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O Hospital com área de cuidados diferenciados por excelência, tem tido, ao longo da história, como principal objectivo tratar a doença, devolver a saúde, reabilitar e contribuir para uma mais rápida integração na família, no trabalho e na comunidade (Barros 1988). Os hospitais são estruturas gigantes, cujas administrações exigem rigor e racionalização dos gastos. São lugares onde se pratica uma tecnologia avançada, sempre com a finalidade máxima de salvar a vida e proteger a saúde. A este respeito diz “os hospitais são fábricas de saúde, em cujo índice de produtividade não entra o doente incurável. O doente terminal interfere no funcionamento do hospital, mais preparado para curar do que para cuidar o doente incurável. Ainda que o doente esteja “sem esperança”20 tem direito aos cuidados médicos, ao seu tempo, às suas capacidades e competências, mas com frequência recebe menos atenção e afecto que durante a fase de tratamento específico” (Gómez-Batiste 1996).

Nos hospitais, não tem sido preocupação o morrer ou o ajudar a morrer. Têm sido os doentes oncológicos e mais recentemente os doentes com SIDA que vieram precipitar a problematização da doença terminal e da necessidade de humanização no tratamento. A morte é, para os profissionais de saúde, sinónimo de insucesso, fracasso e frustração profissionais. Desafia-se a morte! O desafio à morte é uma parte da herança judaico-cristã. Através dos tempos, as pessoas lutaram por causas ou ideologias, mesmo sabendo que iam morrer. Esta atitude está reflectida nos hospitais, especialmente em Unidades de Cuidados Intensivos ou durante situações de urgência. A causa é salvar uma vida; a batalha é com a morte. Apesar de não ser o pessoal que morre nessa batalha, está aberto à perda. Se o doente morre, o pessoal vive com o sentimento de derrota. Mais, enfrentam mais uma vez a qualidade finita das suas próprias vidas e a inevitabilidade da morte, apesar da tecnologia moderna. “O desafio à morte é

útil quando lutamos pela vida; desnecessário quando não atendemos às realidades da situação” (Martocchio e Dufault, 1991).

Os profissionais de saúde não estão despertos, nem treinados para identificar, classificar, tratar e avaliar adequadamente as necessidades do doente terminal; são formados essencialmente na óptica do domínio sobre a doença com técnicas e meios cada vez mais sofisticados (Henriques e Monteiro 1993). Os médicos «somáticos» vivem a doença terminal como fracasso, e inconscientemente deixam o doente isolado, separado e abandonado. Um nascimento é acompanhado de uma alegre corte de obstetras, pediatras, enfermeiras e psicólogos; é penoso que na morte a única companhia seja a enfermeira de turno (se é que está presente) e as máquinas correspondentes. O apoio afectivo e psicológico aos moribundos é pelo menos tão importante como as drogas que se lhes administram (Gómez-Batiste 1996).

Uma das faces do problema é que o lugar natural para morrer é a própria casa, em companhia das pessoas mais queridas, mas hoje, sobretudo nos grandes centros urbanos, cada vez mais se morre fora dela: nas estradas, nos hospitais, quer seja numa enfermaria, onde a proximidade de outros doentes não evita a solidão, quer nas unidades de cuidados intensivos, rodeados de sofisticadas máquinas e perfurados por sondas e catéteres; convertendo a fase terminal da vida, numa agonia indescritível. As famílias estão reduzidas em número, afastados geograficamente uns dos outros; vivem em pequenos apartamentos, onde não há lugar para mais do que três ou quatro pessoas e o qual se esvazia durante o dia, não havendo lugar para quem está doente e necessita cuidados prolongados.

Esta condicionante da realidade que os doentes hoje enfrentam somada à ineficácia do actual sistema de saúde, no que diz respeito à assistência domiciliária, determina uma procura sistemática e inevitável dos hospitais. Aí, como refere Daniel Serrão “...onde a relação médico-doente é difusa e imprecisa, não personalizada, nem directamente assumida por ninguém, o doente terminal corre principalmente dois riscos ambos resultantes de ser tratado como uma coisa e não como uma pessoa: o risco do intensivismo inútil e cruel e o risco da eutanásia, mais ou menos activa” (Serrão 1992 : 36).

