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4. POSITIVISMO JURÍDICO E CIÊNCIA DO DIREITO

4.5. Crítica da concepção cientificista

4.5.1. Sobre a verificabilidade objetiva de Kelsen

Como assinalado, a concepção cientificista do estudo do Direito de KELSEN está apoiada na idéia de que as proposições jurídicas, asserções sobre a existência (validade) de normas jurídicas e sobre a licitude ou ilicitude de condutas humanas, podem ser falsas ou verdadeiras, e a sua falsidade ou veracidade podem ser demonstradas por fatos verificáveis objetivamente.

Para a crítica da concepção cientificista do Direito, utilizo-me do conceito de ciência empírica formulado por POPPER. Para POPPER, as ciências empíricas são sistemas de teorias, e teorias científicas, por sua vez, são enunciados universais, ou seja, hipóteses com o caráter de leis naturais, em oposição a enunciados singulares, isto é, relativos a um fato singular.47

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O filósofo do direito Luis Recasen Siches tem uma contribuição bastante interessante para a discussão sobre a logicidade do direito. Para ele, quando o raciocínio jurídico empreendido a partir da lógica formal conduz a uma conclusão injusta, irritante, agressiva aos valores prestigiados pelo direito, o intérprete

sente que há razões consistentes para o afastamento de tal resultado. Ora, se há razões, prossegue Siches,

então não se abandonou o campo da lógica, embora se tenha posto de lado uma certa lógica – a formal... Impõe-se, portanto, o desenvolvimento de outra forma de raciocínio, diferente da lógica formal dedutiva, que ele chama de lógica do razoável (COELHO, 2001, p. 84).

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POPPER rejeita a concepção corrente de que a ciência se caracteriza pelo emprego do método indutivo, contra a qual coloca o problema da indução, ou seja, a impossibilidade lógica de se inferir enunciados universais a partir de enunciados singulares, por mais numerosos que sejam.48

Para solução daquilo que denomina de problema da demarcação, ou seja, o estabelecimento de um critério que permita a distinção entre ciências empíricas e não empíricas (como as matemáticas, lógicas e metafísicas), POPPER propõe o que chama de critério da falseabilidade ou refutabilidade.

Para POPPER, embora uma teoria nunca possa ser considerada verificável – o que o leva à conclusão de que as verdades científicas são sempre provisórias – a distinção entre a ciência e a metafísica reside no fato de que suas proposições devem ser tais, de modo que se torne possível refutá-las pela experiência:

Ora, a meu ver, não existe a chamada indução. Nestes termos, inferências que levam a teorias, partindo-se de enunciados singulares “verificados por experiência” (não importa o que isto possa significar) são logicamente inamissíveis. Conseqüentemente, as teorias nunca são empiricamente verificáveis. Se quisermos evitar o erro positivista de eliminar, por força de critério de demarcação que estabeleçamos, os sistemas teóricos de ciência natural, deveremos eleger um critério que nos permita incluir, no domínio da ciência empírica, até mesmo enunciados insuscetíveis de verificação. Contudo, só reconhecerei um sistema como empírico ou científico se ele for passível de comprovação pela experiência. Essas considerações sugerem que deve ser tomado como critério de demarcação, não a verificabilidade, mas a

falseabilidade de um sistema. Em outras palavras, não exigirei que um

sistema científico seja suscetível de ser dado como válido, de uma vez por todas, em sentido positivo; exigirei, porém, que sua forma lógica seja tal que se torne possível validá-lo através de recurso a provas empíricas, sem sentido negativo; deve ser possível refutar, pela

experiência, um sistema científico empírico. (POPPER, 2000, p.41-42)

Reconhecendo que esse conceito de ciência empírica não elimina o problema da identificação do caráter empírico dos enunciados singulares – questão por ele denominada de problema da base empírica – POPPER propõe a idéia de que os enunciados básicos – que se refiram a fatos singulares – devem ser objetivos, ou seja, suscetíveis de testes intersubjetivos:

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Ora, está longe de ser óbvio, de um ponto de vista lógico, haver justificativa no inferir enunciados universais de enunciados singulares, independentemente de quão numerosos sejam estes; com efeito, qualquer conclusão colhida deste modo sempre pode revelar-se falsa: independentemente de quantos casos de cisnes brancos possamos observar, isso não justifica a conclusão de que todos os cisnes são brancos (POPPER, 2000, p. 27-28).

