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A morte é a experiência mais comum e universal dos seres vivos. Mas, ninguém pode descrever e testemunhar o que é morrer, do ponto de vista do sujeito. Trata-se de uma experiência indescritível, intransmissível, estritamente pessoal, apesar de ser um fenómeno biologicamente conclusivo e que sempre acompanhou a humanidade.

Morrer é parte integral da vida, tão natural e previsível como nascer. Mas enquanto o nascimento é motivo de comemorações e de alegria, a morte transforma-se num terrível e inexplicável assunto a ser evitado de todas as maneiras. Talvez porque ela nos lembre a vulnerabilidade humana, apesar de todos os avanços tecnológicos. Ironicamente o paradigma da morte e da continuidade da vida, é realmente o mais antigo e fundamental da história da humanidade.

Segundo as concepções freudianas, o inconsciente desconhece a noção da própria finitude pelo facto da morte estar revestida de maus significados e se ter tornado um tabu para a civilização ocidental (Mittag 1996). O homem não a reconhece como um processo natural e

inevitável, convenceu-se internamente da sua imortalidade, capaz somente de se imaginar morto enquanto espectador da cena.

A morte mais primitiva que o estudo das relações e da história da Medicina adquiriu no decorrer dos séculos, diversas conotações, variando de cultura, sofrendo interferências da ideologia vigente, dos processos históricos e evolutivos etc. ... A história do repúdio pela morte é secular; os seus significados parecem surgir primeiro da necessidade de lhe dar sentido e, segundo, do facto de não se admitir os contínuos fracassos na tentativa de a dominar. É sagrada, maldita, temida e desejada. Os valores mudam e os momentos históricos criam novas necessidades para o ser humano que, apesar de todos os esforços, permanece mortal. A ideia que prevalece é a de que se não conseguimos dominar a morte, então que ela seja ideal e aceitável: súbita, sem dor ou consciência, acometendo uma pessoa idosa, cujos sonhos supostamente já teriam sido realizados (Leão 1994).

Olhando de relance a história dos acontecimentos que rodeiam um contexto de morte, verificamos que têm variado ao longo dos tempos. Philippe Ariés (1988) faz, na sua obra “O Homem perante a morte”, uma descrição e análise do ritual associado à morte e ao luto, bem como da evolução desse ritual, que interessa sintetizar.

Durante séculos aceitou-se a morte como um “repouso eterno”; o acontecimento era uma cerimónia pública, presidida pelo moribundo, que a pressentia, lhe conhecia os rituais e tomava as providências necessárias: rodeava-se pela família e após a visita do responsável religioso, fazia o seu testamento, recomendações e despedidas para enfrentar corajosamente a meta final.

No decurso do séc. XVIII /XIX a morte passa a ser exaltada, dramatizada, tornando-se impressionante e dominadora. O indivíduo deixa de se preocupar com a sua própria morte. Esta passa a ser como uma transgressão, que arranca o Homem à sua vida quotidiana, à sociedade racional para o lançar para um mundo cruel, violento e irracional. O cerimonial da morte no leito mantém-se, contudo mais dramatizado, em que os presentes choram, gesticulam, gritam numa encenação quase teatral.

No final do séc. XIX surge um novo sentimento: os familiares e amigos do doente tendem a poupá-lo, escondendo-lhe a gravidade do seu estado. A verdade começa a levantar problemas. A morte faz tanto medo que evitamos pronunciar o seu nome; como afirmou Bernard Shaw: “A morte não é o pior, o pior é o medo da morte”. Aquela é a atitude moderna da

nossa sociedade para com a realidade da morte. O pensamento da morte representa a ruptura do conforto humano. O homem agarra-se às informações médicas, tudo fica dependente do conhecimento da doença e da eficácia da terapêutica. Philippe Ariés considera que se a mentira tem como finalidade poupar ao doente o sofrimento, evita também ao seu círculo de relações o incómodo e a emoção demasiado forte provocado pelo aspecto macabro da agonia, pois admite-se que a vida é sempre feliz ou deveria parecer sê-lo.

O ritual de morte modifica-se, no final do séc. XIX e início do séc. XX , o moribundo apenas recebe os familiares, amigos mais íntimos ou os que lhe prestam os cuidados. Todos os outros são afastados, assim como as crianças. A cerimónia é privada e a morte escondida. Mas o peso dos cuidados a prestar, do sofrimento, da dor incontrolável, dos odores e do espectáculo, por vezes aterrador, tornam todos mais frágeis. Assim os doentes terminais são transferidos para o meio considerado responsável pelo seu cuidado: o hospital e respectivos os profissionais de saúde.

A partir de meados do séc. XX e graças aos progressos da ciência, da medicina, da cirurgia, das técnicas de diagnóstico e da generalização das noções de higiene e assepsia, o doente passou a permanecer longos tempos no hospital, acabando por morrer lá. O mundo do moribundo passa a ser o quarto de hospital, e em que a morte é entendida como uma inconveniência. Naquele lugar ela é frequente, banalizada e não publicitada.

Para Vincent à dramaturgia da morte de ontem, sucede a comédia lúgubre da morte contemporânea: o moribundo deve representar o papel de quem não vai morrer e os do seu meio participam nessa farsa. O moribundo é privado da sua morte, e a sociedade do seu luto. Só se chora em privado. A morte como cerimónia pública “morte domada”, transforma-se num acto solitário e a “morte interdita ” (Vincent 1991).

A sociedade ocidental oculta a morte. É paradoxal que, nos dias de hoje se queira descobrir a origem do mundo e se viva numa contínua farsa de negar, quiçá, a única certeza que temos, a morte. Todos a receamos e tentamos iludir o seu aparecimento no quotidiano. Adiamo-la. “No mais íntimo de nós queremos acreditar na nossa imortalidade, mesmo sem qualquer evidência para esta aspiração” (Fr. Bernardo 1988: 258). Todavia, a morte é considerada um acontecimento social por excelência; é um acontecimento sociobiológico com forte carga psicológica, não podendo ser desligada do contexto em que ocorre.