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3. VARIAÇÃO LINGUISTICA: PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

4.2. DIREITOS LINGÜÍSTICOS

No preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Lingüísticos28 é abordada a

questão de que há, secularmente, e no mundo todo, uma tendência do Estado reduzir a diversidade e favorecer atitudes adversas à pluralidade cultural e ao pluralismo lingüístico. E é nesse contexto que a discussão dos direitos lingüísticos é de grande relevância por representar mais um marco frente a uma visão homogeneizante de sociedade e conseqüentemente de língua.

Para Hamel (2003), dois movimentos são importantes para se entender o rompimento com tal visão: a globalização, que se caracteriza por uma integração cada vez maior dos capitais, do comércio, da divisão mundial do trabalho, das tecnologias e dos meios de comunicação; e a crescente afirmação de uma diversidade cultural, étnica e lingüística, que em tempos anteriores parecia sucumbir sob a pressão homogeneizadora dos Estados nacionais. Para o autor, ambos os processos conduzem-nos a repensar as tradicionais divisões entre o local, o nacional e o global. Tais mudanças têm levado ao surgimento de “terceiras culturas desterritorializadas como a cultura empresarial, a eletrônica, a ecologia e múltiplas expressões de sincretismos e hibridações” (2003, p.48).

Para o autor, tais mudanças sugerem a caracterização da cultura mundial em termos de diversidade e resistência à sistematicidade e à ordem. Entretanto a diversidade não implica

uma tenaz resistência à mudança, como um entrincheiramento das minorias nas suas zonas de refúgios. [...] as reivindicações formulam-se em termos dos direitos modernos, tanto em países industrializados como em periféricos, e os movimentos dos subordinados apropriam-se cada vez mais dos temas nacionais e globais. (Hamel, 2003, p. 48-49)

Ao citar as transformações na América Latina, fruto do processo de globalização, Hamel (op.cit.) cita que tais mudanças operam simultaneamente “a partir de fora e a partir de dentro” (p. 49-50) dos Estados nacionais. Assim, no âmbito interno, surgiram e estão ganhando força movimentos étnicos que geram demandas que já não podem ser atendidas no

Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (1989); Declaração Universal dos Direitos Coletivos dos Povos (1990), Declaração Final da Assembléia Geral da Federação Internacional de Professores de Línguas Vivas (Hungria, 1991), dentre outras.

âmbito de um modelo de Estado nacional tradicionalmente constituído, como, por exemplo, o direito ao território, à autonomia, ao controle sobre recurso, à educação e à justiça.

Mesmo observando o ascendente movimento de novas demandas sociais, cita o autor que, contraditoriamente, observa-se a crescente ameaça de extinção de uma grande parte das línguas do mundo não obstante as múltiplas expressões de resistência de seus falantes. Cita Hamel (op. cit.) que, em 96 por cento dos Estados do mundo, coexistem diferentes grupos lingüísticos e que as relações de dominação e subordinação e os processos de agressão e resistência entre línguas e seus falantes constituem fenômenos praticamente universais.

Para o autor, nesse contexto, o conceito de direito lingüístico adquire uma importância cada vez maior. Tais direitos “fazem parte dos direitos humanos fundamentais, tanto individuais como coletivos, e sustentam-se nos princípios universais da dignidade dos humanos e da igualdade formal de todas as línguas” (2003, p. 51). No âmbito individual significam o direito de cada pessoa de identificar-se de forma positiva com sua língua materna, além de ter esta identificação respeitada pelos demais. No âmbito coletivo, ou seja, das comunidades lingüísticas, os direitos lingüísticos compreendem o direito de todos de manter sua identidade e alteridade etnolingüísticas.

Não obstante a constituição dos direitos lingüísticos, na atualidade, muitos destes postulados que embasam o entendimento de tais direitos são matéria de árduas discussões entre especialistas e forças políticas divergentes, como assinala o próprio Hamel, que sugere que se estabeleça a sua relação com os direitos gerais. Questiona, ademais, à comunidade científico-acadêmica de que maneira o estudo de temas centrais da Sociolingüística, “como a planificação29 e a política da linguagem, a repressão e a resistência de línguas subordinadas ou

o uso das línguas nas instituições, pode contribuir para a definição dos direitos lingüísticos, para a sua implementação e defesa” (2003, p. 52)

O questionamento de Hamel (op.cit) justifica-se em razão de que a legislação em matéria lingüística é um fenômeno bastante recente como assevera o próprio autor. Segundo ele, poucas vezes no passado os direitos lingüísticos foram objeto de legislações, já que havia uma consideração de que as línguas pertenciam ao espaço dos costumes e tradições.

