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A im(possibilidade) de reconhecimento no ordenamento jurídico brasileiro dos animais não humanos como sujeitos de direito

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Academic year: 2021

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LUCIANA APARECIDA SCHOSSLER

A (IM)POSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO DOS ANIMAIS NÃO HUMANOS

COMO SUJEITOS DE DIREITO

Florianópolis 2018

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LUCIANA APARECIDA SCHOSSLER

A (IM)POSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO DOS ANIMAIS NÃO HUMANOS

COMO SUJEITOS DE DIREITO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Graduação em Direito, da Universidade do Sul de Santa Catarina, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito.

Orientador: Prof. Jeferson Puel, Msc.

Florianópolis 2018

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Com todo o meu amor, dedico este trabalho a todos os animais que sofrem com a opressão das pessoas, com o profundo desejo de um mundo mais justo e de uma efetiva proteção jurídica aos não humanos.

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AGRADECIMENTOS

Ao Professor Jeferson Puel que prontamente aceitou a orientação deste trabalho (em que pese ser um tema “espinhoso”), pela atenção e ensinamentos.

Aos colegas e amigos da Academia Judicial do Poder Judiciário de Santa Catarina pelo apoio e incentivo, e aos demais amigos que de forma direta ou indireta me auxiliaram.

Aos integrantes do projeto “Cuidadores dos Gatos do Parque” e às médicas veterinárias Célia e Ivana, por caminharem ao meu lado na missão de aliviar o sofrimento e garantir dignidade aos não humanos.

E como estou absolutamente convencida de que os não humanos, todos eles, sentem amor de maneira parecida com as pessoas, agradeço-os por me ensinarem a amar e respeitar o “diferente”. Aos que ainda estão nesta vida terrena sob os meus cuidados e aos que já partiram, o meu mais sincero muito obrigada por todos os momentos de alegria e amor compartilhados. E como escreveu Daniel Braga Lourenço “com tintas indeléveis, pintei os seus retratos no meu coração”.

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“Desde que, adulto, comecei a escrever romances, tem-me animado até hoje a ideia de que o menos que um escritor pode fazer, numa época de atrocidades e injustiças como a nossa, é acender a sua lâmpada, fazer luz sobre a realidade de seu mundo, evitando que sobre ele caia a escuridão, propícia aos ladrões, aos assassinos, aos tiranos. Sim, segurar a lâmpada, a despeito da náusea e do horror. Se não tivermos uma lâmpada elétrica, acendamos o nosso toco de vela ou, em último caso, risquemos fósforos repetidamente, como um sinal de que não desertamos nosso posto”. (Érico Verissimo, In: Solo de Clarineta). “Tudo o que vive é o teu próximo”. (Mahatma Gandhi).

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RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo verificar a (im)possibilidade de reconhecimento, pelo ordenamento jurídico brasileiro, dos animais não humanos como sujeitos de direito. Utiliza-se, para isso, o método dedutivo, de procedimento histórico e monográfico, com resposta ao problema da pesquisa de natureza qualitativa e técnica de pesquisa bibliográfica. Para uma melhor contextualização do tema, aborda-se o histórico da exploração animal, as premissas do especismo, o nascimento do movimento pelos direitos dos animais e seus princípios norteadores. Apresenta-se a relação dos animais (humanos e não humanos) com a Natureza e a proteção dos não humanos no ordenamento jurídico brasileiro, nos âmbitos constitucional e ambiental. Explora-se o impacto ambiental gerado pela criação de animais para alimentação, a qual gera sofrimento não só aos não humanos, mas também às pessoas envolvidas nessa prática, especialmente no que diz respeito à saúde do trabalhador da indústria de abate. Apontam-se os conceitos de sujeito e objeto de direito e, na sequência, o status de coisa/propriedade conferido aos não humanos pela norma civilista. Mostram-se algumas mudanças legislativas realizadas por outros países no que concerne ao reconhecimento de direitos aos não humanos. Por fim, analisam-se decisões judiciais acerca do assunto. Conclui-se que, embora não haja o reconhecimento dos não humanos como sujeitos de direito em norma positivada no âmbito nacional, há projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional que visam dar a eles um novo status jurídico, bem como julgados que reconhecem os animais como seres sencientes e dignos de consideração moral, com o interesse jurídico de, ao menos, não sofrer.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO... 12

2 O DIREITO E OS ANIMAIS NÃO HUMANOS ... 14

2.1 HISTÓRICO DA EXPLORAÇÃO ANIMAL ... 14

2.2 PENSAMENTO ESPECISTA ... 18

2.3 NASCIMENTO DO MOVIMENTO PELOS DIREITOS DOS ANIMAIS ... 21

2.4 PRINCÍPIOS ... 25

3 PROTEÇÃO AOS ANIMAIS NÃO HUMANOS NO BRASIL ... 30

3.1 A NATUREZA E OS ANIMAIS (HUMANOS E NÃO-HUMANOS) ... 30

3.2 A PROTEÇÃO NA ORDEM JURÍDICA ... 34

3.2.1 Na esfera constitucional ... 34

3.2.2 No âmbito do Direito Ambiental ... 36

3.3 IMPACTOS NO MEIO AMBIENTE ... 38

3.4 ACIDENTES DE TRABALHO NA INDÚSTRIA ALIMENTÍCIA ... 43

4 A (IM) POSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO DOS ANIMAIS NÃO HUMANOS COMO SUJEITOS DE DIREITO ... 47

4.1 DIREITO CIVIL: O STATUS JURÍDICO DOS NÃO HUMANOS ... 47

4.1.1 Sujeitos e objetos de direito ... 48

4.1.2 Animal não humano como “coisa”/propriedade ... 50

4.2 OS NÃO HUMANOS NO DIREITO INTERNACIONAL ... 52

4.3 A (IM) POSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO DOS ANIMAIS NÃO HUMANOS COMO SUJEITOS DE DIREITO ... 55

4.4 DECISÕES JUDICIAIS A RESPEITO DO TEMA ... 65

4.4.1 Habeas Corpus n. 833085/2005 – Salvador/BA e expediente P-72.254/15 (Mendoza-Argentina) ... 66

4.4.2 Liminar - Guarda compartilhada de cão - Separação judicial - 2ª vara de Família e Sucessões de Jacareí/SP ... 68

4.4.3 Agravo de Instrumento – Guarda e visitas de animal de estimação – Separação judicial - Voto Digital n. 20.626 - 10ª Câmara Direito Privado do Tribunal de SP ... 69

4.4.4 Vaquejada - Ações Diretas de Inconstitucionalidades n. 4.983 e n. 5.728 ... 70

5 CONCLUSÃO ... 73

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1 INTRODUÇÃO

O movimento pelos direitos dos animais propaga-se pelo mundo. As sociedades evoluem e valores e atitudes que eram culturalmente aceitas podem ser questionados, fazendo surgir novos regramentos. A proteção aos não humanos é contemplada no ordenamento jurídico brasileiro, sobretudo por meio da Constituição da República Federativa do Brasil e da Lei de Crimes Ambientais. No entanto, considerando as várias maneiras de exploração e subjugação, referidas normas acabam, por vezes, não tendo alcance suficiente.

A apresentação do tema merece destaque na medida em que o Direito não pode permanecer inerte frente à evolução da sociedade e ao surgimento de novas concepções, sendo necessário que as leis acompanhem esse processo. Em que pese a atenuação das crueldades e maus tratos aos não humanos pela Carta Magna e pela Lei de Crimes Ambientais, não há previsão normativa civilista que os retire da classificação de objeto de direito (coisa). Diante dessa omissão, mostra-se oportuno realizar o presente estudo, com a finalidade de obter resposta acerca da possibilidade de o ordenamento jurídico brasileiro reconhecer os não humanos como sujeitos de direito, livrando-os do estigma da coisificação.

A presente pesquisa tem como objetivo principal demonstrar a possibilidade de reconhecimento dos não humanos como sujeitos de direito pelas normas brasileiras. Os objetivos específicos versam sobre as seguintes questões: verificar o direito dos não humanos em sua evolução histórica e princípios mais relevantes; apontar a proteção dos não humanos no ordenamento jurídico brasileiro contemporâneo; demonstrar se é possível reconhecer, pela norma, os não humanos como sujeitos de direito. Almejando um melhor entendimento do tema, o trabalho foi dividido em três capítulos teóricos.

O primeiro apresentará a evolução histórica da exploração animal, as premissas do especismo, o nascimento do movimento pelos direitos dos animais e os princípios norteadores dos direitos dos não humanos.

