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3 PROTEÇÃO AOS ANIMAIS NÃO HUMANOS NO BRASIL

3.2 A PROTEÇÃO NA ORDEM JURÍDICA

O legislador constituinte assegura o dever de cuidado com os animais por meio do art. 225, §1º, VII, e ao vedar que os não humanos sejam submetidos à crueldade, os reconhece como seres sencientes (capazes de sentir dor e sofrimento). Após 10 anos da promulgação da Carta Magna, o legislador ambiental, ao tipificar como crime as práticas cruéis contra animais (art. 32 da Lei 9.605/98), igualmente os reconhece como criaturas sensíveis92. Considerando que o ordenamento jurídico brasileiro confere proteção aos não humanos por meio dos Direitos Constitucional e Ambiental, principalmente, a presente seção tratará da tutela nestes âmbitos.

3.2.1 Na esfera constitucional

A Constituição da República Federativa do Brasil estabelece um regime especial de proteção aos animais93, dispondo no art. 225, §1º, VII:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: [...]

VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os

animais a crueldade.94

Convém trazer o conceito de crueldade, que segundo Sznick são as práticas que exponham não humanos à tortura, à tirania, à mutilação de órgãos, ao emprego de meios dolorosos, ao espancamento e a atos omissivos: não alimentar, curar, deixar de prestar socorro em atropelamento, mantê-lo em local insalubre ou anti-higiênico.95

A proteção contra atos de crueldade e que provoquem a extinção das espécies fica evidente no dispositivo de ordem constitucional supramencionado. Segundo Levai, dado a sua

92 LEVAI, Laerte Fernando. Direito animal: uma questão de princípios. Revista Diversitas (USP). 2016. n.5. Disponível em: <encurtador.com.br/kyCFZ>. Acesso em: 3 jun. 2018.

93 ANTUNES, Paulo de Bessa. Manual de Direito Ambiental. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2015. Disponível em: <encurtador.com.br/mzBKS>. Acesso em: 17 maio 2018. Acesso restrito via Minha Biblioteca (Academia Judicial – TJSC). p. 292.

94 BRASIL. (Constituição, 1988). Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 outubro de 1988. Disponível em: <encurtador.com.br/bfLYZ>. Acesso em: 17 maio 2018. Grifo nosso.

95 SZNICK, 2001 apud MÓL, Samylla; VENANCIO, Renato. A proteção jurídica aos animais no Brasil: uma breve história. Rio de Janeiro: FGV, 2014. p. 27-28

importância, a redação foi incorporada nas Constituições Estaduais e na Lei de Crimes Ambientais96.97 A título de exemplo, traz-se o dispositivo que trata da proteção aos não humanos na Constituição do Estado de Santa Catarina:

Art. 182. Incumbe ao Estado, na forma da Lei: [...]

III - proteger a fauna e a flora, vedadas as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem extinção de espécie ou submetam animais a tratamento cruel; [...]98

Importante destacar que o legislador constituinte não delimitou a fauna a ser protegida da extinção ou de atos de crueldade. Assim, entende-se pela incumbência do Poder Público e da coletividade na proteção da fauna de forma ampla, não somente a silvestre, mas também a doméstica, ainda que esta não corra o risco de extinção. É oportuno destacar que se entende como animal doméstico aquele que não vive em seu habitat natural, mas em harmonia com as pessoas, estabelecendo com estas um vínculo de dependência para sobreviver.99

No entendimento de Marcelo Rodrigues, a proteção constitucional expressa no art. 225, §1º, VII da CRFB/88, está alinhada a uma visão biocêntrica do meio ambiente, que respeita a vida em todas as suas formas. O autor explica que o legislador constituinte se preocupou não somente na tutela da fauna na condição de microbem ambiental100 essencial à preservação do equilíbrio ecológico, mas também com práticas que submetam os animais à crueldade, salientando que o bem-estar dos animais não tem relação com a função ecológica por eles desempenhada.101

Da redação do art. 225, caput da CRFB/88, percebe-se que o constituinte classificou o meio ambiente como bem de uso comum do povo, atribuindo a sua gestão tanto ao Poder

96 BRASIL, Lei n. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre as sanções penais e administrativas

derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9605.htm>. Acesso em: 2 jun. 2018.

