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3. O POSITIVISMO JURÍDICO

3.4. O positivismo jurídico: características

3.4.1. Direito positivo e Direito natural

A primeira característica do positivismo jurídico, presente em todas as correntes desta doutrina, é a posição com relação à concepção de direito natural.

Como já acentuado, o termo positivismo jurídico deriva do conceito de direito positivo, em oposição ao direito natural. O termo positivo tem várias acepções; numa delas significa real, fundamentado em fatos. É nesse sentido que a palavra é empregada na locução direito positivo: é um direito posto pelos homens, em oposição ao direito natural, que não é produzido, mas apenas reconhecido pelos homens. Embora só se tenha notícia histórica do emprego da expressão “direito positivo” a partir do final do século XI18, a distinção entre um direito natural e um direito posto pelos homens é muito mais antiga.

Já em ARISTÓTELES, é possível identificar a distinção entre o direito produzido pelos homens e um direito natural, que reside na essência das coisas. Embora a doutrina aristotélica sustente a mutabilidade do direito natural, característica incomum no jusnaturalismo, está presente a idéia de uma justiça universal, comum a todos os homens, extraída da própria natureza das coisas:

Da justiça política, uma parte é natural e outra parte legal: natural, aquela que tem a mesma força onde quer que seja e não existe em razão de pensarem os homens deste ou daquele modo; a legal, a que de início é indiferente, mas deixa de sê-lo depois que foi estabelecida: por exemplo, que o resgate de um prisioneiro seja de uma mina, ou que deve ser sacrificado um bode e não duas ovelhas, e também todas as leis promulgadas para casos particulares, como a que mandava oferecer sacrifícios em honra de Brásidas, e as prescrições dos decretos. Ora, alguns pensam que toda justiça é desta espécie, porque as coisas que são por natureza, são imutáveis e em toda parte têm a mesma força (como o fogo, que arde tanto aqui como na Pérsia), ao passo que eles observam alterações nas coisas reconhecidas como

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justas. Isso, porém, não é verdadeiro de modo absoluto mas verdadeiro em certo sentido; ou melhor, para os deuses talvez não seja verdadeiro de modo algum, embora para nós existe algo que é justo mesmo por natureza, embora seja mutável. Isso não obstante, algumas coisas o são por natureza e outras, não. (ARISTÓTELES, 1973a, Livro V, p.331)

Podemos denominar essa idéia de concepção essencialista do Direito natural, pois o fundamento do Direito reside na própria natureza ou essência das coisas. Outra denominação possível é a de jusnaturalismo cosmológico19. Exemplificando, nessa concepção, o direito à vida é um direito natural, porque repugna à natureza humana a morte de um ser vivo. Não difere desse conceito aristotélico a distinção, tradicional nos países que adotam o sistema da common law entre mala in se (condutas que são más em si mesmas, e por isso criminalizadas) e mala prohibita (condutas que não são nem boas nem más em si mesmas, mas criminalizadas por disposição legal).

Outra idéia do direito natural é aquela que o entende como direito de origem divina, posto por Deus, em oposição ao direito posto pelos homens. Numa primeira vertente dessa concepção, o direito natural pode ser determinado diretamente pela divindade, como os dez mandamentos transmitidos pelo próprio Deus20. Em outra vertente, o direito natural pode ser encontrado na consciência humana, mas como reflexo da vontade de Deus, como na distinção feita por Santo Tomás de AQUINO entre lex aeterna, lex divina, lex naturalis e lex humana21. Não obstante essa sofisticada divisão das diferentes espécies de leis, AQUINO aceita a divisão entre direito natural e direito positivo, que, segundo ele, aplica-se inclusive ao direito divino:

A vontade humana, em virtude de um consentimento comum, póde determinar o justo, em cousas que por si mesmas em nada repugnam à justiça natural. E as tal se aplica o direito positivo. Por isso, o Filósofo diz, que o justo legal é o que, ao princípio, póde ser indiferentemente

de um modo ou outro; mas uma vez estabelecido, deve permanecer no que é. Mas, o que em si mesmo repugna ao direito natural não póde a

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(TAGLIAVINI, 1999, p.25).

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5. Revelação do decálogo. 1Moisés convocou todo Israel e lhe disse: Escuta Israel, as leis e os costumes que hoje proclamo aos vossos ouvidos; vós os aprendereis e cuidareis de pô-los em prática. 2O SENHOR, nosso Deus, firmou uma aliança conosco no Horeb. 3Não foi com nossos pais que o SENHOR firmou esta aliança, é conosco que estamos hoje aqui, todos vivos. 4O SENHOR falou convosco face a face, sobre a montanha, no meio das chamas; 5e eu permanecia entre o SENHOR e vós, para vos comunicar a palavra do SENHOR, pois vós sentíeis medo diante do fogo e não havíeis subido a montanha. Ele disse:... 22O SENHOR falou estas palavras a toda a vossa assembléia, sobre a montanha, do meio das chamas, das nuvens e da noite espessa, com voz poderosa, e nada lhes acrescentou; ele as escreveu sobre duas tábuas de pedra, que me deu. (BÍBLIA, Dt 5, 1-5, 22)

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vontade humana torná-lo justo... Chama-se direito divino o que foi divinamente promulgado. E êle abrange, em parte, o justo natural, mas, cuja justiça escapa aos homens; e, em parte, o justo por instituição divina. Por onde, também ao direito divino pode aplicar-se, como ao direito humano, a divisão referida. Assim, a lei divina ordena certas cousas, por serem boas e proíbe certas por serem más. Mas, outras são boas porque são ordenadas e más porque proibidas (AQUINO, 1937, II, IIa, Q.LVII)

Podemos denominar essa idéia de concepção teológica do Direito natural, pois o fundamento do Direito reside na vontade divina, direta ou indiretamente manifestada.