O segundo capítulo demonstraa relação dos animais (humanos e não humanos) com a natureza e dispõe sobre a proteção dos não humanos no ordenamento jurídico brasileiro. Devido à importância para a pesquisa, serão trazidos à discussão os impactos no meio ambiente resultantes da criação de animais para alimentação e os acidentes/doenças de trabalho causados ao trabalhador pela indústria de abate de animais.

No terceiro capítulo serão apresentados os conceitos de sujeitos e objetos de direito e o status de coisa/propriedade dos não humanos. Faz-se oportuno trazer algumas mudanças legislativas realizadas em outros países no que concerne ao reconhecimento de direitos aos não

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humanos. Por fim, explora-se o posicionamento de doutrinadores acerca da possibilidade de reconhecimento pelo ordenamento jurídico brasileiro dos não humanos como sujeitos de direito e decisões judiciais acerca do assunto.

Para a pesquisadora, que atua de forma independente no voluntariado animal há mais de seis anos e iniciou um projeto com gatos abandonados denominado “Cuidadores do Parque”, escrever sobre a problemática animal transcende os objetivos do estudo acadêmico. O trabalho realizado, com recursos próprios e de outros voluntários, compreende alimentação, atendimento veterinário, adoção e castração para impedir a superpopulação. Pela atuação em defesa do bem-estar animal, no ano de 2017 a pesquisadora teve o reconhecimento pelos serviços prestados ao Município de Florianópolis, por meio da Câmara Municipal e de seu Prefeito.

Justificativas não faltam para defender os não humanos. Talvez a mais importante seja o fato de que são seres sencientes. Isso quer dizer que são capazes de sentir sensações e sentimentos de forma consciente (sofrer dores físicas e psicológicas, sentir prazer e felicidade). Essa capacidade é suficiente para lhes conferir algum interesse, no mínimo, o de não sofrer. Em respeito a todos os seres dotados de senciência, há mais de dez anos a pesquisadora excluiu carnes de sua dieta e há um ano suprimiu da alimentação qualquer produto de origem animal.

O interesse autoral pelo tema está ligado à dificuldade de se compreender o fato de que se dedique tanto amor e cuidados aos animais de companhia (cães e gatos, por exemplo) e, por outro lado, se mantenha a prática de usar outros animais como matéria para alimentação, vestuário, higiene, limpeza, medicamentos (que causam imenso sofrimento nos laboratórios de pesquisa), bem como para espetáculos cruéis de entretenimento. A maioria dos animais maltratados pelo homem está nas fazendas de criação (carne, laticínios e ovos), sofrendo desde o nascimento até a sua morte. Além disso, ingerir carnes e produtos de origem animal causa sérios impactos ambientais.

O presente trabalho monográfico serviu-se do método dedutivo de abordagem, pois parte da explanação da origem histórica da exploração animal, com o intuito de mostrar a necessidade de uma mudança no estatuto moral e jurídico relacionado aos não humanos, tendo ainda natureza qualitativa. Além da metodologia monográfica, é utilizado o método de análise histórica, uma vez que, para a completa compreensão do tratamento conferido aos não humanos, é necessário estudar as raízes históricas e filosóficas. A técnica de pesquisa é bibliográfica, com o uso de doutrinas, leis, artigos científicos, periódicos, sites oficiais, documentários e julgados.

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2 O DIREITO E OS ANIMAIS NÃO HUMANOS

Basta olhar diretamente nos extraordinários olhos dos Animais e enxergar a beleza e o objetivo da vida; viver! Danielle Tetu Rodrigues

O movimento pelos direitos dos animais caracteriza-se como consequência de outros movimentos civis pelo reconhecimento de direito das minorias e grupos oprimidos, a exemplo do mais clássico deles, o movimento negro, que luta contra o preconceito e a discriminação baseado na raça.1

Esse capítulo traz um breve relato histórico do domínio e a da exploração dos não humanos, as premissas culturais do especismo, o nascimento do movimento pelo direito dos animais e princípios que norteiam o direito dos animais.

2.1 HISTÓRICO DA EXPLORAÇÃO ANIMAL

As raízes históricas do pensamento ocidental em relação aos animais não humanos são originadas em duas tradições: o judaísmo e a Antiguidade Grega. Essas raízes convergem ao cristianismo e se tornam o pensamento dominante na Europa, propagando-se para a maioria das sociedades contemporâneas. As atitudes das gerações passadas em relação aos não humanos estão ancoradas em pressupostos religiosos, filosóficos ou morais que agora se encontram superados.2

Sônia T. Felipe ensina que a tradição filosófico-religiosa asiática, nas doutrinas budista, hinduísta e jainista, estabelece como fundamento a compaixão com todas as espécies de vida animal.3 Entretanto, as principais religiões do Ocidente (judaísmo e cristianismo) justificam a subjugação dos animais, baseadas na interpretação dominante da Bíblia (Gênesis), de que Deus autorizou os humanos a dominá-los.4 Para Nussbaum, nas mais relevantes religiões monoteístas, há o rompimento da ligação entre humanos e não humanos, o que justifica a dominação do primeiro sobre o segundo.5

1 LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008. p. 20

2 SINGER, Peter. Libertação animal. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. p. 270

3 FELIPE, Sônia T. Ética e experimentação animal: fundamentos abolicionistas. 2. ed. rev. Florianópolis: UFSC, 2014. p. 181

4 CHUAHY, Rafaella. Manifesto pelos Direitos dos Animais. Rio de Janeiro: Record, 2009. p. 11 5 NUSSBAUM, Martha C. (2007) apud CARMAN, María. Las Fronteras de lo humano: Cuando la vida humana pierde valor y la vida animal se dignifica. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Siglo XXI, 2017. p. 155. Tradução nossa.

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O cristianismo absorveu as concepções judaicas e gregas no tocante aos animais, nasceu e tornou-se poderoso sob o Império Romano. O caráter do cidadão romano era fortalecido pelos assim chamados “jogos”, que consistiam em assistir a morte, de seres humanos e animais, como uma forma normal de entretenimento (neste caso, pessoas e animais se igualam como vítimas). Os romanos demostravam grande consideração pelo dever público, justiça e até pela bondade com os outros, mas havia um limite preciso para esses sentimentos morais. Quando o ser (animais e alguns seres humanos) se situava fora da esfera de consideração moral, a imposição do sofrimento era considerada entretenimento.6

Além das religiões judaico-cristãs, o pensamento ocidental em relação ao modo como os animais são tratados tem raiz histórica na Antiguidade Grega. A escola mais importante foi a de Platão e seu discípulo Aristóteles (384-322 a.C). Aristóteles desenvolveu a ideia de que o cosmo seria colocado à disposição do homem. Para o pensador impera a supremacia do ser humano sobre a natureza e sobre todos os outros seres, que estariam a serviço do homem.7

O filósofo grego não nega a natureza animal do homem, definindo-o como um “animal racional”, mas esta característica, por si só, não é suficiente para gerar igualdade de tratamento em relação aos não humanos. Desse modo, a razão exerce papel fundamental na elevação da categoria do humano e consequente rebaixamento do que lhe é distinto.8

Para Aristóteles não se deve infligir maus tratos aos animais (estragar, ferir ou mutilar), não por se importar com o sofrimento e a dor ocasionados, mas sim, porque são propriedades do homem livre e acarretaria dano ao patrimônio. Mulheres, escravos e crianças se encontram na mesma categoria dos não humanos, ou seja, considerados patrimônio “masculino”, uma vez que desprovidos de racionalidade (liberdade de se autodeterminar). Não há qualquer dever moral ou legal de não violência com os animais, somente importando a preservação do patrimônio.9

Aristóteles acreditava que alguns homens eram escravos por natureza, e ainda que capazes de sentir prazer e dor como qualquer outro ser, eram considerados inferiores ao homem

6 SINGER, Peter. Libertação animal. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. p. 276-277

7 RODRIGUES, Danielle Tetü. O direito & os animais: uma abordagem ética, filosófica e normativa. 2. ed. Curitiba: Jaruá, 2009. p. 40.