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O conceito de planificação lingüística se apóia em um projeto lingüístico coletivo. Por visar à harmonização lingüística, a planificação deverá resultar de um consenso social para que seja bem-sucedida. Normalmente, a planificação decorre de um esforço conjunto para o estabelecimento de uma política lingüística nacional. Nesse sentido, poder-se-ia dizer que a planificação é regulamentada pelas disposições jurídicas que, em matéria de língua, acabam por se constituir em um conjunto de regras legisladoras. É comum, em países onde há conflitos lingüísticos causados por bilingüismo, o estabelecimento de leis normalizadoras em função do tipo de política adotada pelo Estado para o uso da(s) língua(s).

Metáforas biológicas persistentes – as línguas nascem, crescem, decaem e morrem – contribuíram para a crença generalizada de que não havia nada para se regular, planejar ou legislar em relação às línguas (e a linguagem), que existem como entes vivos cujo ciclo de vida é altamente resistente às regulamentações sociais (Hamel, 2003, p. 57).

Mostra ainda que essa metáfora encobre a natureza essencialmente histórica e social das línguas. Mas reconhece que se constitui grande desafio transladar algo que convencionalmente se regula por tradições e costumes para o terreno da legislação, sem estrangular ao mesmo tempo as dinâmicas socioculturais e históricas que produziram estes hábitos, e isto, para ele, diz respeito a toda a legislação que se propõe regular algum tipo de comportamento humano.

O autor ainda cita que a legislação lingüística surge fundamentalmente da necessidade de proteger os direitos de um grupo lingüístico quando este sente que outro ameaça sua língua no mesmo território. Como as maiorias dominantes normalmente não se sentem ameaçadas, elas não mostram interesse em legislar em matéria lingüística.

Hamel (2003), ao comentar a necessidade de legislações que zelem pelos direitos lingüísticos, cita que nos EUA, não obstante esta clareza, poucos sociolingüistas relacionaram suas pesquisas com temas de legislação e direitos lingüísticos nas primeiras etapas da sociolingüística. Segundo ele, tal omissão está presente inclusive nos fundadores do campo que iniciaram as pesquisas sobre a desigualdade lingüística. Cita, inclusive, como exemplo, o próprio Labov. Destaca, entretanto, o trabalho de Kloss em 1960, sobre a etnopolítica na Europa e sua pesquisa norte-americana sobre os direitos lingüísticos dos imigrantes em 1969, como pioneiros para o debate sobre os direitos lingüísticos e a planificação da linguagem, muito embora tais trabalhos não tenham tido, em sua visão, eco na sociolingüística americana e européia da época.

Apesar dos entraves citados por Hamel, no início, é inegável, do ponto de vista contemporâneo, a contribuição da Sociolingüística para o avanço das discussões sobre o uso das línguas como um direito. Embora a discussão dos direitos lingüísticos comumente esteja ligada às minorias étnicas, cujas línguas são ameaçadas, os postulados sociolingüísticos possibilitam-nos alargar a compreensão dos direitos lingüísticos na medida em que documentos importantes passam a introjetar tal visão teórica. É o caso, por exemplo, da já citada Declaração Universal dos Direitos Lingüísticos. Neste documento, respaldado internacionalmente, “os direitos de todas as comunidades lingüísticas são iguais e independentes da consideração jurídica ou política das línguas oficiais, regionais ou minoritárias” (cf. Oliveira, 2003, p.27). A concepção traduz o entendimento de uma

sociedade lingüisticamente heterogênea e, por conseguinte, de que toda a diversidade lingüística em suas inúmeras particularidades deve ser respeitada.