97 LEVAI, 2004 apud ROSSI, Rutinéia. Inventário dos Direitos dos Animais e Ecologia Profunda. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016. p. 68

98 SANTA CATARINA, Constituição do Estado de Santa Catarina de 1989, de 5 de outubro de 1989. Disponível em: <encurtador.com.br/oAIM9>. Acesso em: 18 maio 2018.

99 FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 254-259

100 Microbem ambiental: todo e qualquer elemento constituinte e integrante do meio ambiente. Ao interagirem, formam o meio ambiente e, consequentemente, o macrobem ambiental. Por serem individualmente considerados, muitos possuem tratamentos legislativos próprios, tornando-os verdadeiros bens ambientais individuais.

(ÂMBITO JURÍDICO, 2018).

101 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Direito Ambiental Esquematizado. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. Disponível em: <https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788547220655/cfi/111!/4/4@0.00:46.1>. Acesso em: 18 maio 2018. Acesso restrito via Minha Biblioteca (Academia Judicial – TJSC). p. 110-111.

Público como à coletividade. Sirvinskas expõe que a divisão da responsabilidade em cuidar do meio ambiente, mostra-se de relevante importância neste momento da consciência ecológica internacional. O Texto Constitucional busca proteger o meio ambiente para as presentes e futuras gerações, como princípio da ética e da solidariedade. A continuidade da vida depende da solidariedade da presente geração, no que diz com o destino das futuras gerações, que para o autor se trata da responsabilidade intergeracional.102

Assim, com o advento da CRFB/88, fica evidente que os não humanos adquiriram, senão direitos, proteção contra qualquer ato de crueldade. O meio ambiente é classificado pela Carta da República como bem difuso, ou seja, pertence a toda coletividade, nele inserido a fauna. É dever de todos protege-lo e defende-lo, tendo como aliado, nesta relevante missão, o Ministério Público, ao qual é atribuída a função de tutelar juridicamente os animais, representando-os103, de maneira que ocorra um avanço em outros ramos do Direito (civil, por exemplo), reconhecendo-os pelo seu valor inerente como seres sencientes.

3.2.2 No âmbito do Direito Ambiental

No ano de 1934, como um dos marcos na proteção aos não humanos, é aprovado o Decreto n. 24.645 que estabelecia medidas de proteção aos animais com a definição de 31 atitudes104 que poderiam ser consideradas maus-tratos.105 Frise-se que há mais de 80 anos o referido Decreto atribui ao Ministério Público a função de substituto processual dos animais, evidenciando que não devem ser tratados como objetos, coisas ou bens patrimoniais, uma vez que são criaturas sensíveis e merecedoras de consideração moral.106

102 SIRVINSKAS, Luís Paulo. Manual de Direito Ambiental. 15ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 163 e 164 103 MÓL, Samylla; VENANCIO, Renato. A proteção jurídica aos animais no Brasil: uma breve história. Rio de Janeiro: FGV, 2014. p. 30

104 “Art.3º Consideram-se maus tratos: I - praticar ato de abuso ou crueldade em qualquer animal; II - manter animais em lugares anti-higiênicos ou que lhes impeçam a respiração, o movimento ou o descanso, ou os privem de ar ou luz; III - obrigar animais a trabalhos excessívos ou superiores ás suas fôrças e a todo ato que resulte em sofrimento para deles obter esforços que, razoavelmente, não se lhes possam exigir senão com castigo; IV - golpear, ferir ou mutilar, voluntariamente, qualquer órgão ou tecido de economia, exceto a castração, só para animais domésticos, ou operações outras praticadas em beneficio exclusivo do animal e as exigidas para defesa do homem, ou no interêsse da ciência; V - abandonar animal doente, ferido, extenuado ou mutilado, bem como deixar de ministrar-lhe tudo o que humanitariamente se lhe possa prover, inclusive assistência veterinária; VI - não dar morte rápida, livre de sofrimentos prolongados, a todo animal cujo exterminio seja necessário, parar consumo ou não; VII - abater para o consumo ou fazer trabalhar os animais em período adiantado de gestação; [...]” (BRASIL, 1934)

105 ANTUNES, Paulo de Bessa. Manual de Direito Ambiental. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2015. Disponível em: <encurtador.com.br/mzBKS>. Acesso em: 3 jun. 2018. Acesso restrito via Minha Biblioteca (Academia Judicial – TJSC). p. 292.