8 LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008. p. 68.

9 FELIPE, Sônia T. Antropocentrismo, Sencientismo e Biocentrismo: Perspectivas éticas abolicionistas, bem-estaristas e conservadoras e o estatuto de animais não-humanos. Revista Páginas de Filosofia, v. 1, n. 1, jan-jul/2009. p. 1-29. Disponível em: <encurtador.com.br/tDGU9>. Acesso em: 14 abr. 2018

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livre e tidos como um mero “instrumento vivo”. O escravo é alguém que “embora permaneça um ser humano também é um artigo de propriedade”.10

Assim, para o pensador, até mesmo entre os próprios humanos havia uma hierarquia de precedência a ser observada, em queos homens eram, por essência, superiores às mulheres, assim como os escravos deveriam viver para satisfazer os seus senhores11. Nesta ordem de ideias não é difícil deduzir o que Aristóteles pensava sobre os animais: são escravos do homem e bem útil a ser utilizado para suprir suas necessidades como fornecedores de matéria-prima, de modo que não tem outra finalidade que não a de servir o homem.12

Pode-se dizer que o pensamento dos filósofos sobre os não humanos está relacionado à maneira como consideram a razão e o sentimento. Para os que definiam o ser humano pela razão (capacidade de pensar e raciocinar), não havia comparação possível entre homens e animais. Para aqueles em que o ser humano era definido pela capacidade de sentir (alegria, sofrimento, amizade), era possível estabelecer comparações, uma vez que os animais também demonstravam vivenciar estes sentimentos.13

Alguns filósofos explicitaram sentimentos de compaixão e benevolência com os animais. É o caso de Pitágoras, que era vegetariano e incentivava seus seguidores a respeitar os animais.14 Destaca-se, ainda, o pensador grego Plutarco, que defendia não somente o fim da escravidão humana, mas também da escravidão animal. A educação dos jovens deveria ser pautada aos princípios da ética, priorizando o respeito à vida.15

No século XVIII, René Descartes concluiu que os animais não tinham consciência, deduzindo, desta forma, que seriam incapazes de sentir dor ou pensar, fortalecendo o entendimento cristão de que os animais são mental e espiritualmente vazios16. O “mecanicismo” proposto pelo iluminista supunha que os animais eram comparáveis a máquinas e poderiam ser utilizados sem clemência.17 Pensadores como Thomas Hobbes, John Locke e Immanuel Kant

10 SINGER, Peter. Libertação animal. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. p. 274-275.

11 LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008. p. 74-75.

12 DIAS, 2000 apud STEFANELLI, Lúcia Cristiane Juliato. O Direito em defesa dos animais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016. p. 9

13 MÓL, Samylla; VENANCIO, Renato. A proteção jurídica aos animais no Brasil: uma breve história. Rio de Janeiro: FGV, 2014. p. 14-15

14 ROSSI, Rutinéia. Inventário dos Direitos dos Animais e Ecologia Profunda. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016. p. 8-9.

15 LEVAI, Fernando Laerte. Direito dos Animais. Campos do Jordão: Mantiqueira, 2001. p. 138-139 16 CHUAHY, Rafaella. Manifesto pelos Direitos dos Animais. Rio de Janeiro: Record, 2009. p. 12.

17 ROSSI, Rutinéia. Inventário dos Direitos dos Animais e Ecologia Profunda. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016. p. 13

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acreditavam que os animais eram capazes de sentir dor, mas não de raciocinar, o que era considerado necessário para se possuir um estatuto moral e adquirir direitos.18

Por outro lado, a concepção antropocêntrica aristotélica encontrou em todas as épocas pensadores dissidentes, que elaboraram concepções antagônicas àquela que acabou por ser impressa na mente das pessoas. Essas vozes dissonantes desafiam e desafinam a tradição, de maneira a dar eco às “vozes do silêncio” e servem de inspiração àqueles que não desejam assinar a coautoria de uma tradição moral, tão tirânica em sua dominação da vida, que pode levar à ruína espécies de vida ao redor do planeta.19

Jeremy Bentham confrontou o mecanicismo proposto por Descartes, sob o fundamento de que os não humanos possuem um sistema nervoso com terminações portadoras de estímulo doloroso, desta maneira, capazes de sentir dor como as pessoas.20 Em resposta a Descartes, afirma Bentham: ‘Eu não posso saber se os animais têm inteligência, se os animais têm alma, mas posso saber se os animais sofrem. Isso é o essencial da questão’.21 Para Raquel

Loth cabe a seguinte indagação acerca da resposta de Bentham: “Por que essa concessão de ternura científica nos impressiona até hoje? É porque ela nos oferece um imperativo categórico, ao mesmo tempo afetivo e racional, para desistir da busca irrelevante pela afirmação das fronteiras”.22

Voltaire, outro filósofo que levava em consideração o bem-estar animal, respondeu à conclusão de Descartes de que os animais eram apenas máquinas, de modo que registrou no livro Dicionário filosófico: ‘Que ingenuidade, que pobreza de espírito, dizer que os animais são máquinas privadas de conhecimento e sentimento, que procedem sempre da mesma maneira, que nada aprendem, nada aperfeiçoam! [....]’.23

Considerando a exclusão dos não humanos da esfera de consideração moral pela maioria das pessoas, faz-se relevante trazer à discussão o pensamento especista, na perspectiva dos principais pensadores dos direitos dos animais.

18 CHUAHY, Rafaella. Manifesto pelos Direitos dos Animais. Rio de Janeiro: Record, 2009. p. 12

19 FELIPE, Sônia. T. Antropocentrismo, Sencientismo e Biocentrismo: Perspectivas éticas abolicionistas, bem-estaristas e conservadoras e o estatuto de animais não humanos. Revista Páginas de Filosofia. v. 1, n. 1, jan-jul/2009. p. 1-29. Disponível em: <encurtador.com.br/bnoKQ>. Acesso em: 15 mar. 2018.

20 LOTH, Raquel Wandelli. Existe, logo escreve: o inumano na arte-literatura. Blumenau: Edifurb, 2017. p. 16 21 FERRY, 2009 apud LOTH, Raquel Wandelli. Existe, logo escreve: o inumano na arte-literatura. Blumenau: Edifurb, 2017. p. 16

22 LOTH, Raquel Wandelli. Existe, logo escreve: o inumano na arte-literatura. Blumenau: Edifurb, 2017. p. 16 23 CHUAHY, Rafaella. Manifesto pelos Direitos dos Animais. Rio de Janeiro: Record, 2009. p. 13

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2.2 PENSAMENTO ESPECISTA

A maioria dos animais maltratados se encontram nas fazendas de criação, sofrendo do nascimento até a morte. Milhões de animais dotados de senciência24 são abatidos para o consumo humano, simplesmente mortos e devorados sem qualquer direito à defesa, e poucos se compadecem com o sofrimento desses seres, muitos deles tão próximos dos humanos na cadeia evolutiva.25 Há, também, os utilizados em espetáculos para entretenimento (rodeios, vaquejadas, farras do boi, touradas, circos, zoológicos); em experimentos laboratoriais, causando sofrimento, tortura e morte; o abandono e maus tratos dos animais de companhia; além dos animais trabalhadores. Será que o ser humano tem o direito de tratar assim as demais espécies?

Peter Singer afirma que a maioria dos humanos é especista, e não uns poucos e excepcionalmente cruéis ou insensíveis. O filósofo define especismo: “a palavra não é muito atraente, mas não ocorre outra melhor – é o preconceito ou a atitude tendenciosa de alguém a favor dos interesses de membros da própria espécie, contra os de outras”.26

O termo especismo foi criado nos anos 70 por Richard D. Ryder para indicar uma forma de desconsideração moral praticada pelos humanos contra os não humanos, sob o pretexto de que os interesses destes, ainda que de mesma grandeza, não tem o mesmo peso moral dos interesses daqueles.27

Segundo Sônia T. Felipe o termo especismo (speciesism em inglês) é a discriminação praticada pelas pessoas em detrimento dos não humanos, de forma a rebaixar o seu estatuto moral, em razão de características diferentes em sua configuração biológica, ainda que capazes de experiências similares às dos humanos, como dor e sofrimento. O termo foi incluído no Oxford Dictionary, a exemplo dos correlatos racism e sexism. O elemento comum

24 Senciência é capacidade que um ser vivo possui de sentir sensações (dor, fome, frio, medo, estresse,

frustração, prazer), e de se importar com o que sente. Importar-se significa experimentar satisfação ou frustração (subjetiva). No que concerne à capacidade de sentir dor, ao afirmar que um animal é senciente, quer-se dizer que ele deseja que a dor acabe. Assim, o animal percebe ou está consciente de como se sente, onde está, com quem está, e como é tratado, reconhece o ambiente e tem consciência de suas relações com humanos e não humanos. (NACONECY, 2014).

A senciência é a capacidade do ser de ter experiências (negativa ou positiva), de reação a um estímulo de forma consciente. (ÉTICA ANIMAL, 2018).

