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4. POSITIVISMO JURÍDICO E CIÊNCIA DO DIREITO

4.4. Positivismo jurídico e concepção cientificista

O positivismo jurídico, em especial o de KELSEN, pretende dar as bases de um conhecimento científico do Direito, de uma Ciência do Direito, elevando a Jurisprudência ao status de ciência do espírito, ao status científico, mediante um método específico, distinto da ciência natural e da política:

Há mais de duas décadas que empreendi desenvolver uma teoria jurídica pura, isto é, purificada de todos os elementos de ciência natural, uma teoria jurídica consciente de sua especificidade porque consciente da legalidade específica do seu objeto. Logo desde o começo foi meu intento elevar a Jurisprudência, que – aberta ou veladamente – se esgotava quase por completo em raciocínios de política jurídica, à altura de uma genuína ciência, de uma ciência do espírito. Importava explicar, não as suas tendências endereçadas à formação do Direito, mas as suas tendências exclusivamente dirigidas ao conhecimento do Direito, e aproximar tanto quanto possível os seus resultados do ideal de toda ciência: objetividade e exatidão. (KELSEN, 1999, p. XI)

Para tanto, KELSEN delimita, primeiramente, o objeto da Ciência do Direito, fixando-o no exame do direito positivo, nas normas jurídicas, e excluindo, como já assinalado, as questões que digam respeito à justiça da norma – cujo estudo deve ser deslocado para a Filosofia do Direito – e das condições sociais da produção das normas – cujo estudo deve ser deslocado para a Sociologia do Direito:

Quando a si própria se designa como “pura” teoria do Direito, isto significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito. Quer isto dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é o seu princípio metodológico fundamental. Isto parece-nos algo de per si evidente. Porém, um relance de olhos sobre a ciência jurídica tradicional, tal como se desenvolveu no decurso dos sécs. XIX e XX, mostra claramente quão longe ela está de satisfazer à exigência da pureza. De um modo inteiramente acrítico, a jurisprudência tem-se confundido com a psicologia e a sociologia, com a ética e a teoria política. (KELSEN, 1999, p. 1)

Partindo da distinção entre ser e dever-ser – para KELSEN, um dado imediato da consciência40 – é traçada uma distinção entre a norma jurídica e a proposição jurídica, a primeira produto da autoridade, a segunda produto do cientista. Segundo KELSEN, a norma jurídica tem natureza prescritiva e não pode ser verídica ou inverídica, verdadeira ou falsa, mas apenas válida ou inválida; apenas as proposições jurídicas, de natureza descritiva, podem ser verdadeiras ou falsas41. Para KELSEN, a existência de uma norma é especificamente designada pela sua vigência ou validade, distinguíveis de sua eficácia.42

KELSEN distingue então ciência causal de ciência normativa. A ciência natural descreve os objetos por meio de leis naturais, que exprimem relação de causa e efeito, ou seja, mediante o princípio da causalidade, e tem a forma genérica “quando A é, B é”. Já a ciência normativa descreve seu objeto – o Direito - por meio de proposições jurídicas, não mediante o princípio da causalidade, mas mediante outro princípio, denominado princípio da imputação, e tem a forma genérica “quando A é, B deve ser”:

A natureza é, segundo uma das muitas definições deste objeto, uma determinada ordem das coisas ou um sistema de elementos que estão ligados uns com os outros como causa e efeito, ou seja, portanto, segundo um princípio que designamos por causalidade. As chamadas leis naturais, com as quais a ciência descreve este objeto – como, v.g., esta proposição: quando um metal é aquecido, dilata-se – são aplicações desse princípio. A relação que intercede entre o calor e a dilatação é a de causa e efeito... Na descrição de uma ordem normativa da conduta dos homens entre si é aplicado aquele outro princípio ordenador, diferente da causalidade, que podemos designar como imputação... Na proposição jurídica não se diz, como na lei natural, que, quando A é, B é, mas que, quando A é, B deve ser, mesmo quando B, porventura, efetivamente não seja. (KELSEN, 1999, p.85-87)

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(KELSEN, 1999, p. 6).

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A ciência jurídica, porém, apenas pode descrever o Direito; ela não pode, como o Direito produzido pela autoridade jurídica (através de normas gerais ou individuais), prescrever seja o que for. Nenhum jurista pode negar a distinção essencial que existe entre uma lei publicada no jornal oficial e um comentário jurídico a essa lei, entre o código penal e um tratado de Direito penal. A distinção revela-se no fato de as proposições normativas formuladas pela ciência jurídica, que descrevem o Direito e que não atribuem a ninguém quaisquer deveres ou direitos, poderem ser verídicas ou inverídicas, ao passo que as normas de dever-ser, estabelecidas pela autoridade jurídica – e que atribuem deveres e direitos aos sujeitos jurídicos – não são verídicas ou inverídicas mas válidas ou inválidas, tal como também os fatos da ordem do ser não são quer verídicos, quer inverídicos, mas apenas existem ou não existem, somente as afirmações sobre esses fatos podendo ser verídicas ou inverídicas (KELSEN, 1999, p. 82).