O intensivismo nos doentes terminais, em meio hospitalar, é hoje deliberadamente assumido por muitos médicos como a melhor forma de se defenderem da acusação de negligência ou de falta de assistência, sabendo de antemão que as medidas invasivas de

tratamento que prescrevem apenas vão prolongar inutilmente o sofrimento. Gómez-Batiste explica que o sentimento de frustração, vivido pelos profissionais, “é superado por uma preocupação quase obsessiva em prolongar a vida por qualquer meio, mesmo usando a tecnologia mais invasiva durante o processo de morte”.21 (Gómez-Batiste 1996: 16)

O tratamento intensivo e o suporte de funções vitais deve, no entanto, ser garantido pela equipa de saúde, que tem a responsabilidade do doente, enquanto não for estabelecido formalmente o diagnóstico de doente em fase terminal. Este diagnóstico nem sempre é linear e fácil. Nas situações agudas e nas neoplasias sob tratamento agressivo, particularmente nas doenças hematológicas, pode ser muito difícil e o erro, caso o haja, deve ser sempre a favor do doente, isto é, deve investir-se no tratamento. Nalguns casos, acredita-se na possibilidade de atingir a fase de remissão do tumor, viabiliza-se na fase mais aguda um tratamento de suporte das funções vitais do doente e consegue-se através do diálogo entre equipas (cirurgia e cuidados intensivos) um aumento da esperança de vida para mais alguns anos. Apesar de existirem exemplos deste tipo, animadores, na maioria dos casos, retarda-se a morte por semanas, meses, à custa de muito sofrimento e dor. Por vezes, estamos perante uma vida que se encaminha naturalmente para o seu termo, mas porque temos à mão todos os meios corre- se o risco de perder a noção de limite. A medicina moderna tem de aceitar que não pode em todos os casos conjurar a morte e que, por uma questão de respeito e dignidade terá de renunciar às suas próprias capacidades. Lourenço Marques evidencia “o dever de tratar o doente sem nos encarniçarmos numa terapêutica inoperante”. (Silva, 1995: 218)

Um estudo publicado no “Journal of the American Medical Association”, concluiu que os esforços feitos pelos serviços médicos para prolongar a vida das pessoas em estado terminal, muitas vezes apenas prolongam a sua morte e demasiadas pessoas morrem ligadas a máquinas, sozinhas e com dores. O referido estudo, incidiu sobre mais de 10 mil pessoas, realizou-se durante 8 anos e traça um panorama desolador das circunstâncias frias e dolorosas em que morrem as pessoas e da dificuldade em mudar mentalidades. “O problema é que os médicos não sabem quando devem parar” diz Steven Schoreder, presidente da Fundação Wood Johnson, que patrocinou o estudo (Kenen, 1995).

O segundo risco a que os doentes terminais estão sujeitos é a eutanásia, a qual motiva e provoca acesos debates, geram-se opiniões diametralmente opostas e em que o

consenso é difícil. Nos países considerados mais desenvolvidos, Estados Unidos da América e países nórdicos, o tema foi mediatizado, debatido em directo por todo o tipo de classes profissionais e retiradas conclusões muito suspeitas e pouco éticas. Admite-se a hipótese de aceitar a decisão do doente quanto ao termo da sua vida ser feito por outrem e de forma rápida, abreviando o sofrimento. A dignidade no morrer não pode ser confundido com eutanásia. Daniel Serrão acrescenta que “nestas culturas, que subconscientemente recusam a morte humana como um fenómeno biológico, natural e inevitável e que tudo esperavam de uma medicina orgulhosamente triunfadora, aquilo que os defensores da eutanásia estão a querer dizer aos médicos é, muito brutalmente, o seguinte: se a vossa tecnologia não consegue salvar esse homem então matai-o!”. Na sua concepção, “enfrentar uma situação terminal é, para um médico verdadeiramente consciente da grandeza e responsabilidade da sua profissão, tomar uma posição sobre a vida e a morte dos homens nossos irmãos e iguais; é assumir pessoalmente, um comportamento profissional específico no qual se têm de acrescentar os critérios éticos aos critérios técnico-cientificos; é afinal, integrar o gesto médico numa antropologia coerente que nos situe o homem no mundo natural e as relações que eles próprio criam. A morte do homem, a morte de cada homem, sendo um acontecimento natural, não é um acontecimento trivial, não é nunca trivial” (Serrão, 1990: 35).