Assim, já não há sustentação, pelo menos teórica, para a valoração de fala certa e fala errada. Os diversos falares, observados numa dada comunidade de fala, só corroboram o princípio da variabilidade das línguas, postulado pela Sociolingüística. A estigmatização da linguagem implica violação dos direitos lingüísticos (e, portanto, dos direitos humanos).

A idéia dos direitos lingüísticos suscita, entretanto, a necessidade de reflexão acerca de sua eficácia. Hamel (op.cit) defende que, para que haja a eficácia do exercício destes direitos, vistos a partir da ótica do desenvolvimento internacional das minorias, é necessário que sejam observados dois importantes componentes: 1) o princípio da igualdade no trato dos membros das minorias e das maiorias; a igualdade formal das comunidades lingüísticas e 2) a adoção de medidas especiais para garantir a manutenção das características específicas do grupo. Para ele, somente a combinação destes dois elementos pode constituir a base de garantias lingüísticas no contexto de uma política de pluralismo cultural.

Nessa perspectiva, pensar nos direitos lingüísticos nos remete a analisar sua dimensão individual e coletiva como já assinalava Hamel (op.cit). No princípio da igualdade lingüística dos sujeitos e da igualdade de oportunidades (como na educação, por exemplo), reside a dimensão individual de tais direitos. E no reconhecimento de que as minorias lingüísticas requerem um trato preferencial como comunidades, o que exige ações do Estado no sentido de assegurar a sobrevivência da comunidade enquanto coletividade, reside a dimensão coletiva destes direitos. O fato de um sujeito só poder exercer seus direitos individuais de comunicar-se na sua língua, à medida que existe e sobrevive sua comunidade de fala, demonstra que todo direito lingüístico se embasa, em última instância, na comunidade, e tem, portanto, um caráter coletivo.

O entendimento da dimensão coletiva de tais direitos é imprescindível para a introjeção da necessidade da defesa dos direitos lingüísticos. Hamel (1995), ao abordar as relações sociolingüísticas entre a língua nacional e as línguas indígenas na América Latina, já assinalava que elas são marcadas por um conflito lingüístico caracterizado por uma relação assimétrica entre uma língua dominante e outra dominada. Além do mais, há a tendência histórica de uma crescente expansão da língua dominante e o conseqüente processo de agressão (a que Hamel chama de desplazamiento) da língua indígena em seus aspectos geográficos, em seu valor funcional e em suas estruturas discursivas e gramaticais.

A esta agressão há uma resistência lingüística e étnica dos dominados, que continuam a usar a sua língua normalmente na comunicação interna das comunidades e das

famílias e em suas atividades tradicionais. Isto representa fator de identidade da consciência lingüística desses falantes. Hamel identifica, entretanto, uma assimetria: de um lado a resistência; do outro o surgimento de múltiplos processos de apropriação e incorporação da cultura hegemônica, por esses falantes.

Ao lançar um olhar sociolingüístico sobre o processo escolar destas comunidades indígenas, observando a relação entre língua e cultura, Hamel (op.cit.) diz que o problema da educação bilíngüe não se limita à escolha de uma língua ou de outra para se educar. Não basta escolher a língua indígena para que se obtenham resultados satisfatórios e ao mesmo tempo para contribuir para a preservação dessa língua. Uma educação apropriada deve adequar seus métodos à realidade cultural de seus alunos; deve ser essencialmente intercultural. E, para tanto, segundo o autor, é necessário uma reorientação no currículo escolar, de modo que este possa assinalar uma educação construída na perspectiva da interculturalidade, em que componentes da cultura dominante possam ser adquiridos, mas não em detrimento da própria cultura indígena. Defende ainda o sociolingüista que os indígenas devem exercer um controle sobre seu sistema educativo, tanto na dimensão político-administrativo quanto técnico- pedagógico.

Na história do Brasil, a violação dos direitos lingüísticos das minorias, ao longo da história, também pode ser claramente observada. Segundo Oliveira (2003), durante muito tempo o Estado português e, em seguida, o Estado brasileiro tentaram construir a imagem do Brasil como um país cultural e lingüisticamente unitário, admitindo somente as variações que pudessem ser subsumidas no conceito de cultura brasileira. Cita o autor que essa intervenção, no sentido de criar a unidade na língua, vem sempre permeada de violência física e simbólica contra os falantes que não se enquadram no padrão estipulado pelo Estado. A exemplo disso, cita a política de integração do índio, do negro e do imigrante que pressupunha a destruição das suas línguas, de seus falares, de sua cultura e a adaptação ao formato luso-brasileiro. Muitas foram as reações de resistência desses povos ao virem seu patrimônio cultural e lingüístico sendo espoliado pela política de imposição do português.