25INSTITUTO ABOLICIONISTA ANIMAL. SANTANA, Heron José de. Abolicionismo animal. Disponível

em: <encurtador.com.br/eqGJW>. Acesso em: 31 mar. 2018.

26 SINGER, Peter. Libertação animal. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. p. 11;15

27 FELIPE, Sônia T. Fundamentação ética dos direitos animais. O legado de Humphry Primatt. Revista Brasileira de Direito Animal. v.1. n. 1, p.207-229, 2006. Salvador: Instituto Abolicionista. Disponível em:

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a estas formas de preconceito é a resistência humana em aceitar o mesmo estatuto moral quando outros seres não tem uma determinada configuração, como por exemplo a aparência, a cor da pele ou a espécie.28

Para Sônia T. Felipe o especismo se desdobra em duas formas: o elitista e o eletivo ou afetivo. O elitista considera os interesses de sujeitos racionais mais relevantes, pelo simples fato de que são membros da espécie Homo Sapiens29, enquanto o eletivo ou afetivo considera importante defender os interesses dos animais, mas apenas quando sua figura ou interação desperta no sujeito alguma simpatia, ternura ou compaixão, permanecendo indiferente aos demais animais.30

Segundo Gary Francione, o especismo seletivo (eletivo ou afetivo) é igualado a uma espécie de “esquizofrenia moral da sociedade”, uma vez que considera alguns animais como membros de sua família, de maneira a dispensar cuidados e atenção, e admite não se importar com o sofrimento de outros não humanos, a exemplo dos utilizados na alimentação.31

Por meio do princípio da igual consideração de interesses, proposto por Singer, não há justificativa moral para deixar de levar em conta o sofrimento de um ser vivo independente de sua natureza (humano ou não humano). Racistas o violam ao conferir mais peso à sua etnia quando há um conflito de interesses; sexistas, ao favorecer os interesses do próprio sexo e, de forma semelhante, especistas permitem que os interesses de sua espécie se sobreponham aos interesses maiores de membros de outras espécies.32 O especismo é uma forma de ideologia que suporta esquemas sociais opressivos contra indivíduos de espécies distintas.33

O pensamento racista e o especista podem ser compreendidos nesta passagem da obra de Freyre, em que o animal humano e o não-humano possuem consideração moral equivalentes e status jurídico de objetos.

28 FELIPE, Sônia T. Fundamentação ética dos direitos animais. O legado de Humphry Primatt. Revista Brasileira de Direito Animal. v.1. n. 1. Salvador: Instituto Abolicionista. 2006, p.207-229. Disponível em:

<encurtador.com.br/CDGSX>. Acesso em: 22 mar. 2018.

29 Whitfielf (1994 apud RODRIGUES, 2008, p. 36) Homo Sapiens é um mamífero e uma das 185 espécies existentes na ordem dos primatas. É na evolução de outros primatas que encontramos a chave para compreender a ascendência da espécie humana.

30 FELIPE, Sônia. T. Dos Direitos morais aos Direitos Constitucionais para além do especismo elitista e eletivo. Revista Brasileira de Direito animal. V.1, n. 1. Salvador: Instituto Abolicionaista. 2006, p. 171. Disponível

em: <encurtador.com.br/chqUY>. Acesso em: 15 mar. 2018.

31 FRANCIONE, 2000 apud ROSSI, Rutinéia. Inventário dos Direitos dos Animais e Ecologia Profunda. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016. p. 19

32 SINGER, Peter. Libertação animal. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. p. 14-15.

33 LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008. p. 289-290

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Bem mais frequente ainda era a combinação de diferentes formas de trabalho humano e animal. Curiosamente, o jornal Diário do Rio de Janeiro, de 4 de fevereiro de 1822, anunciou, entre inúmeros conjuntos de mercadorias, a

venda de um kit completo, constituído por escravo, animal e máquina:

“huma carroça com a sua besta e hum preto mui hábil para andar com a mesma”; ou seja, o escravo para dirigir, o animal para puxar e a carruagem. 34

Daniel B. Lourenço cita a obra de Marjorie Spiegel “A comparação temida: escravidão humana e animal”, em que explora a analogia entre essas práticas, criticando o sistema econômico que lhes serve de sustentáculo:

A institucionalização da opressão dos negros (por meio da legalização da escravidão), e dos animais (através da experimentação científica e da criação intensiva), pode ser atribuída à motivação de ordem financeira. De fato, nos séculos XVIII e XIX, anti abolicionistas afirmavam que o fim da escravidão traria o colapso da estrutura econômica, enquanto que C. W. Hume já advertia que “as maiores crueldades cometidas contra os animais nas nações civilizadas derivam da exploração comercial, e o medo de queda de receitas é o principal obstáculo à reforma”. 35

Os não humanos possuem sistemas nervosos muito semelhantes aos humanos, quer dizer, se estes sentem dor, deve-se admitir que outros animais também a experimentam, pois não subsistem boas razões de ordem científica para negar que não a sentem; e se houver distinção, estará baseada em uma descarada e moralmente indefensável preferência por membros da espécie humana.36

Além da dor propriamente dita, os danos causados a um animal não se restringem a agressões emocionais, lesões físicas ou mesmo a morte. A perda das condições físicas e emocionais necessárias ao bem-estar individual próprio a cada espécie de vida, quando submetida a condições miseráveis de vida (escassez de alimento, água, ar, possibilidade de repouso e convívio com seus pares), ocasionam diminuição ou alteração de sua atividade física e mental e de sua interação social. Há, em suma mais modos de prejudicar do que simplesmente causar dor. “Nem todo dano dói, nem tudo o que dói danifica”.37

Por oportuno, convém trazer o ensinamento de Keith Thomas, disposto naobra "O Homem e o Mundo Natural". A diferença intelectual entre homem e animal passou a ser apontada pela ciência moderna, não como uma questão de gênero, mas como uma questão de

34 FREYRE, 2006 apud MÓL, Samylla; VENACIO, Renato. A proteção jurídica aos animais no Brasil: uma breve história. Rio de Janeiro: FGV, 2014. p. 69. Grifo nosso.

35 SPIEGEL, 1996 apud LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008. p. 290.

36 SINGER, Peter. Libertação animal. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. p. 24-26.

37 FELIPE, Sônia T. Ética experimentação animal: fundamentos abolicionistas. Florianópolis: Editora UFSC, 2014. p. 57-62.

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grau. Com a descoberta da anatomia comparada, evidenciando a semelhança entre os organismos humano e não humano e da evolução biológica das espécies, afasta-se a percepção de superioridade humana.38

As crenças mais profundas têm origens bastante remotas, as quais se atribui um caráter inviolável, quase sagrado. O modo de pensar da maioria das sociedades está ligado às heranças culturais. Nesse sentido, para compreender as práticas que levam à opressão animal, é preciso realizar uma análise de como se construiu a ideia de que seriam hierarquicamente inferiores aos humanos e de como esta concepção legitima condutas insidiosas e hábitos cruéis, perpetuadas de forma automática e inquestionada pela maior parte das pessoas.39

Denota-se pelo exposto que o especismo é uma forma de discriminação e exclusão dos não humanos da comunidade moral baseado em diferenças relativas à espécie. Na sequência deste trabalho monográfico será abordado o nascimento do movimento pelos direitos dos animais.

2.3 NASCIMENTO DO MOVIMENTO PELOS DIREITOS DOS ANIMAIS

No final do século XVIII a revolução industrial estimula o crescimento das cidades e, por conseguinte, ocorre o aumento da população. A necessidade de mais alimentos faz crescer o número de abatedouros. O uso da força animal passa a ser utilizado para o transporte de cargas e pessoas, muitas vezes mal alimentados e chicoteados violentamente40. É neste cenário que passa a ser observada a maneira como os animais são tratados.

