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4 A (IM) POSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO NO ORDENAMENTO

4.1 DIREITO CIVIL: O STATUS JURÍDICO DOS NÃO HUMANOS

O Direito Civil tem por finalidade regular os direitos e obrigações de ordem privada concernentes às pessoas, aos bens e às suas relações. É a base do que se convencionou chamar de Direito Privado, disciplinando as relações jurídicas da pessoa, seja uma com as outras (físicas ou jurídicas), de forma a envolver relações familiares e obrigacionais, ou com as coisas (propriedade e posse).159 Como produto histórico da consolidação do antropocentrismo, tem como seu fundamento o ser humano e os seus interesses patrimoniais160, de maneira que os não

157 MÓL, Samylla; VENANCIO, Renato. A proteção jurídica aos animais no Brasil: uma breve história. Rio de Janeiro: FGV, 2014. p. 12

158 RODRIGUES, Danielle Tetü. O direito & os animais: uma abordagem ética, filosófica e normativa. 2. ed. Curitiba: Jaruá, 2009. p. 62

159 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: Parte Geral. v.1. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. Disponível em:

<https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788547217204/cfi/0>. Acesso em: 20 maio 2018. Acesso restrito via Minha Biblioteca (Academia Judicial – TJSC). p. 83-85.

160 FAUTH. Juliana de Andrade. Sujeitos de Direitos Não Personalizados e o Status Jurídico Civil dos Animais Não Humanos. 2016. 168 p. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade Federal da Bahia,

humanos, em que pese, portadores de dignidade e de tratamento condizente com a sua condição, não foram acolhidos como seres de valor próprio diante das normas civilistas.

4.1.1 Sujeitos e objetos de direito

Os animais estão introduzidos na categoria jurídica de objetos de direito.161 Desse modo, torna-se importante a compreensão das terminologias sujeito e objeto de direito, e de que forma os doutrinadores as interpretam.

Sujeito de direito é aquele que participa da relação jurídica, sendo titular de prerrogativas e deveres. São as pessoas naturais (seres humanos) e as pessoas jurídicas (grupos de seres humanos ou de bens a quem o direito atribui titularidade jurídica). Objeto da relação jurídica é aquilo que se coloca adiante, fora do sujeito. Em senso estrito, são as coisas e as ações humanas (relações obrigacionais, por exemplo).162

No entendimento de Washington de Barros e Ana Cristina de Barros, pessoa é o ente físico ou moral, suscetível de direitos e obrigações, de modo que é considerada como sinônimo de sujeito de direito. Todo ser humano é pessoa no sentido jurídico, como também as dotadas de personalidade, como certasorganizações ou coletividades. O direito não existe senão entre indivíduos. Desta forma, os animais estão excluídos do reconhecimento pela norma civilista como sujeitos de direito, sendo-lhes atribuídas leis protetivas contra a crueldade, maus- tratos, destruição e extinção. Por outro lado, houve na história do Direito pessoas que não eram consideradas sujeitos de direitos e equiparadas a coisas: os escravos.163

Nos ensinamentos de Dimouli, o termo “sujeito” designa o ser humano pela sua capacidade de raciocinar e agir de acordo com sua vontade, o que lhe permite dominar as coisas e o mundo. Assim, o sujeito se transforma em elemento que domina os objetos e, nesta relação, exerce poder, o domínio da coisa. Por outro lado, não significa superioridade, tampouco que seja atributo natural do ser humano, pois é conferido pelo ordenamento jurídico, que pode reconhecer ou não a determinadas pessoas a qualidade de sujeito de direito. Convém destacar

161 RODRIGUES, Danielle Tetü. O direito & os animais: uma abordagem ética, filosófica e normativa. 2. ed. Curitiba: Jaruá, 2009. p. 186

162 AMARAL, Francisco. Direito Civil: Introdução. 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2014. p. 269.

163 MONTEIRO, Washington de Barros; PINTO, Ana Cristina de Barros Monteiro Franç a. Curso de Direito Civil 1: Parte Geral. 45. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. Disponível em:

<https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788502196124/cfi/0>. Acesso em: 20 maio 2018. Acesso restrito via Minha Biblioteca (Academia Judicial – TJSC). p. 77-79

que no Brasil, durante séculos, os escravos não eram sujeitos, e sim objetos de direito, situação que perdurou até o final do século XIX.164

Segundo Carlos Roberto Gonçalves, uma relação jurídica é aquelada vida social regulada pelo direito e estabelecida entre indivíduos, uma vez que o ordenamento jurídico tem por finalidade regular os interesses das pessoas. O sujeito da relação jurídica é sempre o ser humano. Aduz que os animais, ainda que mereçam proteção, não são considerados sujeitos de direitos e, consequentemente, não têm capacidade para adquirir direitos.165

