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3. VARIAÇÃO LINGUISTICA: PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

3.5. VARIAÇÃO LINGÜÍSTICA NO PORTUGUÊS BRASILEIRO

Vários são os estudos sociolingüísticos que vêm corroborar a efervescência do fenômeno da variabilidade lingüística no português brasileiro (PB), revelando dessa forma que a língua está “sujeita às vissitudes e peripécias da vida em sociedade” (Bagno, 2007, p.116).

Se contrastarmos, por exemplo, o PB com o português falado em Portugal veremos que de fato a língua falada pelos brasileiros é fruto das “peripécias” dessa sociedade e que muda livre do controle de uma normativização que a faz divergir do português europeu, como assinala Mattos e Silva (2004c), ao abordar a reestruturação sintática do PB19, que segundo ela representa um aspecto crucial da diversidade socioletal brasileira.

Para ilustrar tal situação nos reportamos, por exemplo, à questão da ergatividade20, que soaria totalmente agramatical para um falante do português de Portugal.

Bagno (2004, p.169) apresenta o exemplo “Eu vim de táxi porque meu carro está consertando: ele quebrou a barra da direção” e mostra que para o brasileiro tal construção em que o carro aparece como sujeito, ocupando uma função gramatical que corresponde tipicamente ao agente, quando de fato ele é o paciente, é normal no PB, mas seria taxada de esquisita, truncada pelo falante português que não conhece esse tipo de construção ergativa.

Ilari e Basso (2006), ao expor sobre a variabilidade do PB, usando metodologicamente a forma hierárquica de níveis estruturais mais conhecida e aceita, fonética/fonologia > morfologia> sintaxe> léxico, demonstram com uma riqueza de detalhes que a variação e a mudança ocorrem em todos os níveis do PB, o que assinala mais marcadamente essa diferença entre o PB e o português europeu. Isto reforça o princípio defendido pela Sociolingüística de que a língua só pode ser estudada no seio da sociedade.

Esse entendimento é o mesmo de Orlandi e Guimarães (2001), ao traçar o mapa histórico da colonização brasileira. Para eles, ela só começa efetivamente em 1532, com a instalação dos portugueses no Brasil e com a transposição da língua portuguesa para a nova terra. Mostram, entretanto, que o português começa a ser falado em um novo espaço-tempo,

19 Sobre essa questão ver Mattos e Silva (2004, p.143).

pois as novas condições levam a um funcionamento não homogêneo da língua portuguesa ao longo dos séculos de colonização, fato observável desde o início até o fim do século XIX, quando o português se constitui em língua nacional no Brasil21.

Nesse processo vai nascendo uma língua “mesclada”. De um lado tem-se a língua a que chamamos de português-brasileiro, profundamente marcada pela interferência das línguas indígenas e africanas, sobretudo no vocabulário, na fonética e na sintaxe. De outro, a outra variedade do português, mais resistente às interferências, alimentada por influências européias, usada em contextos oficiais, e falada por uma parcela da população ligada à administração da colônia. Essa separação, entretanto, fragiliza-se ao longo dos tempos e o que de fato passa a existir é um português marcadamente brasileiro, com as características dessa sociedade reconhecidamente multicultural.

Segundo Orlandi e Guimarães (op.cit.), o que menos importa é nomear oficialmente a língua seja como língua portuguesa, seja como língua brasileira; o destaque deve recair sobre o caráter identitário dessa “nova” língua., pois, segundo eles

O que está em questão não é somente a predominância de uma língua sobre as outras, nem mesmo a questão da língua do Estado, mas a língua enquanto signo de nacionalidade, ou seja, em sua relação com a nação. E é neste sentido que será percebida a diferença da língua no Brasil em relação à língua em Portugal (Orlandi e Guimarães, 2001, p.24).