Humphry Primatt, no ano de 1776, na Inglaterra, critica o antropocentrismo imposto pela filosofia moral tradicional em sua obra intitulada “Dissertação sobre o dever de compaixão e o pecado da crueldade contra os animais brutos”. O filósofo é contrário a todas as formas de discriminação e defende que a dor e o sofrimento devem ser considerados, seja de humanos ou não humanos.41

38 THOMAS, 2001 apud BAHIA, Carolina Medeiros. Princípio da Proporcionalidade nas manifestações culturais e na proteção da fauna. Curitiba: Juruá. 2006, p. 92-93

39 LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008. p. 36-37; 83

40 MÓL, Samylla; VENANCIO, Renato. A proteção jurídica aos animais no Brasil: uma breve história. Rio de Janeiro: FGV, 2014. p. 18

41 FELIPE, Sônia T. Fundamentação ética dos direitos animais. O legado de Humphry Primatt. Revista Brasileira de Direito Animal. v.1, n.1, p.207-229, Salvador: Instituto Abolicionista. 2006. Disponível em:

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Jeremy Bentham, em 1789, publica a obra “Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação”, apoiado em muitas das conclusões de Primatt, e se posiciona, sem meias palavras, de forma a preconizarque chegará o dia em que serão garantidos ao resto da criação animal aqueles direitos que nunca lhes poderiam ter sido retirados, a não ser pelas mãos da tirania.42

Os movimentos que levam à proteção aos não humanos têm início na Inglaterra em 1822, quando são criadas as primeiras normas contra a crueldade e os maus tratos. A Alemanha edita normas gerais em 1838, e no ano de 1848, a Itália posiciona-se com leis contra os maus-tratos.43

Londres, a cidade com maior população no século XIX, foi o berço das leis de proteção aos animais. A primeira, editada em 1822, proibia os maus tratos e castigos aos animais domésticos. Para garantir a sua efetividade, e inspirada nos argumentos de Primatt, surge em 1824 a instituição que deu origem à Royal Society for the Prevention of Cruelty to Animals44 (RSPCA)45. Na América, os Estados Unidos foram pioneiros na defesa do bem-estar

animal, principalmente daqueles utilizados para fins de diversão. Em 1866 é criada a American Society for the Prevention of Cruelty to Animals46 e aprovada a lei que tornava crime a

exploração comercial dos combates entre animais (galos, cães, touros, ursos).47

Henry Stephens Salt (1851-1939) publica, em 1892, a obra intitulada “Animal Rights: Considered in Relation to Social Progress” (Direito dos Animais: Considerados em Relação ao Progresso Social), em que sustenta a necessidade de promoção dos direitos dos animais em um movimento coordenado de libertação democrática de humanos e não humanos.

42 LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008. p. 392

43 RODRIGUES, Danielle Tetü. O direito & os animais: uma abordagem ética, filosófica e normativa. 2. ed. Curitiba: Jaruá, 2009. p. 65

44 FELIPE, Sônia T. Fundamentação ética dos direitos animais. O legado de Humphry Primatt. Revista Brasileira de Direito Animal. v.1, n. 1, p.207-229. Salvador: Instituto Abolicionista. 2006. Disponível em:

<encurtador.com.br/CDGSX>. Acesso em: 22 mar. 2018.

45 A Sociedade Real de Prevenção à Crueldade contra Animais foi fundada em 1824 e existe até a presente data, com filiais em vários países. É a mais antiga instituição de caridade que tem como missão melhorar a vida de todos os animais, para que possam viver livres de dor e sofrimento. (ROYAL SOCIETY FOR THE

PREVENTION OF CRUELTY TO ANIMALS, 2018).

46 A Sociedade Americana de Prevenção à Crueldade contra Animais, com sede em Nova York, desde 1866 luta contra a crueldade aos animais. (THE AMERICAN SOCIETY FOR THE PREVENTION OF CRUELTY TO ANIMALS, 2018).

47 MÓL, Samylla; VENANCIO, Renato. A proteção jurídica aos animais no Brasil: uma breve história. Rio de Janeiro: FGV, 2014. p. 18-19.

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Simpatizantes de relevo o apoiaram na causa, como Bernard Shaw e Ghandi48, que se tornou amigo e admirador confesso. Assim, foi a primeira vez na história da filosofia europeia que o termo “direitos” foi impresso na capa de um livro em defesa dos animais.49

No Brasil do século XVIII, os animais utilizados para o transporte eram extremamente castigados e sofriam maus tratos. Neste cenário, surge, em 1886, o primeiro dispositivo legal visando protegê-los. Trata-se do Código de Postura do Município de São Paulo, que dispõe no art. 220:50 “É proibido a todo e qualquer cocheiro, condutor de carroça, pipa d´água, maltratar os animais com castigos bárbaros e imoderados. Os infratores sofrerão a multa de 10$, de cada vez que se der a infração”.51

Cabe ressaltar que neste momento se intensificava o movimento abolicionista, tendo como um dos grandes líderes José do Patrocínio (1854-1905). Naquele em que seria o seu último artigo, retratou os maus tratos sofridos por um animal de tração:

Eu tenho pelos animais um respeito egípcio. Penso que eles têm alma. Ainda que rudimentar, e que eles sofrem conscientemente as revoltas contra a injustiça humana. Já vi um burro suspirar como um justo depois de brutalmente esbordoado por um carroceiro que atestara o carro com carga para uma quadriga e queria que o mísero animal o arrancasse do atoleiro.52

Nas localidades brasileiras mais desenvolvidas havia preocupação com a situação dos animais, e parte da opinião pública era contrária aos maus tratos. Jornais da época (final do século XVIII e início do XIX), como o paranaense República, os cariocas Gazeta de Notícias, O Paiz e Correio da Manhã, o cearence A Lucta, o pernambucano A Província e o maranhense O Jornal, publicavam matérias retratando este cenário.53

Como iniciativa a este debate, em 1907, nasce a “Sociedade Brazileira Protectora dos Animaes” no Rio de Janeiro. A partir de então, novas entidades de proteção aos animais são criadas em diversas capitais. Destaca-se a Sociedade Protetora dos Animais no Recife,

48 Ghandi (1948 apud LOURENÇO, 2008, p. 395) afirmava que a base de sua dieta vegetariana não era física e sim moral: “Se alguém dissesse que morreria caso não ingerisse carne, mesmo com aconselhamento médico, preferiria a morte. Essa é a base de meu vegetarianismo”.

49 LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008. p. 395

50 LEVAI, 2004 apud ROSSI, Rutinéia. Inventário dos Direitos dos Animais e Ecologia Profunda. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016. p. 67

51SÃO PAULO. Código de Postura do Município, de 6 de outubro de 1886. Disponível em: <encurtador.com.br/nzDFQ>. Acesso em: 20 mar. 2018.

52LEVAI, Fernando Laerte. José do Patrocínio, o abolicionista. Agência de Notícias de Direitos Animais, 1 set. 2009. Disponível em: <encurtador.com.br/agBMW>. Acesso em: 20 mar. 2018.

53 MÓL, Samylla; VENANCIO, Renato. A proteção jurídica aos animais no Brasil: uma breve história. Rio de Janeiro: FGV, 2014. p. 21-24

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fundada pelo abolicionista João Ramos. Somente em 1920, o Brasil aprovou a primeira lei em defesa dos animais em âmbito nacional, com a promulgação do Decreto n. 14.529 (Dá novo regulamento às casas de diversões e espetáculos públicos).54

O movimento de proteção aos animais é impulsionado da década de setenta, quando um grupo de filósofos da Universidade de Oxford decidiu investigar por que o status moral dos não humanos era necessariamente inferior ao dos humanos. Richard D. Ryder lança a obra intitulada “Animais, Homens e Morais: uma investigação sobre os maus tratos de não humanos” e, na sequência (1975), Peter Singer publica a obra “Libertação Animal”, de impacto internacional, inspirando debates e publicações sobre o assunto. Neste momento, nos Estados Unidos, o movimento contra a discriminação racial e sexual levou muitas pessoas a questionarem a discriminação sofrida pelos animais.55

Tom Regan é reconhecido pela sua liderança no movimento pelos direitos dos animais. Do mesmo modo que Ryder e Singer, assume a posição de Primatt, ao propor na obra The Case for Animal Rights (A questão dos direitos animais), lançada em 1983, que todos os animais “sujeitos-de-uma-vida” sejam reconhecidos como sujeitos de valor inerente, e, por essa razão, incluídos no âmbito da consideração moral.56

Por fim, cabe destacar a atuação de Gary T. Francione na defesa dos não humanos, com a publicação de obras relacionadas à área, com destaque para Introdução aos direitos animais (2000). Defende a necessidade de se rever a ultrapassada noção que não humanos sejam coisas, recursos ou objetos.57 Francione leciona, há mais de 20 anos, o tema “Direitos Animais e o Direito” nos Estados Unidos e foi o primeiro acadêmico a ensinar a teoria dos direitos animais, proferindo palestras sobre o tópico em vários países.58

Verificada a pesquisa acerca do nascimento do movimento pelos direitos dos animais, faz-se oportuno trazer princípios que podem ser empregados na defesa dos não humanos.