Em direção oposta aos doutrinadores acima citados, Fábio Ulhoa Coelho entende que sujeito e pessoa não são sinônimos. Para o doutrinador, sujeito de direito é o titular dos interesses em sua forma jurídica. Entretanto, a lei reconhece direitos a certos agregados patrimoniais que não são pessoas (espólio e massa falida, por exemplo). Desta forma, sujeito e pessoa não são sinônimos, sujeito de direito é gênero e pessoa, espécie. Toda pessoa é um sujeito de direito, mas nem todo sujeito de direito é uma pessoa.166

Amaral filia-se a corrente de que o termo pessoa e ser humano não coincidem, e aduz que somente na linguagem coloquial o termo pessoa determina o ser humano. Em contrapartida, no sentido jurídico é o ser com personalidade jurídica, com aptidão para titularizar direitos e deveres. Cabe ressaltar que no direito romano o reconhecimento da personalidade jurídica exigia que o indivíduo fosse livre (não escravo), cidadão (não estrangeiro) e chefe de família. Nesta senda, pessoa e ser humano não coincidiram. Assim, pessoa é o sujeito de direito criado pelo ordenamento jurídico.167

Complementando os dizeres de Francisco Amaral, assevera César Fiuza que a personalidade não é uma qualidade natural, e sim um atributo do Direito positivo, pois entidades que não os humanos a recebem. No passado, houve seres humanos (escravos) aos quais o Direito não atribuía personalidade, eram considerados coisas frente ao ordenamento jurídico.168

As pessoas (físicas ou jurídicas), embora titulares de direitos e obrigações, podem não estar aptas a exercê-los. A incapacidade pode resultar de falta de discernimento para compreender os próprios direitos, interesses ou deveres. Dessa forma, o legislador traz a figura

164 DIMOULIS, Dimitri. Manual de introdução ao estudo do direito. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2013, p. 215

165 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Parte Geral. v. 1. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. Disponível em: < https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788547212919/cfi/0>. Acesso em: 21 maio 2018. Acesso restrito via Minha Biblioteca (Academia Judicial – TJSC). p. 97-98.

166 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil: Parte geral. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2016. p. 153.

167 AMARAL, Francisco. Direito Civil: Introdução. 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2014. p. 270-271. 168 FIUZA, César. Direito Civil: Curso completo. 17. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 208

da representação dos incapazes em juízo. Assim, na visão de Danielle Rodrigues, poder-se-ia aplicar analogamente aos não humanos a figura da representação, atribuindo-os a titularidade de sujeitos de direito, dado que a lei permitiu que seus direitos sejam defendidos e representados por órgãos competentes (Ministério Público).169

Merece atenção os dizeres de Amaral acerca da categoria jurídica dos não humanos. Os animais não são sujeitos de direito, tampouco são coisas. Contemporaneamente, discute-se se os animais podem ser sujeitos de direito e de interesses, considerando-se a elaboração pela Unesco da Declaração Universal dos Direitos do Animal170 em 15 de outubro de 1978.171

Nesse contexto, é imperioso trazer ao estudo o tratamento conferido aos não humanos como “coisa” ou propriedade das pessoas pela norma civilista, características que serão expostas a seguir.

4.1.2 Animal não humano como “coisa”/propriedade

O Direito Civil clássico, pós-Revolução Francesa, preconiza que a natureza e seus componentes, incluídos os seres vivos não humanos, são coisas ou bens que podem ser usados ou destruídos ao arbítrio daquele que tiver a sua posse ou propriedade. Dessa maneira, os animais recebem tratamento igual a qualquer outro bem que faça parte do patrimônio de determinada pessoa.172 Esta assertiva decorre do processo histórico de formação do antropocentrismo jurídico, na medida em que submete os não humanos ao regime de propriedade, considerando-os “coisas” e, desta forma, regidos no âmbito do direito privado (direito real ou das coisas).173

169 RODRIGUES, Danielle Tetü. O direito & os animais: uma abordagem ética, filosófica e normativa. 2. ed. Curitiba: Jaruá, 2009. p. 186-188

170 A UNESCO aprovou em 1978, em Paris, a DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO ANIMAL, seguindo a mesma trilha filosófica da Declaração Universal dos Direitos do Homem, votada a 30 anos pela ONU, o Dr. Georges Heuse, secretário-geral do Centro Internacional de Experimentação de Biologia Humana e cientista ilustre, foi quem propôs esta Declaração. O Brasil é signatário. “Art. 1º Todos os animais nascem iguais perante a vida e têm os mesmos direitos à existência. Art. 2º O homem, como a espécie animal, não pode exterminar outros animais ou explorá-los violando este direito; tem obrigação de colocar os seus conhecimentos a serviço dos animais. [...]”. (UFMT, 2018).