106 LEVAI, Laerte Fernando. Direito animal: uma questão de princípios. Revista Diversitas (USP). 2016. n.5. Disponível em: <encurtador.com.br/elC46>. Acesso em: 3 jun. 2018.

No plano infraconstitucional é percebido um avançona proteção aos não humanos, com a edição da Lei n. 9.605 de 1998, que eleva à categoria de crime as condutas humanas que ocasionem maus-tratos e crueldade em relação aos animais:107

Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos:

Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.

§ 1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos.

§ 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal.108

As condutas descritas no dispositivo normativo supracitado, passíveis de punição podem assim ser conceituadas:

a) Praticar atos de abuso: usar mal ou inconvenientemente, como exigir trabalho excessivo do animal, ou lançar galo em rinha sabendo, que, mesmo vencedor, ele sairá ferido, apenas para satisfazer o desejo de apostadores.

b) Maus-tratos: significa causar danos, ultraje, insulto. É sinônimo de tratamento inadequado ao animal, segundo as necessidades específicas de cada espécie. Exemplo: manter um cachorro permanentemente em local fechado, pequeno, sem ventilação e limpeza;

c) Ferir: lesar o animal, como no caso da ação que exagera ao açoitar um burro, causando-lhe ferimento;

d) Mutilar: retirar dolosamente parte do corpo do animal, geralmente um membro.109

Em consonância com o acima exposto, cabe mencionar a aplicação dos dispositivos constitucional (art. 225, §1º, VII) e ambiental (art. 32, Lei 9.605/98) em decisão judicial nos autos de um Mandado de Segurança no Rio Grande do Sul, em que é assegurado o interesse do animal ao não sofrimento, reconhecendo-o como ser senciente.

Por meio do MS n. 2006.71.04.002554-3/RS, pretendia-se a concessão de ordem para a restituição e utilização de um chimpanzé em exibições públicas. O juiz federal Eduardo Vandré Oliveira Lema Garcia, citando Peter Singer, em sua decisão fixou as seguintes premissas para o julgamento do caso:110

107 MÓL, Samylla; VENANCIO, Renato. A proteção jurídica aos animais no Brasil: uma breve história. Rio de Janeiro: FGV, 2014. p. 29-30

108 BRASIL, Lei n. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9605.htm>. Acesso em: 18 maio 2018

109 THOMÉ, Romeu. Manual de Direito Ambiental. 6. ed. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 699

110 LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008. p. 526-527

(i) o animal tem legítimo interesse de não sofrer; (ii) esse interesse é protegido pela Constituição da República (art. 225, §1º, VII) e pela Lei n. 9.605, de 1998; (iii) a forma de reparar essa violação é a apreensão do animal para que ele seja reintegrado à natureza ou posto à disposição de um estabelecimento capaz de lhe conceder um tratamento minimamente adequado (art. 25, §1º, da Lei 9.605, de 1998).111

Impende mencionar que a regulamentação do inciso VII do §1º do art. 225 da CRFB/88 encontra-se nos artigos 29 a 37 da Lei de Crimes Ambientais. A redação deste dispositivo abarca todos os animais, independente da função ecológica ou risco de extinção. Os animais domésticos e os selvagens são tutelados por diferentes razões. Estes são protegidos de captura, destruição, comercialização desenfreada (que os tornam particularmente vulneráveis), enquanto aqueles, de atos de crueldade e abandono112.

Fundamental destacar que a Lei de Crimes Ambientais protege espécies da fauna silvestre ou aquática, domésticas e domesticadas, nativas, exóticas ou em rota migratória. Sirvinskas conceitua fauna como o conjunto de animais próprios de um país ou região que vivem em determinada época.113

Segundo a Lei de Proteção da Fauna (Lei n. 5.197/67), os animais silvestres são de propriedade do Estado, conforme preceitua o artigo 1º. “Os animais de quaisquer espécies, em qualquer fase do seu desenvolvimento e que vivem naturalmente fora do cativeiro, constituindo a fauna silvestre, bem como seus ninhos, abrigos e criadouros naturais são propriedades do Estado, sendo proibida a sua utilização, perseguição, destruição, caça ou apanha”114,

prevalecendo a ideia que os animais silvestres são uma “coisa” com proteção especial.115

A Lei de Crimes Ambientais é um instrumento normativo que visa proteger todas as espécies de não humanos e representa um avanço àqueles que buscam defende-los contra atos de crueldade e maus tratos.