54 MÓL, Samylla; VENANCIO, Renato. A proteção jurídica aos animais no Brasil: uma breve história. Rio de Janeiro: FGV, 2014. p. 21-24

55 CHUAHY, Rafaella. Manifesto pelos Direitos dos Animais. Rio de Janeiro: Record, 2009. p. 18 56 FELIPE, Sônia T. Fundamentação ética dos direitos animais. O legado de Humphry Primatt. Revista Brasileira de Direito Animal. v.1, n. 1, p. 207-229. Salvador: Instituto Abolicionista. 2006. Disponível em:

<encurtador.com.br/hlxJ8>. Acesso em: 22 mar. 2018.

57 LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008. p. 453

58 MARTINI, Luís, CRISTOFANI, Vera R., Entrevista com Gary Francione, autor de introdução aos direitos animais. JUSBRASIL, 2012. Disponível em: <encurtador.com.br/qtHTU>. Acesso em: 30 mar. 2018.

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2.4 PRINCÍPIOS

Princípios são normas que exigem a realização de algo da melhor forma possível, de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas, ou seja, não proíbem, permitem ou exigem algo em termos de “tudo ou nada”; impõem a otimização de um direito ou de um bem jurídico, tendo em conta a “reserva do possível”, fática ou jurídica.59 No que concerne ao direito animal,

serão abordados neste tópico os princípios da igual consideração de interesses e da coerência. Peter Singer argumenta a defesa dos não humanos no princípio da igual consideração de interesses, no qual se fundamenta a igualdade de todos os seres humanos. Trata-se de um princípio moral elementar em que os humanos são incluídos na comunidade moral (grupo de seres que possuem interesses moralmente relevantes60), independentemente de suas diferenças de fato (raça, sexo ou grau de inteligência), baseando-se apenas nos interesses daqueles seres afetados por uma determinada ação.61

Nesse mesmo sentido, Francione explica que o princípio reflete a visão de que os julgamentos morais sólidos devem ser universais, e não fundamentados em interesse próprio ou de um grupo especial. A teoria moral exige como componente necessário a aplicação do referido princípio. Rejeitá-lo implica a sua não aceitação.62

Singer sustenta que expandir o princípio básico da igualdade de um grupo (humanos) para outro (não humanos), não implica tratamento igual, nem a concessão dos mesmos direitos, mas sim igual consideração. Seres humanos são iguais sem distinção de etnia, credo ou sexo. O que há são diferenças como indivíduos (feito, capacidade intelectual, moral, de comunicação, de experimentar dor e prazer). Assim, se a exigência de igualdade tivesse de se basear na igualdade efetiva de todos os seres humanos, ter-se-ia que deixar de exigi-la.63

Darwin propõe que há uma condição biológica comum entre animais humanos e não humanos, a animalidade. Disso se infere que há, também, uma condição moral comum

59 MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Direito dos Animais. Porto Alegre. Livraria do Advogado, 2013. e-Book de acesso restrito.

60 TRINDADE, Gabriel Garmendia. Animais Como Pessoas: a abordagem abolicionista de Gary T. Francione. 2013. 221 p. Dissertação (Mestrado em Filosofia Teórica e Prática) – Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2013. Disponível em: <encurtador.com.br/hmVZ3>. Acesso em: 25 abr. 2018.

61 ROSSI, Rutinéia. Inventário dos Direitos dos Animais e Ecologia Profunda. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016. p. 22

62 FRANCIONE. Gary T. Introdução aos Direitos Animais. São Paulo: Unicamp, 2013. p. 161-162 63 SINGER, Peter. Libertação animal. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. p. 5-6

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entre humanos e não humanos. As diferenças físicas são, desse ponto de vista, moralmente irrelevantes.64

Jeremy Bentham (1748-1832) e John Stuart Mill (1806-1873) sustentam que ao conferir consideração moral a um dado ser vivo deve ser levado em conta somente a posse da senciência, sendo irrelevantes as demais características (racionalidade, autonomia ou capacidade linguística). Bentham admite as diferenças entre humanos e não humanos, mas assegura que ambos são seres sencientes (capazes de sofrer). É justamente a capacidade de sofrer que deve ser considerada como fundamento básico para que um ser possa fazer parte da comunidade moral.65

Para Singer, o limite da sensibilidade constitui o único válido para o respeito que se deve manifestar pelo interesse dos outros, sendo arbitrário fixar esse limite por meio de outra característica, como a inteligência ou a racionalidade. A capacidade de sofrer ou sentir prazer não é apenas necessária, mas suficiente para assegurar que um ser possui interesses, no mínimo, ao não sofrimento.66

Filósofos e escritores propuseram a aplicação do princípio como um preceito moral básico aos humanos, mas poucos o reconheceram aplicável aos animais. Bentham foi um dos que compreendeu esta percepção. Em 1789, escreveu a seguinte passagem na obra “Uma introdução aos princípios da moral e da legislação”. Cabe destacar que foi escrita numa época que os escravos negros haviam sido libertados pelos franceses, mas ainda tratados na mesma maneira como na contemporaneidade são tratados os animais.67

Talvez chegue o dia em que o restante da criação animal venha a adquirir os direitos que jamais poderiam ter-lhe sido negados, a não ser pela mão da tirania. Os franceses já descobriram que o escuro da pele não é razão para que um ser humano seja irremediavelmente abandonado aos caprichos de um torturador. É possível que um dia se reconheça que o número de pernas, a vilosidade da pele ou a terminação do osso sacro são razões igualmente insuficientes para abandonar um ser senciente ao mesmo destino. O que mais deveria traçar a linha intransponível? A faculdade da razão, ou, talvez, a capacidade da linguagem? Mas um cavalo ou um cão adulto são incomparavelmente mais racionais e comunicativos do que um bebê de um dia, de uma semana, ou até mesmo de um mês. Supondo, porém, que as coisas não fossem

64 CARMAN, María. Las Fronteras de lo humano: Cuando la vida humana pierde valor y la vida animal se dignifica. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Siglo XXI, 2017. p. 167. Tradução nossa

65 FAUTH. Juliana de Andrade. Sujeitos de Direitos Não Personalizados e o Status Jurídico Civil dos Animais Não Humanos. 2016. 168 p. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade Federal da Bahia,

Salvador, 2016. Disponível em: <https://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/20802>. Acesso em: 6 abr. 2018. 66 SINGER, Peter. Libertação animal. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. p. 13

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assim, que importância teria tal fato? A questão não é ‘Eles são capazes de raciocinar?’, nem ‘São capazes de falar?’, mas, sim, ‘Eles são capazes de sofrer?’. 68 Primatt explora a questão da dor e do sofrimento. Afirma que a similitude entre as terminações nervosas e os órgãos de sensação de humanos e não humanos, assim como as manifestações externas de dor, provam que ambos são vulneráveis ao sofrimento da mesma maneira. Assim, baseado nos princípios da analogia e da não maleficência, desenvolve o princípio da coerência. O princípio pressupõe que se trate da mesma maneira humanos e não humanos, no que se refere ao sofrimento. Ainda que não atribuísse direitos propriamente ditos aos animais, nega o pretenso direito natural ao abuso.69

O dever de não maleficência, exposto por Primatt e adotado por Ryder, está fundado nos mesmos princípios reconhecidos pela obrigação de respeito a humanos: à diferença, à igualdade, à justiça e à coerência. Primatt critica a moralidade antropocêntrica, egoísta e discriminadora, e propõe o emprego do princípio da igualdade moral no tratamento da dor e minimização do sofrimento de todos os seres, humanos e não humanos.70 Assim se expressa Primatt:

Se, entre humanos, as diferenças de capacidade mental, compleição física, estatura e acasos da sorte, não dão a ninguém o direito de abusar ou de insultar qualquer outro homem, em seu nome, pela mesma razão, um homem não pode ter um direito natural de abusar ou de atormentar um animal, simplesmente porque o animal não tem a capacidade mental de um homem.71

Primatt, da mesma forma que Bentham, afirmava que a capacidade de sofrer era comum a todos os seres, motivo pelo qual a benevolência e a compaixão deveriam guiar as condutas com humanos e não humanos do mesmo modo e, em todos os casos, com a caracterização de uma visão universalizada de justiça, em antecipação do fenômeno reconhecido posteriormente como especismo.72

Bentham e Primatt não trazem nas obras o termo “direitos dos animais”, mas o dever de compaixão com todos os seres em condições vulneráveis à dor e ao sofrimento.