Os problemas da base empírica – ou seja, os problemas concernentes ao caráter empírico dos enunciados singulares e à maneira de submetê-los à prova – desempenham, assim, dentro da lógica da ciência, um papel que difere, até certo ponto, do que é desempenhado pela maioria dos outros problemas que nos preocuparão. Pois a maioria deste últimos mantém relação estreita com a prática da pesquisa, enquanto a questão da base empírica pertence, de maneira quase exclusiva, à teoria do conhecimento. Não obstante, terei de me ocupar deles, já que eles provocaram o aparecimento de muitas questões obscuras. Isto é especialmente verdade no que respeita à relação entre experiências perceptuais e enunciados básicos. (Chamo de “enunciado básico” ou “proposição básica” um enunciado que pode atuar como premissa numa falsificação empírica; em suma, o enunciado de um fato singular)...Qualquer que possa ser a nossa resposta final à questão da base empírica, um ponto deve ser deixado claro: se concordarmos com a nossa exigência de que enunciados científicos devem ser objetivos, então os enunciados que se refiram à base empírica da ciência deverão também ser objetivos, isto é, suscetíveis de teste intersubjetivo. (POPPER, 2000, p. 45-49)

Em outras palavras, para POPPER, a ciência se diz empírica quando se refere a enunciados básicos, que têm a forma de enunciados existenciais singulares, ou seja, “enunciados asseveradores de que um evento observável está ocorrendo em certa

região individual do espaço e do tempo”49.

Vista por esta ótica, a pretensão de cientificidade da Jurisprudência, ou em outras palavras, a viabilidade da existência de uma Ciência do Direito, da maneira como proposta por KELSEN, não se sustenta.

Atento às limitações já referidas no início deste capítulo, assinalo que não pretendo discutir, aqui, as questões relativas ao dualismo kelseniano entre ser e dever-ser, nem a analogia entre o princípio da causalidade e o princípio da imputação – pontos que considero questionáveis.

Observo, apenas, que não é possível estabelecer uma conexão segura entre proposições jurídicas e fatos objetivamente verificáveis pela experiência. Isso ocorre, segundo penso, com relação às proposições jurídicas que se refiram a normas gerais e abstratas, e, de forma ainda mais acentuada, com relação às proposições jurídicas que se refiram à normas individuais e concretas.

Não é certo que a afirmação sobre a existência (para KELSEN, validade ou vigência) de uma norma jurídica positiva, genérica e abstrata - em outras palavras, de

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uma lei - seja verificável objetivamente pela experiência. Basta recordarmos as inúmeras controvérsias e discussões no âmbito jurídico acerca da vigência ou não de uma determinada lei.

A crítica feita com base na doutrina de POPPER é ainda mais aguda. Se, para KELSEN, a existência de uma lei pode ser constatável empiricamente pela verificação do fato criador da norma, para POPPER essa é uma questão metafísica, já que não haveria como deduzir, do enunciado que diz que ocorreu um fato criador de uma lei, outros enunciados suscetíveis de verificação empírica50.

No tocantes às proposições jurídicas que se referem à licitude ou ilicitude das condutas humanas, e que, segundo KELSEN, são objetivamente verificáveis pela referência à norma que define a conformidade ou não-conformidade ao Direito, o problema é ainda maior. Isso porque tal assertiva pressupõe que haja uma identificação entre a conduta humana cuja licitude ou ilicitude deve ser afirmada pela proposição jurídica e a norma jurídica que qualifica, afirmativa ou negativamente, a conduta. Tal identificação é também objeto de inúmeras controvérsias e discussões no âmbito jurídico, e, pelas mesmas razões já apontadas, não pode ser empiricamente refutada.

Encerro este item com uma indagação: algum cientista da natureza teria alguma dificuldade em classificar como metafísica (ou não-científica) a seguinte proposição de KELSEN (1986, p. 327-329) sobre a norma fundamental? (segundo a Teoria Pura do Direito, fundamento de validade de todas as normas de um determinado ordenamento):

É na norma fundamental – da, historicamente, primeira Constituição – no mais profundo sentido, em que se baseia o ordenamento jurídico... O fim do pensamento da norma fundamental é: o fundamento de validade das normas instituintes de uma ordem jurídica ou moral positiva, é a interpretação do sentido subjetivo dos atos ponentes dessas normas como de seu sentido objetivo; isto significa, porém, como normas válidas, e dos respectivos atos como atos ponentes de norma. Este fim é atingível pela via de uma ficção. Por conseguinte, é de se observar que a norma fundamental, no sentido da vaihingeriana Filosofia do Como-Se não é hipótese – como eu mesmo, acidentalmente, a qualifiquei -, e sim uma ficção que se distingue de

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A possibilidade de teste intersubjetivo implica em que outros enunciados suscetíveis de teste possam ser deduzidos dos enunciados que devam ser submetidos a teste. Assim, se os enunciados básicos devem ser, por sua vez, suscetíveis de teste intersubjetivo, não podem existir enunciados definitivos em ciência – não pode haver, em Ciência, enunciado insuscetível de teste e, conseqüentemente, enunciado que não admita, em princípio, refutação pelo falseamento de algumas das conclusões que dele possam ser deduzidas (POPPER, 2000, p. 49).

uma hipótese pelo fato de que é acompanhada pela consciência ou, então, deve ser acompanhada, porque a ela não corresponde a realidade.