171 AMARAL, Francisco. Direito Civil: Introdução. 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2014. p. 270-271. 172 GORDILHO, Heron José de Santana, 2003 apud FREITAS, Renata Duarte de Oliveira. Animais não

humanos: os novos sujeitos de direito. Revista Brasileira de Direito Animal. v.8, n.13 (maio/ago. 2013), Salvador/BA. p. 101 a 130.

173 FAUTH. Juliana de Andrade. Sujeitos de Direitos Não Personalizados e o Status Jurídico Civil dos Animais Não Humanos. 2016. 168 p. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade Federal da Bahia,

A concepção de não humanos como propriedade remonta há milhares de anos. Historicamente, a domesticação e a posse dos animais estão ligadas ao desenvolvimento das ideias de propriedade e dinheiro. Cabe destacar que a palavra cattle (gado) é oriunda da mesma raiz da palavra capital, sendo sinônimas em muitas línguas europeias. As palavras espanholas ganadería e ganado significam propriedade e gado, respectivamente. A palavra latina para dinheiro é pecúnia, que deriva de pecus, que expressa “gado”. Assim, na cultura ocidental a condição de animais como propriedade é importante, na medida em que o direito de propriedade recebe um status especial, sendo considerado um dos mais importantes direitos das pessoas.174

No Código Civil de 2002 está presente a visão de que o animal possui o status jurídico de coisa, transformando-o em bem passível de expressão econômica (objeto de apropriação). É o que ocorre, por exemplo, da intepretação conjunta dos artigos 82 e 1.228 do referido diploma legal.175

Art. 82. São móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social. Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.176

Para corroborar com o acima exposto, convém trazer o prescrito no art. 936 do CC/2002 que, ao dispor sobre a responsabilidade civil do dono ou detentor do animal, traz, da mesma forma, a concepção de que o animal é objeto do direito de propriedade. De semelhante maneira, o art. 1.445 do mesmo diploma legal estabelece que os animais podem ser objeto de penhor, que como regra incide sobre bens móveis.177

Art. 936. O dono, ou detentor, do animal ressarcirá o dano por este causado, se não provar culpa da vítima ou força maior.

Art. 1.445. O devedor não poderá alienar os animais empenhados sem prévio consentimento, por escrito, do credor.178

174 FRANCIONE. Gary T. Introdução aos Direitos Animais. São Paulo: Unicamp, 2013. p. 117

175 FAUTH. Juliana de Andrade. Sujeitos de Direitos Não Personalizados e o Status Jurídico Civil dos Animais Não Humanos. 2016. 168 p. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade Federal da Bahia,

Salvador, 2016. Disponível em: <https://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/20802>. Acesso em: 21 maio 2018. 176 BRASIL, 2002. Código Civil, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/CCivil_03/Leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 19 maio 2018.

177 LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008. p. 483

178 BRASIL, 2002. Código Civil, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em:

A tentativa de proteção aos não humanos não lhes retiram a posição de coisa. Os animais silvestres são protegidos por meio da Lei nº 5.197/67. Não obstante, são apontados como propriedade do Estado, de maneira que a sua utilização, perseguição, destruição, caça ou apanha constituem uma infração contra os direitos da coletividade, de maneira a prevalecer a compreensão de que sejam uma “coisa” com proteção especial. É o que se depreende no art. 1º da referida lei, in verbis:179

Art. 1º Os animais de quaisquer espécies, em qualquer fase do seu desenvolvimento e que vivem naturalmente fora do cativeiro, constituindo a fauna silvestre, bem como seus ninhos, abrigos e criadouros naturais são propriedades do Estado, sendo proibida a sua utilização, perseguição, destruição, caça ou apanha.180

Paulo Antunes, por sua vez, entende que o animal é um bem jurídico sui generis. Embora o não humano seja objeto de propriedade, é dotado de prerrogativas legais que limitam o direito do proprietário, sendo protegido por leis específicas. Isso ocorre, por exemplo, quando há punição na esfera penal do bem móvel (animal), oponível a qualquer pessoa e até mesmo contra o proprietário em caso de maus-tratos.181

Após a compreensão dos conceitos de sujeito e objeto de direito, e do tratamento conferido aos não humanos como coisa/propriedade pela norma brasileira, passa-se a tecer considerações a respeito de mudanças legislativas ocorridas em outros países, de modo a conferir aos animais um novo status jurídico.