68 SINGER, Peter. Libertação animal. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. p. 12

69 LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008. p. 346-347

70 FELIPE, Sônia T. Fundamentação ética dos direitos animais. O legado de Humphry Primatt. Disponível

em: < encurtador.com.br/dBEF9>. Acesso em: 22 mar. 2018.

71 PRIMATT, 1992 apud FELIPE, Sônia T. Fundamentação ética dos direitos animais. O legado de Humphry

Primatt. Disponível em: <encurtador.com.br/dBEF9>. Acesso em: 22 mar. 2018.

72 LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008. p. 346-347.

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Embora não tenham defendido abertamente que não humanos possuam ou devam ter direitos, suas justificativas de que humanos têm deveres morais com os não humanos deram sustentáculo para que os filósofos Henry Salt e Andrew Linzey (final século XIX) editassem obras com o intuito de defender os animais.73

Os movimentos de libertação exigem ampliação dos horizontes morais. A concepção de direito dos animais foi utilizada para ridicularizar o movimento feminista em 1792, quando Mary Wollstonecraft publicou “Uma reivindicação dos direitos das mulheres”. Suas ideias foram recebidas como absurdas e ironizadas com a publicação “Uma reivindicação dos direitos dos brutos”, de maneira a afirmar que se as pretensões feministas fossem tomadas como válidas, deveriam ser igualmente conferidos direitos aos animais.74

A trajetória ética, moral, política e jurídica na proteção dos não humanos encontra barreiras, visto que a moralidade milenar vigente confere privilégios aos humanos. É preciso um despertar quanto à necessidade de rever padrões morais com relação ao tratamento dispensado aos não humanos.75

O capítulo apresentado mostra-se de fundamental importância para a compreensão do tema proposta na pesquisa. A subjugação e a exploração dos não humanos têm origem no pensamento de filósofos da Antiguidade Grega e nas religiões judaico-cristãs, sendo difundida e consolidada no Ocidente a superioridade humana sobre os não humanos, ainda que em todas as épocas pensadores tenham divergido desta compreensão.

Os abusos cometidos aos não humanos continuam sendo justificados por critérios que não mais se sustentam (inteligência, racionalidade, linguagem, capacidade emocional), pois diaturnamente a ciência vem demonstrando o contrário. Foi possível compreender a forma de discriminação praticada contra os não humanos, denominada especismo, em razão de características que os diferem das pessoas no que concerne à espécie. Por fim, percebe-se que o movimento em favor dos direitos animais, ainda que de forma lenta, vem encontrando defensores.

O capítulo seguinte abordará a forma como os animais (humanos e não humanos) se relacionam com a natureza. Na sequência, buscar-se-á trazer como o legislador procurou proteger os não humanos, nos âmbitos constitucional e ambiental. Para finalizar, serão

73 FELIPE, Sônia T. Fundamentação ética dos direitos animais. O legado de Humphry Primatt. Disponível

em: < encurtador.com.br/dBEF9>. Acesso em: 22 mar. 2018.

74 LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008. p. 21-22

75 FELIPE, Sônia T. Fundamentação ética dos direitos animais. O legado de Humphry Primatt. Disponível em: < encurtador.com.br/dBEF9>. Acesso em: 22 mar. 2018.

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destacados os principais impactos causados pela criação animal no meio ambiente e de que forma o trabalho realizado em indústrias frigoríficas de abate animal afeta a saúde do trabalhador.

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3 PROTEÇÃO AOS ANIMAIS NÃO HUMANOS NO BRASIL

Primeiro foi necessário civilizar o homem em relação ao próprio homem. Agora é necessário civilizar o homem em relação à natureza e aos animais. (Victor Hugo)

O reconhecimento dos direitos dos animais pelo ordenamento jurídico implicará em mudanças nas culturas das civilizações do mundo, de maneira a repercutir em harmonia entre os seres vivos. No Brasil, ecoará em mudanças nos três poderes do Estado, na política e nas práticas econômicas, em uma redefinição das atividades tecnológicas e sobre o estilo de vida de cada indivíduo. Num primeiro olhar, tem-se a impressão de que as normas jurídicas tutelam somente os interesses humanos, pois a maioria dos juristas entende que os animais são considerados coisas e seres irracionais. Contudo, o Direito deve tutelar todas as formas de vida e não somente a humana.76

Inicialmente, o capítulo abordaráa relação dos animais (humanos e não humanos) com a natureza. Na sequência, apresenta a proteção dos não humanos no ordenamento jurídico brasileiro, nos âmbitos constitucional e ambiental. Por fim, serão trazidos à discussão os principais impactos causados ao meio ambiente na criação de animais para alimentação humana e os acidentes/doenças decorrentes do trabalho realizado na indústria frigorífica de abate.

3.1 A NATUREZA E OS ANIMAIS (HUMANOS E NÃO-HUMANOS)

Isto sabemos. Todas as coisas estão ligadas, como o sangue que une uma família. Tudo o que acontece com a Terra, acontece com os filhos e filhas da Terra. O homem não tece a teia da vida; ele é apenas um fio.

Tudo o que faz à teia, ele faz a si mesmo. (Ted Perry, inspirado no Chefe Seatle)

As limitações da mente humana revelam que o ser humano e o animal vivem em mundos diferentes, de modo que “enquanto o segundo vive na realidade, o primeiro não cessa de fugir dela”.77 O Universo não se limita a um mundo destinado somente ao uso e gozo dos

seres humanos, ao contrário, existe em prol de todos os seres vivos.78

A proteção da natureza é antiga e tem como alicerce a Bíblia Sagrada, em que o indivíduo é julgado por aquilo que fizer contra os seus preceitos, contudo, não tem alcançado

76 RODRIGUES, Danielle Tetü. O direito & os animais: uma abordagem ética, filosófica e normativa. 2. ed. Curitiba: Jaruá, 2009. p. 107-110

77 RONECKER, 1997 apud RODRIGUES, Danielle Tetü. O direito & os animais: uma abordagem ética, filosófica e normativa. 2. ed. Curitiba: Jaruá, 2009. p. 28

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os efeitos desejados. Agressões contra animais, escravos, lavouras, águas e terras eram comuns pelos povos da antiguidade. Papiros encontrados no Novo Império Egípcio denotam que o morto deveria levar consigo um documento (Confissão Negativa) para comprovar o seu respeito com aquilo que era sagrado aos deuses. O escrito é o mais antigo registro de que se tem conhecimento acerca de um pensamento ecológico e faz parte do Livro dos Mortos, a saber:79

Homenagem a ti, grande Deus, Senhor da Verdade e da Justiça! / Não fiz mal algum.../ Não matei os animais sagrados/ Não prejudiquei as lavouras.../ Não sujei a água/ Não usurpei a terra/ Não fiz um senhor maltratar o escravo.../ Não repeli a água em seu tempo/ Não cortei um dique.../ Sou puro, sou puro, sou puro!.

A questão do animal perpassa pela tentativa de estabelecer uma linha comparativa entre humanos e não humanos. Montaige ressalta que há mais semelhanças do que dessemelhanças entre ambos, e que as diferenças maiores se dão entre os próprios humanos.80 A teoria evolucionista de Darwin, da mesma forma, apresenta estudos que caminham pela via comparativa entre os sentimentos e emoções de humanos e não humanos, no sentido de que “Mesmo o homem não consegue exprimir com sinais externos amor e humildade tão claramente quanto um cachorro”.81

Os humanos necessitam dos ecossistemas naturais equilibrados para a sua própria sobrevivência, não obstante estabelecem uma relação parasitária e depredatória com o meio que os cerca.82 A convivência em harmonia com os não humanos foi renunciada pelas pessoasque deixaram de se sentir parte da natureza. Danielle Rodrigues menciona que é importante pensar sobre a trajetória da vida para alcançar a constatação de que o ser humano não só faz parte do Universo, como é o próprio Universo, nos seguintes moldes:

Ora, o homem nasce do pó e morre em forma de pó! O ser humano falece e seu organismo é aproveitado pelos vermes, este pela terra, a qual serve para semear os alimentos que serão ingeridos também pelos homens. Os ossos humanos transformam-se em água, essa água evapora e, da atmosfera retorna em forma de chuva, a abastecer rios, lagos, oceanos, copos e corpos de outros seres vivos. Assim, as relações são as essências do mundo vivo, já que cada ser é um pouco do outro ser, em outras palavras, cada qual é um pouco de cada um, de cada organismo vivo. Deste

79 SIRVINSKAS, Luís Paulo. Manual de Direito Ambiental. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 72 e 73 80 MONTAIGE, 2000 apud GUIDA, Ângela. Para uma Política da animalidade. In: SIMPÓSIO

INTERNACIONAL LITERATURA, CRÍTICA, CULTURA: Literatura e Política, 5., 2011. Anais eletrônicos... Disponível em: <encurtador.com.br/gnqY3>. Acesso em: 1º maio 2018.