Essa identidade brasileira que a língua portuguesa assume no país, revela a riqueza da diversidade lingüística dessa sociedade. Não obstante essa realidade, ainda há no país segmentos que não concebem a língua como algo que varia e “exigem” uma língua homogênea. Sobre esse assunto, Mattos e Silva (2004 d, p.69) lembra-nos que a ideologia da homogeneidade é imposta a brasileiros portadores de dialetos regionais, quando estes tentam ascender a certas funções para as quais os dialetos dos grandes centros brasileiros do sul são exigidos. Profissionais como os repórteres dos grandes grupos de televisão, por exemplo, são levados a deixar de lado suas marcas fônicas regionais, para desempenhar a intercomunicação em LP.

21 Os autores distinguem quatro momentos importantes que antecederam o momento em que o português se

constitui em língua nacional no Brasil: o 1º momento vai do início da colonização até a expulsão dos holandeses em 1654; o 2º momento vai de 1654 a 1808, data da chegada da família real portuguesa no Brasil, quando da invasão de Portugal por Napoleão; o 3º momento começa com a chegada da família real portuguesa no Brasil, terminando em 1826, data na qual a questão da língua portuguesa como língua nacional no Brasil é oficialmente formulada e o 4° momento começa em 1826, quatro anos depois da independência, quando um deputado propôs que os diplomas dos médicos no Brasil fossem redigidos em linguagem brasileira. Depois de longas discussões sobre tal questão é proposta uma lei que estabelece que os professores devem ensinar a ler e a escrever utilizando a gramática da língua nacional. (Orlandi e Guimarães, op.cit.).

No caso da dialetação social ou diastrática, a autora destaca o corte entre os dialetos dos falantes das classes sociais mais altas em relação aos dos falantes das classes populares, com baixo nível de escolaridade ou sem escolaridade nenhuma. E frisa a importância que assume a questão da norma de prestígio social nesse contexto:

[...] numa nação multilíngüe e pluriética, em que os grandes centros abrigam representantes de diversas etnias, diversos estratos sociais, migrantes rurais de vários pontos do país, todos eles diversamente também articulados entre si, avulta o problema da norma ou das normas de prestígio, que efetivamente existem, e que se tornam socialmente necessárias para os cânones que serão a base, sobretudo, para a língua na sua manifestação escrita e para os registros formais da língua falada (Mattos e Silva, 2004 d, p.71).

Embora não deixemos de reconhecer a indiscutível importância dos falantes das demais variedades lingüísticas dominarem também a variedade tida como padrão, entendemos, entretanto, que é imprescindível desmistificar no PB essa visão de apenas uma variedade legítima. A gama de estudos de variação lingüística realizada no Brasil nos fornece todos os subsídios necessários.

Bortoni-Ricardo (2004), ao tratar da ecologia dessa diversidade lingüística do PB, a distribui em três contínuos: o contínuo de urbanização, de oralidade-letramento e de

monitoração estilística.

No contínuo de urbanização a autora situa, numa ponta dessa linha imaginária, os falares rurais mais isolados, em que predomina a cultura da oralidade; na outra ponta, situa os falares urbanos que, ao longo do processo sócio-histórico, foram sofrendo a influência de codificação lingüística, tais como a definição do padrão correto de escrita e do padrão correto de pronúncia. Segundo a autora, não existem fronteiras rígidas que separem os falares rurais, rurbanos ou urbanos. É possível situar qualquer falante do português brasileiro em um determinado ponto desse contínuo, como demonstrado a seguir:

Variedades área urbana Variedades urbanas rurais isoladas padronizadas

No contínuo de oralidade-letramento22, Bortoni-Ricardo (op.cit.) situa os falantes “de acordo com seus antecedentes e atributos” (2004, p.61). Neste contínuo, ela dispõe os eventos de comunicação, conforme sejam estes mediados pela língua escrita, a que chama de eventos de letramento ou eventos de oralidade, em que há influência direta da língua escrita, conforme demonstrado abaixo:

eventos de oralidade eventos de letramento

Também nesse contínuo a autora defende que não existem fronteiras bem marcadas entre os eventos de oralidade e de letramento, pois um evento de letramento, por exemplo, pode ser permeado de minieventos de oralidade.

