempre se recusaram até agora a dizer a verdade nua e crua(...) No entanto, devo dizer que a posição dos médicos franceses, por exemplo, é bem mais corajosa colectivamente que a dos médicos americanos, os quais por razões que não são inteiramente puras, dizem a verdade sem rodeios aos seus doentes e deixam-nos mastigar a notícia” (Israel 1978:153). Efectivamente, vivem sob a ameaça de processos intentados de má terapêutica, de obter o consentimento do doente, discutir a sua opção e tudo isso só pode ser feito ao preço de uma verdade quase total. Por essa razão revelam toda a verdade, isto é, que o doente tem um cancro, que tem metástases hepáticas e que as suas hipóteses são reduzidas.

Neste debate o consenso é difícil, as posições extremam-se na maior parte dos casos; há quem defenda a revelação de toda a verdade e quem defenda exactamente o contrário. Há, no entanto, um parâmetro a acrescentar e que muitas vezes fica esquecido, é que numerosos são os doentes que, sem nunca o confessarem, «sabem». Não dizem aos seus familiares e próximos, não perguntam ao médico e por diversas e complexas razões não procuram esclarecer a situação. É a chamada conspiração em silêncio.

No entanto, esse silêncio pode constituir uma defesa do próprio doente, “é preciso, para responder aos partidários da verdade a qualquer preço, sublinhar este facto: o paciente só muito raramente pede a verdade. Suporta todos os géneros de tratamentos, vê a sua situação evoluir aos altos e baixos, lida com problemas ameaçadores, e nada pergunta. Muitas vezes desenvolve uma estratégia complexa, sendo o primeiro a propor explicações e diagnósticos para retirar ao médico a tentação de lhe fornecer os seus. E pretende-se que o médico quebre esta resistência e, em nome das construções intelectuais daqueles que não sofrem, desorganize o jogo daqueles que sofrem? Que significa este jogo? Que o paciente tem uma dúvida, que ele próprio é capaz de enquistar e de recalcar se lhe deixarem essa possibilidade, e que ele deseja desesperadamente recalcar” (Israel 1978: 154).

Dos doentes que reclamam a verdade e a maior quantidade de informação possível, temos ainda que considerar dois grupos: os que falam verdade, por todos os tipos de razões (religiosas, filosóficas, materiais) e aqueles que querem ser, simplesmente, convencidos que não têm um cancro ou uma doença fatal. Estes não podem suportar a sua dúvida, nem recalcá- la. Mas também não estão verdadeiramente interessados na verdade. Da sua experiência como médico, Lucien Israel diz-nos: “entendo que se fossemos capazes de identificar esta segunda categoria, não deveríamos dar àqueles que dela fazem parte o diagnóstico real. Eles procuram

em nós outra coisa que não um computador. É uma discussão entre caridade e verdade. E a escolha a favor da caridade situa o médico a um nível muito acima daquele que a Previdência social pode tarifar. Aliás um erra paga-se caro, muitas vezes por uma depressão incurável, eventualmente mais grave ainda do que o próprio cancro, por vezes com um suicídio. De onde a tendência natural dos médicos das nossas civilizações latinas em exagerar no sentido da mentira, por atenção ao interesse dos doentes” (Israel 1978 : 154).

Este problema da informação é bastante delicado: cada caso terá de ser analisado em particular. Antes de mais, é preciso acrescentar que, do ponto de vista jurídico, existe obrigação de informar o doente. Por um lado a lei de Bases da Saúde13 diz que os doentes têm direito de ser informados “sobre a sua situação, as alternativas possíveis de tratamento e a evolução provável do seu estado”. Por outro lado, tanto o Código Deontológico da Ordem dos Médicos, quanto o Estatuto Hospitalar14 defendem que “os prognósticos graves”, isto é a evolução provável do doente, “podem ser legitimamente ocultados aos doentes; os prognósticos fatais só lhes podem ser revelados pelo médico responsável, com as precauções aconselhadas pelo exacto conhecimento do seu temperamento e índole moral; mas, em regra, uns e outros devem ser revelados à família”. O que pressupõe um conhecimento exacto da personalidade do doente, da sua concepção de vida e morte e de todas as características pessoais que o ajudam a suportar a revelação de um diagnóstico e prognóstico grave. Coloca-se a questão de saber quais as equipas que conseguem atingir esse conhecimento. Na realidade prática o que se verifica, é que não conhecendo as características de cada indivíduo, supõe-se que a verdade resultará sempre prejudicial e opta-se por não dar a informação; decisão esta quase sempre reforçada e apoiada pela família - que é quem conhece melhor o doente.

Ao analisar estas atitudes, Fritz Meerwein, diz que ao omitir a verdade do diagnóstico, os profissionais estão a projectar as suas próprias reacções sobre os doentes. Mais tarde ou mais cedo o doente vai por si próprio descobrir o seu diagnóstico e reconhecer que o médico quis poupá-lo, acabando por experimentar sentimentos de amargura, cólera, revolta e aumento da ansiedade, que poderão conduzir a uma crise de desconfiança penosa e por vezes irreversível. Os profissionais de saúde ligados directamente ao cancro defendem, de uma maneira geral, também a necessidade do conhecimento do diagnóstico como contributo para a

13 Lei de Bases da Saúde, Base IV, n.º 1 e) in DR n.º195, I Série de 24/8/1990

diminuição dos níveis de ansiedade, criando consequentemente melhores perspectivas de tratamento. No entanto, para alguns autores, dizer a verdade com delicadeza é não mentir; deve-se proporcionar a informação relacionada com a gravidade clínica sem dar prazos de vida, mantendo uma prudente reserva e indicando o desconhecimento médico em relação à evolução clinica (Vega e Baza 1991).

Mathieu enuncia alguns princípios importantes do tratamento e cuidados paliativos. Enuncia como primeiro princípio o direito à informação e à verdade; a este respeito diz que as relações profundas e intimas não se podem estabelecer senão num clima de confiança mútua. Essa confiança baseia-se no conhecimento, o mesmo quer dizer, na informação; a verdade e o respeito do outro implicam uma escuta recíproca, da qual o doente depende em grande parte. A informação e a verdade são dúvidas que o doente tem sempre até que lhas esclareçam, só a partir daí sente confiança e à vontade para falar abertamente do que mais o atormenta. (Mathieu 1989: 20)

Em relação às posições apresentadas e possíveis em relação a esta questão, conclui- se que não há respostas únicas, nem soluções mágicas; cada caso deve ser profundamente avaliado cabendo, inteiramente, ao médico que assiste o doente revelar ou não, o diagnóstico e o prognóstico previsível. A família tem um papel activo nesta decisão, pelo conhecimento que tem dele. Com frequência a realidade mais encontrada (mas não a ideal!) é de que o médico parte do princípio de que o doente não suportaria a verdade e encontra rapidamente forte cumplicidade na família; fica o silêncio para o doente que não questionar.