E o Direito natural pode ser concebido, ainda, como produto da razão humana, ou seja, como deduzido diretamente pelo homem, sem apelo a Deus ou à natureza, de forma absolutamente racional. Embora seja historicamente anterior ao Iluminismo, é nessa corrente filosófica que tal concepção do Direito natural encontra maior prestígio. Exemplo dessa visão é o conceito de Direito de KANT, para quem é possível o estabelecimento de regras de conduta humanas, limitando os arbítrios individuais segundo uma lei universal de liberdade:

É justa toda ação que por si, ou por sua máxima, não constitui um obstáculo à conformidade da liberdade do arbítrio de todos com a liberdade de cada um segundo leis universais... Por conseguinte, a lei universal de direito: age exteriormente de modo que o livre uso de teu arbítrio possa se conciliar com a liberdade de todos, segundo uma lei universal, é, na verdade, uma lei que me impõe uma obrigação. (KANT, 1993, pg.46)

Podemos denominar essa idéia de concepção racionalista do Direito natural, pois o fundamento do Direito reside na razão humana.

O Direito positivo é concebido, portanto, em oposição ao Direito natural. Não provém de Deus, nem da essência das coisas, nem da razão humana. É produto da ação humana. Mas não é o simples reconhecimento da existência do direito positivo que caracteriza o positivismo jurídico, pois a doutrina jusnaturalista também reconhece a existência de um direito positivo. O que caracteriza o positivismo jurídico é que, para essa corrente, apenas o Direito positivo é Direito. Não existe Direito natural, ao menos

como Direito.22 Apenas as normas jurídicas positivas podem ser objeto do estudo da Ciência do Direito, pois apenas essas podem ter sua validade empiricamente comprovada:

Normas jurídicas positivas podem ser objeto de uma ciência jurídica, porque a existência – e isso significa a validade – de uma norma positiva é condicionada pela existência de fatos. Esses fatos são os atos pelos quais a norma jurídica é criada, como um costume, um ato legislativo, judicial ou administrativo, uma transação legal, juntamente com a eficácia da ordem jurídica total à qual pertence a norma. Ao descrever seu objeto como normas, a ciência do Direito refere-se a esses fatos; e a positividade do Direito consiste apenas na relação com eles... A afirmação de que certa conduta humana (ou certo ato do Estado) é legal ou ilegal pode ser verdadeira ou falsa, sendo verificável pela experiência. (KELSEN, 2001, p. 360)

Uma conseqüência desse entendimento é o chamado ceticismo moral ou ceticismo ético, próprio do positivismo jurídico. É necessário ressalvar, aqui, a corrente denominada positivismo ético, que identifica justiça com legalidade. Mas, na concepção dominante, inclusive no positivismo jurídico kelseniano, a relativização da moral e da justiça, e a impossibilidade do estudo científico desses temas, leva à conclusão de que o Direito, para ser tratado cientificamente, deve excluí-las do seu objeto.23

Assim, de forma mais precisa, para o positivismo jurídico, a questão do Direito natural é deslocada do campo do Direito. Ou, quando muito, a questão do Direito natural é deslocada do campo da Ciência do Direito para o campo da Filosofia do Direito.24

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Por obra do positivismo jurídico ocorre a redução de todo o direito a direito positivo, e o direito natural é excluído da categoria do direito: o direito positivo é direito, o direito natural não é direito. A partir deste momento o acréscimo do adjetivo “positivo” ao termo “direito” torna-se um pleonasmo mesmo porque, se quisermos usar uma fórmula sintética, o positivismo jurídico é aquela doutrina segundo a qual não existe

outro direito senão o positivo. (BOBBIO, 1995, p.26).

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A jurisprudência como ciência do Direito tem normas positivas por objeto. Apenas o Direito positivo pode ser objeto de uma ciência do Direito. É o princípio do positivismo jurídico, em oposição à doutrina do Direito natural, que pretende apresentar normas jurídicas não criadas por atos de seres humanos, mas deduzidas a partir da natureza. (KELSEN, 2001, p.359).

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A ciência jurídica dos séculos XIX e XX declara-se expressamente incapaz de incluir o problema da justiça no objetivo de suas investigações. Em princípio, pelo menos, o positivismo limita-se a uma teoria do Direito positivo e à sua interpretação. Conseqüentemente, ele se mostra ansioso por manter a diferença, e mesmo o contraste entre “justo” e “jurídico”, uma antítese que se manifesta na nítida separação entre a filosofia jurídica e a ciência jurídica. (KELSEN, 2000, p.558).