81 DARWIN, 2009 apud GUIDA, Ângela. Para uma Política da animalidade. In: SIMPÓSIO

INTERNACIONAL LITERATURA, CRÍTICA, CULTURA: Literatura e Política, 5., 2011. Anais eletrônicos... Disponível em: <encurtador.com.br/gnqY3>. Acesso em: 1º maio 2018.

82 MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Direito dos Animais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. e-book de acesso restrito.

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modo, o homem é um pouco do mar, um pouco da floresta, um pouco do Animal, um pouco de outro homem. Essa é a beleza da vida, tristemente esquecida e desvalorizada pelo ser humano.83

Fundamental, ainda, correlacionar os dizeres de Motonura:

[...] quanto mais entendemos a grande realidade na qual vivemos, mais humildes nos tornamos. Adquirimos um respeito excepcional por todos os seres vivos - sem qualquer exclusão. [....] Desenvolvemos uma nova ética, não nos deixando levar por falsos valores. [....] Cada ato nosso, por mais simples que seja, passa a ser vivenciado com uma forte consciência de que ele está afetando a existência do todo em seus planos mais sutis.84

A falta de percepção sistêmica da vida, no sentido de que há uma ligação entre todas as coisas existentes no Universo, contribui sobremaneira com a manutenção da ruptura do indivíduo com a natureza, e, consequentemente, do indivíduo com os animais.85 Com o desaparecimento de outras variedades humanas (neandertais, por exemplo), o Homo Sapiens acredita ser centro da criação e que um abismo o separa dos não humanos, dado que há 10 mil anos acostumou-se a ser a única espécie humana. Darwin, ao sugerir que o Homo Sapiens era tão somente mais uma espécie animal, deixou as pessoas furiosas, e muitas ainda se recusam a acreditar nisso. Nesse diapasão, “Se os neandertais tivessem sobrevivido, ainda conceberíamos a nós mesmos como uma criatura distinta? Talvez tenha sido exatamente por isso que nossos ancestrais eliminaram os neandertais. Eles eram similares demais para se ignorar, mas diferentes demais para se tolerar”.86

Luís Paulo Sirvinskas esclarece que o saber é alicerçado em informação, conhecimento e atitude. Por meio da informação sabe-se o que está ocorrendo no entorno. De posse dela, aliada aos princípios, fundamentos e experiências de vida, é transformada em conhecimento raciocinado – lógico. Contudo, o conhecimento deve ser posto em prática em relação ao meio ambiente, numa constante preocupação com o futuro da humanidade pela busca do equilíbrio ambiental, de maneira a harmonizar o pensar com as atitudes.87

83 RODRIGUES, Danielle Tetü. O direito & os animais: uma abordagem ética, filosófica e normativa. 2. ed. Curitiba: Jaruá, 2009. p. 38-39

84 MOTONURA, Oscar. Prefácio à Edição Brasileira. In. CAPRA, Fritjot. A teia da vida. 9. ed., São Paulo: Cultrix, 2000. p. 16

85 RODRIGUES, Danielle Tetü. O direito & os animais: uma abordagem ética, filosófica e normativa. 2. ed. Curitiba: Jaruá, 2009. p. 38-39

86 HARARI, Yuval Noah. Sapiens: uma breve história da humanidade. 30. ed. Porto Alegre: L&MP, 2015. p. 26

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O planeta é compartilhado entre todas as criaturas que sentem, fazendo o uso ou não da fala, um mundo não de animais humanos; um mundo de seres vivos. Desta forma, questiona-se: por que somente as criaturas humanas têm direito a uma vida digna? Todos os animais (humanos e não humanos) possuem direito a uma existência digna.88

Convém trazer ao estudo os dilemas éticos na relação homem-natureza, que para Thomé, dividem-se em antropocentrismo e ecocentrismo. A visão antropocêntrica preocupa-se, tão somente, com o bem-estar do animal humano, considerando-o como centro ou a medida do universo. De outro norte, a corrente ecocêntrica considera o ser humano como mais um integrante do ecossistema, onde todos (fauna, flora e biodiversidade) são dignos de tutela, à semelhança dos direitos atribuídos aos humanos.89

Diversamente de Thomé, para Sirvinskas há três concepções atribuídas pelos cientistas em face da posição do indivíduo com o meio ambiente. O antropocentrismo coloca o ser humano no centro das preocupações ambientais; o ecocentrismo posiciona o meio ambiente no centro do universo; e o biocentrismo procura conciliar as duas posições citadas, colocando o meio ambiente e o indivíduo no centro do universo.90

Por derradeiro, convém trazer os ensinamentos de Fritjot Capra, no sentido de que na natureza não há categorias de menor ou maior relevância, e se assim for, é criação do ser humano:

Em outras palavras, a teia da vida consiste em redes dentro de redes. Em cada escala, sob estreito e minucioso exame, os nodos da rede se revelam como redes menores. Tende-se a arranjar esses sistemas, todos eles aninhados dentro de sistemas maiores, num sistema hierárquico colocando os maiores acima dos menores, à maneira de uma pirâmide. Mas isso é uma projeção humana. Na natureza, não há "acima" ou "abaixo", e não há hierarquias. Há somente redes aninhadas dentro de outras redes.91

Realizada a abordagem acerca da relação do animal (humano e não humano) com a natureza, passa-se ao estudo da tutela dos não humanos no ordenamento jurídico brasileiro.

88 MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Direito dos Animais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. e-Book de acesso restrito.

89 THOMÉ, Romeu. Manual de Direito Ambiental. 6. ed. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 57-59

90 SIRVINSKAS, Luís Paulo. Manual de Direito Ambiental. 15ª ed. São Paulo: Saraiva. 2017. p. 97 e 98 91 CAPRA, Fritjot. A teia da vida. 9. ed., São Paulo: Cultrix. 2000, p. 35

(33)

3.2 A PROTEÇÃO NA ORDEM JURÍDICA

O legislador constituinte assegura o dever de cuidado com os animais por meio do art. 225, §1º, VII, e ao vedar que os não humanos sejam submetidos à crueldade, os reconhece como seres sencientes (capazes de sentir dor e sofrimento). Após 10 anos da promulgação da Carta Magna, o legislador ambiental, ao tipificar como crime as práticas cruéis contra animais (art. 32 da Lei 9.605/98), igualmente os reconhece como criaturas sensíveis92. Considerando que o ordenamento jurídico brasileiro confere proteção aos não humanos por meio dos Direitos Constitucional e Ambiental, principalmente, a presente seção tratará da tutela nestes âmbitos.

3.2.1 Na esfera constitucional

A Constituição da República Federativa do Brasil estabelece um regime especial de proteção aos animais93, dispondo no art. 225, §1º, VII:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: [...]

VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os

animais a crueldade.94

Convém trazer o conceito de crueldade, que segundo Sznick são as práticas que exponham não humanos à tortura, à tirania, à mutilação de órgãos, ao emprego de meios dolorosos, ao espancamento e a atos omissivos: não alimentar, curar, deixar de prestar socorro em atropelamento, mantê-lo em local insalubre ou anti-higiênico.95

A proteção contra atos de crueldade e que provoquem a extinção das espécies fica evidente no dispositivo de ordem constitucional supramencionado. Segundo Levai, dado a sua

92 LEVAI, Laerte Fernando. Direito animal: uma questão de princípios. Revista Diversitas (USP). 2016. n.5. Disponível em: <encurtador.com.br/kyCFZ>. Acesso em: 3 jun. 2018.

93 ANTUNES, Paulo de Bessa. Manual de Direito Ambiental. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2015. Disponível em: <encurtador.com.br/mzBKS>. Acesso em: 17 maio 2018. Acesso restrito via Minha Biblioteca (Academia Judicial – TJSC). p. 292.

94 BRASIL. (Constituição, 1988). Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 outubro de 1988. Disponível em: <encurtador.com.br/bfLYZ>. Acesso em: 17 maio 2018. Grifo nosso.

95 SZNICK, 2001 apud MÓL, Samylla; VENANCIO, Renato. A proteção jurídica aos animais no Brasil: uma breve história. Rio de Janeiro: FGV, 2014. p. 27-28

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