Acrescenta ainda Oliveira que, com o advento da Constituição Federal de 1988, oficialmente, essa política mudou. Os índios tiveram reconhecidos seus direitos sobre suas terras, e também o direito a sua cultura e a sua língua (autóctones). Com os cidadãos falantes de outras línguas (alóctones) o mesmo não aconteceu; os direitos culturais e lingüísticos não lhes foram concedidos e há a continuidade da política integracionista.

Para além da violência contra os falantes autóctones e alóctones, é forte no Brasil a discriminação dos falantes de variedades não padrão da língua portuguesa, gerando

profundo preconceito lingüístico para com aqueles que não falam a variedade socialmente prestigiada. Na visão de Bagno (2003), essa desclassificação da variedade lingüística de um falante de uma língua, acusando-o de não saber falar sua própria língua, é o mesmo que agredi-lo de forma muito profunda na sua integridade física, individual e social, e isso se caracteriza como preconceito social.

No caso brasileiro, notoriamente visualiza-se que, dentro de uma comunidade nacional, é a partir do fator social que acontece a supremacia de uma dada variedade lingüística sobre as demais variedades. Aquela que é pinçada para o topo o é com base em fatores de poder, prestígio social, nível de escolaridade. Para Gnerre (1998), uma variedade lingüística tem o mesmo valor que tem os seus falantes na sociedade, ou seja, ela é o reflexo do poder e da autoridade que eles têm nas relações econômicas e sociais. Em se tratando da variedade lingüística dos falantes das classes socialmente desprestigiadas, a sua fala, além de mantê-los longe do poder, poderá não ter valor junto ao poder constituído uma vez que “a linguagem constitui o arame farpado mais poderoso para bloquear o acesso ao poder” (p.22).

A partir da observação da realidade sociolingüística brasileira, urge o aprofundamento da reflexão acerca dos direitos lingüísticos. As atitudes lingüísticas preconceituosas para com as variedades não-padrão da língua constituem uma violação do direito básico de todo e qualquer falante de expressar-se em sua língua materna, usando a variedade de sua comunidade de fala.

Embora a discussão dos direitos lingüísticos não se restrinja à Sociolingüística, pois há interseção com várias outras áreas como Direito e Antropologia, por exemplo, é determinante, sobremaneira, o construto teórico dessa ciência para municiar todos aqueles que lutam pela superação das concepções estereotipadas acerca da língua e dos usuários das diversas variedades lingüísticas. As mudanças (ainda que tímidas) nas legislações advindas da política lingüística dão saliência a essa argumentação.

A contribuição da Sociolingüística é maximizada, sobretudo, quando se trata de Educação. No processo de ensino-aprendizagem, toda atitude de cunho discriminatório com a variedade falada pelo educando pode gerar efeitos bastante maléficos que comprometerão a construção positiva de sua “auto-estima” lingüística, ou melhor, lingüístico-social. E então, é oportuno refletirmos sobre um dos questionamentos de Maurais (1995), membro do Conselho da língua francesa no Quebec, ao abordar a proteção legal das minorias lingüísticas nos tratados internacionais, em texto que antecede a aprovação da Declaração dos Direitos Lingüísticos. Ao estabelecer a relação dos direitos lingüísticos com a educação formal, questiona: “o direito a instrução deveria ser interpretado como o direito a receber instrução

em língua materna, ou em uma língua oficial do país ou ainda, seria o direito a receber instrução sem importar a língua?” (p. 97)

O questionamento é oportuno ao tempo em que nos propomos refletir sobre como a escola aborda, em suas práticas pedagógicas, a questão da variação lingüística, que, como defende Bortoni-Ricardo (2005), trata-se de um processo de afirmação da identidade do falante.

4.3. Legislação educacional brasileira: bases para uma escola defensora dos direitos