• Nenhum resultado encontrado

3. O POSITIVISMO JURÍDICO

3.4. O positivismo jurídico: características

3.4.4. Direito e interpretação

Outra característica do positivismo jurídico que reputo importante para a compreensão de sua influência no ensino do Direito é a peculiaridade de sua hermenêutica jurídica.

Foi assinalado, no item precedente, que o positivismo jurídico caracteriza-se também pela prevalência quase exclusiva da lei como fonte do Direito, e da lei codificada, da lei escrita. Com efeito, a lei é, notadamente no Estado moderno, lei escrita. No caso brasileiro, a lei é sempre escrita. O raciocínio aqui desenvolvido,

contudo, não deixa de ser aplicável em países em que, tradicionalmente, o Direito é formado pelo costume. Refoge, contudo, ao âmbito deste trabalho, a discussão sobre as diferenças na formação do direito legislativo e do direito costumeiro. Portanto, fixo-me na lei escrita.

A lei é, portanto, um texto. Como qualquer texto, a lei, para ser compreendida, deve ser interpretada. A tarefa de interpretação não é, obviamente, exclusiva do Direito, mas inerente à qualquer mensagem. Interpretar é, portanto, como assinala BOBBIO, “remontar do signo (signum) à coisa significada (designatum), isto

é, compreender o significado do signo, individualizando a coisa por este indicada”30.

Ou, como observa KELSEN, “a interpretação é, portanto, uma operação mental que

acompanha o processo de aplicação do Direito”31.

Embora não seja exclusiva do Direito, a hermenêutica assume, nesse campo, importância significativa. São freqüentes as dissensões doutrinárias acerca da interpretação de determinado texto legal. Do mesmo modo, também são freqüentes as divergências jurisprudenciais sobre a interpretação de uma dada lei. Assim, o problema

dos métodos da interpretação jurídica é um problema que se põe para qualquer

concepção de Direito. Pode-se dizer que cada concepção de Direito implica um determinado método de interpretar o Direito.

O positivismo jurídico, como visto, concebe o Direito como um sistema de normas postas pelo Estado, prevalentemente por meio da lei. Essa concepção implica, via de regra, e como anota BOBBIO, numa hermenêutica chamada de mecanicista:

O sexto ponto diz respeito ao método da ciência jurídica, isto é, o

problema da interpretação (entendendo-se o termo “interpretação” em

sentido muito lato, de modo a compreender toda a atividade científica do jurista: interpretação stricto sensu, integração, construção, criação do sistema): o positivismo jurídico sustenta a teoria da interpretação

mecanicista, que na atividade do jurista faz prevalecer o elemento

declarativo sobre o produtivo ou criativo do direito (empregando uma imagem moderna, poderíamos dizer que o juspositivismo considera o jurista uma espécie de robô ou de calculadora eletrônica). (BOBBIO, 1995, p.133) 30 BOBBIO, 1995, p. 212. 31 KELSEN, 1999, p. 387.

Se o Direito está todo contido no ordenamento jurídico, a tarefa do intérprete, na verdade, somente pode ser a de revelar a regra já contida no ordenamento. Para a concepção positivista de Direito, a interpretação segue a regra clássica do silogismo perfeito: a lei estabelece a premissa maior; a questão controvertida é a premissa menor; o intérprete, pela subsunção, revela a solução, a conclusão.

Assim, a interpretação da lei, dentro da doutrina do positivismo jurídico, deve ser feita com base no próprio ordenamento jurídico, ou seja, no conjunto de normas positivas. Há uma preferência pelo que se denomina de interpretação lógico-

sistemática em detrimento de outros métodos possíveis de interpretação. Em razão dos

dogmas da completude e da coerência do ordenamento jurídico, a solução das lacunas e das antinomias deve ser buscada dentro do próprio ordenamento jurídico.

Como acentuado, cada concepção de Direito implica um determinado método de interpretar o Direito. Assim, o juspositivismo kelseniano, não obstante com ressalvas, não se furta a formular sua própria hermenêutica jurídica32. Na visão kelseniana, é necessário distinguir a interpretação que é feita pelo órgão jurídico, pelo órgão do Estado encarregado de aplicar o Direito, daquela feita pelos indivíduos que devem observar o Direito e, especialmente, da interpretação feita pela ciência jurídica.

Para KELSEN, em razão da relativa indeterminação (intencional ou não- intencional) da norma jurídica, cuja ocorrência é possível, abrem-se, no processo de interpretação, várias possibilidades de escolha, ou, na figura utilizada, um quadro ou moldura que contém várias possibilidades, todas elas correspondendo a possíveis sentidos da norma33.

O órgão aplicador do Direito, portanto, realiza primeiro uma interpretação cognoscitiva, aferindo as diversas possibilidades, e a seguir, num ato de vontade e não de conhecimento, escolhe uma dentre as diferentes possibilidades, criando Direito34. Já a ciência jurídica, o cientista do Direito, deve limitar-se à

32

A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito Positivo – do Direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica especial. É teoria geral do Direito, não interpretação de particulares normas jurídicas, nacionais ou internacionais. Contudo, fornece uma teoria da interpretação. (KELSEN, 1999, p. 1).

33

O Direito a aplicar forma, em todas estas hipóteses, uma moldura dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é conforme ao Direito todo ato que se mantenha dentro deste quadro ou moldura, que preencha esta moldura em qualquer sentido possível. (KELSEN, 1999, p.390).

34

Através deste ato de vontade se distingue a interpretação jurídica feita pelo órgão aplicador do Direito de toda e qualquer outra interpretação, especialmente da interpretação levada a cabo pela ciência jurídica. A interpretação feita pelo órgão aplicador do Direito é sempre autêntica. Ela cria Direito. (KELSEN, 1999, p.394).

interpretação cognoscitiva, abstendo-se de manifestar qualquer escolha dentre as várias possibilidades interpretativas determinadas35. Dessa forma, para KELSEN é equivocada a visão de que é sempre possível, pela via da interpretação, chegar a uma única solução. A solução é um ato de escolha da autoridade jurídica:

Se por “interpretação” se entende a fixação por via cognoscitiva do sentido do objeto a interpretar, o resultado de uma interpretação jurídica somente pode ser a fixação da moldura que representa o Direito a interpretar e, conseqüentemente, o conhecimento das várias possibilidades que dentro desta moldura existem. Sendo assim, a interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma única solução como sendo a única correta, mas possivelmente a várias soluções que – na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar – têm igual valor, se bem que apenas uma dela se torne Direito positivo no ato do órgão aplicador do Direito – no ato do tribunal, especialmente. (KELSEN, 1999, p. 390)

Bem se vê, portanto, que podemos acentuar, como característica do positivismo jurídico, a crença na possibilidade de uma interpretação científica da lei. Para algumas correntes dessa doutrina, essa interpretação conduz a um único resultado correto. Já para o juspositivismo kelseniano, que nos interessa em particular, essa interpretação científica nem sempre conduz a um único resultado correto, podendo conduzir a um conjunto de resultados corretos.

Outros aspectos do positivismo jurídico, com relação a tópicos específicos dos métodos de interpretação jurídica, são posteriormente abordadas no capítulo sobre o Fetichismo da lei, nos itens mens legis e mens legislatoris e a questão

dos argumentos metajurídicos.