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KELSEN faz uma distinção entre juízos de valor e juízos de fato, salientando que tal distinção somente é possível se o valor for concebido como uma relação entre o objeto valorado e uma norma, cuja existência é pressuposta por aquele que emite o juízo axiológico.43

Dentre os juízos de valor, no âmbito do Direito, KELSEN distingue os juízos acerca da licitude ou ilicitude da conduta de alguém, que chama de “juízos de Direito” ou “juízos jurídicos de valor”, dos juízos acerca da justiça ou injustiça do próprio Direito, que denomina de “valores de Justiça”44. Quanto aos primeiros, KELSEN afirma que são verdadeiros ou falsos, e que as afirmações sobre a veracidade ou falsidade podem ser provadas recorrendo-se à prova da existência da norma jurídica que define a conformidade ou não conformidade da conduta, que pode, por sua vez, ser demonstrada empiricamente, pela demonstração dos fatos que condicionam a existência da norma:

Um juízo jurídico de valor que afirma a conformidade ou não- conformidade de certo ato à certa norma jurídica implica a afirmação da existência dessa norma. A existência de uma norma, a sua validade, como foi assinalado, é diferente da existência de um fato, e essa diferença deve ser sempre lembrada. Mas, como a existência de uma norma jurídica é condicionada por fatos, definidos, ela pode – indiretamente – ser verificada de uma maneira objetiva pela demonstração da existência destes fatos: a eficácia da ordem jurídica total à qual pertence a norma e a presença do fato que “cria” a norma. (KELSEN, 2001, p. 219-220)

Para KELSEN, portanto, o jurista prova a veracidade ou falsidade de uma afirmação quanto à licitude ou ilicitude de determinada conduta humana, fazendo referência à regra jurídica aplicável:

Consideremos, para começar, os juízos que atribuem a qualidade de “lícita” ou “ilícita” a certa conduta humana – juízos, portanto, que afirmam um valor de Direito.Também podem ser chamados “juízos jurídicos de valor”, no sentido próprio do termo. Eles são verdadeiros ou falsos, e sua verdade ou falsidade podem ser postas à prova. O significado desse juízo pode ser estabelecido analisando-se o modo como um jurista prova a verdade ou a falsidade de um juízo como “a conduta de B é lícita” ou “a conduta de B é ilícita”...Nossa dúvida quanto a ser lícita ou ilícita determinada conduta é resolvida quando podemos indicar uma regra jurídica que se refere, afirmativa ou negativamente, à conduta em questão. (KELSEN, 2001, p.204)

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(KELSEN, 2001, p.206)

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Em outras palavras, a concepção cientificista do Direito, própria do positivismo jurídico kelseniano, é baseada na idéia de que a existência ou validade de uma norma jurídica, e, por decorrência, a licitude ou ilicitude de uma determinada conduta, são juízos de fato (ou juízos de realidade, ou juízos jurídicos de valor), e, portanto, podem ser demonstrados por fatos verificáveis objetivamente:

Não existe, e não pode existir, um critério objetivo de justiça porque a afirmação de que algo é justo ou injusto é um juízo de valor que se refere a um fim absoluto, e esses juízos de valor são, pela sua própria natureza, de caráter subjetivo porque baseados em elementos emocionais de nossa mente, em nossos sentimentos e desejos. Não podem ser verificados pelos fatos, como podem os enunciados sobre a realidade...Inteiramente diversa é a situação no que diz respeito a enunciados sobre a realidade... Conseqüentemente, a questão quanto ao que é o Direito positivo, o Direito de certo país ou o Direito em um caso concreto, é a questão de um ato criador de Direito que teve lugar em certo tempo e espaço. A resposta a essa questão não depende dos sentimentos dos sujeitos que respondem; ela pode ser verificada por fatos objetivamente verificáveis, ao passo que a questão quanto a ser justo o Direito de certo país ou a decisão de certo tribunal depende da idéia de justiça pressuposta pelo sujeito que responde, e essa idéia baseia-se na função emocional de sua mente. (KELSEN, 2001, p. 292- 293)

4.4.1. Positivismo jurídico e lógica

Dentro do estudo da cientificidade da Jurisprudência, ainda que de forma limitada, como neste trabalho, convém expor, brevemente, as implicações entre a concepção cientificista e a lógica.

KELSEN afirma não ver maiores problemas na aplicação da lógica à Ciência do Direito, como em qualquer outra ciência, salientando que o problema ocorre quando se cogita da lógica no processo de produção e aplicação do Direito45. Quanto a essa última questão, KELSEN assinala que não é possível conceber-se o emprego da lógica no processo de aplicação do Direito, ou seja, no processo de produção da norma individual e concreta, a partir da norma geral e abstrata:

Mesmo se, portanto, a decisão resultasse logicamente da validade de uma norma jurídica geral que devesse ser aplicada, isto poderia ser o caso apenas em uma medida limitada porque sempre existe um arbítrio do órgão aplicador do Direito e, tanto quanto o conteúdo da norma individual caiba dentro desse arbítrio, já por isso não se trata de uma conclusão lógica porque esta parte da norma individual não pode

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ser implicada nas premissas* O conhecido filósofo americano DEWEY, John observou em seu ensaio “Logical Mehtod and Law”,

The Conrell Law Quarterly, vol. X, 1924, p. 22: “Nenhuma

proposição concreta, quer isto dizer, uma proposição de componente datado no tempo e localizado no espaço, resulta de quaisquer enunciados gerais ou de qualquer conexão entre eles”. (KELSEN, 1986, p. 306)

KELSEN rejeita as correntes que propõem uma lógica específica para o Direito, uma “lógica jurídica”, anotando que a lógica aplicável é a lógica formal:

Por conseguinte, não se pode falar, especificamente, de uma Lógica “Jurídica”. É a lógica Geral que tem aplicação tanto às proposições descritivas da Ciência do Direito – até onde a Lógica Geral é aqui aplicável – quanto às prescribentes normas do Direito. Ilmar Tammelo manifestou-se de modo inequívoco. Ele afirma, em sua publicação “Sketch for a Symbolic Juristic Logic”, Journal of Legal Education, vol.8, 1955, p. 278 ss: “Lógica Jurídica, como eu a entendo, é Lógica Formal empregada no raciocínio jurídico. Não constitui um ramo especial, mas é uma das aplicações especiais da Lógica Formal”. (KELSEN, 1986, p. 349)

Apesar da posição de KELSEN pela aplicabilidade da lógica formal apenas à Ciência do Direito, e não ao Direito em seu processo de produção e aplicação, é possível verificar que a concepção cientificista do estudo do Direito implicou em um grande esforço de emprego da lógica.

Esse esforço abrangeu a tentativa de formulação de lógicas aplicáveis especificamente ao Direito. Tal esforço é compreensível, dentro das já delineadas função persuasiva do discurso jurídico e concepção cientificista do estudo do Direito. Com efeito, a aplicação da lógica formal, principalmente através dos modelos matemáticos, é típica das ciências da natureza, em especial da Física. Por conseguinte,o discurso jurídico ganha muito em força de convencimento se também puder ser rotulado de raciocínio lógico.

A distinção kelseniana entre ser e dever-ser, e sua formulação do princípio da imputação, como equivalente, na ciência jurídica, ao princípio da causalidade das ciências da natureza, inspiraram a tentativa de criação de uma lógica específica, denominada lógica deôntica, como observa COELHO:

Para sintetizarmos essa diferença, chamemos p ao antecedente e q ao conseqüente. Tanto os cientistas em geral como os estudiosos das normas formulam o enunciado p → q. Mas a implicação teria sentido radicalmente diverso em uma e outra hipótese. Para os cientistas em geral, a implicação é causal (q segue p), e, para os estudiosos das

normas, ela é imputativa (q deve seguir p). Diz-se que a primeira relação opera no campo do saber apofântico e a segunda no do saber deôntico. O verbo composto dever ser é, assim, o conectivo deôntico, que serve de ligação entre o antecedente e o conseqüente de uma relação imputativa...De qualquer forma, é a partir da distinção entre o conhecimento criado pelos cientistas em geral e o dos estudiosos das normas (entre os quais os juristas, dedicados às normas jurídicas) que a filosofia do direito se propõe a questão sobre a existência de uma lógica especificamente deôntica. Em outros termos, se é diversa a construção das proposições, no interior do conhecimento sobre as normas, não seria o caso de se criar uma lógica própria, capaz de operar com essa diferença? Ou a mesma lógica construída a partir do saber apofântico teria já os instrumentos necessários à organização do saber deôntico? (COELHO, 2001, p. 48-49)

Outra tentativa referida por COELHO é a de SICHES, formulador da denominada lógica do razoável, aplicável a casos concretos, quando o resultado obtido pela lógica formal não é satisfatório46.