No terceiro contínuo sugerido por Bortoni-Ricardo (2004), o de monitoração estilística, a autora situa “desde as interações totalmente espontâneas até aquelas que são planejadas e que exigem muita atenção do falante” (2004, p.62), como demonstrado a seguir:

- monitoração + monitoração

Segundo ela, de modo geral, os fatores que levam os falantes a monitorar o estilo são: o ambiente, o interlocutor e o tópico da conversa.

Para Mollica (2007), a proposta apresentada por Bortoni-Ricardo (op.cit) visualiza não só os traços descontínuos analisados e identificados nos pólos rural e urbano, mas leva em conta recursos comunicativos próprios de discursos monitorados e não-monitorados, o que, a seu ver, elimina equívocos sobre a relação fala/escrita que, grosso modo, cria categorias estanques e dicotômicas, protótipos distantes da complexidade da diversidade lingüística brasileira.

Vemos assim que a realidade lingüística brasileira é indiscutivelmente diversificada. Vários trabalhos Sociolingüísticos desenvolvidos no Brasil, baseados na perspectiva variacionista, têm refletido o crescimento qualitativo e quantitativo dessa área. A

22 Segundo Kleiman (apud Mollica, 2007), Letramento é um conjunto de práticas sociais que usam a escrita,

enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos. Este conceito transcende o conhecimento da escrita fora do âmbito escolar, na medida em que, numa sociedade complexa, a escrita integra todos os momentos do cotidiano social.

título de ilustração, podemos destacar alguns projetos responsáveis por pesquisas nesta área: a) o VALPB - Variação Lingüística no Estado da Paraíba; b) o NURC - Projeto Norma Urbana Culta. Este último, segundo Bagno (2004), começou a ser executado no final da década de 1960 em cinco cidades brasileiras: Recife, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre. Dado o seu raio de alcance geográfico que tem contribuído sobremaneira para o desenvolvimento da pesquisa sociolingüística no Brasil, cabe-nos aqui destacar os objetivos do NURC, sobretudo, pelo destaque que dá ao ensino de língua portuguesa no país. São os seguintes:

1. Dispor de material sistematicamente levantado que possibilite o estudo da modalidade oral culta da língua portuguesa em seus aspectos fonético, fonológico, morfossintático, sintático, lexical e estilístico;

2. Ajustar o ensino de língua portuguesa, em todos os seus graus, a uma realidade lingüística concreta, evitando a imposição indiscriminada de uma só norma histórico-literária, por meio de um tratamento menos prescritivo e mais ajustado às diferenças lingüísticas e culturais do país;

3. Superar o empirismo na aprendizagem e ensino da língua-padrão pelo estabelecimento de uma norma culta real;

4. Basear o ensino em princípios metodológicos apoiados em dados lingüísticos cientificamente estabelecidos;

5. Conhecer as normas tradicionais que estão vivas e quais as superadas, a fim de não sobrecarregar o ensino com fatos lingüísticos inoperantes;

6. Corrigir distorções do esquema tradicional da educação, entravado por uma orientação acadêmica e beletrista (Bagno, 2004, p.52).

Com base nos dados do NURC, há um trabalho de investigação que passou a constituir um novo projeto: a Gramática do português falado, coordenado pelo professor Ataliba de Castilho.

Segundo Bagno (2004), além dos dois projetos citados existem outros projetos de documentação e análise da língua viva, conduzidos por vários grupos de pesquisadores em diferentes regiões do país, que merecem destaque. Dentre estes cita o VARLINE – Variação Lingüística no Nordeste, que reúne sob essa sigla vários projetos em diferentes centros de estudo dessa região e o VARSUL – Variação Lingüística na Região Sul, responsável pela coleta e estudo da língua falada no Paraná, em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, e o CENSO, na cidade do Rio de Janeiro, “que investiga a língua falada pelas pessoas com escolaridade fundamental e média naquela região metropolitana” (Bagno, 2004, p.54). Para o autor, os objetivos tanto do VARSUL quanto do CENSO são ainda mais amplos; não se limitam à coleta e ao estudo somente do falar urbano das camadas cultas da população, mas investigam também a língua falada pelas pessoas com menor nível de escolarização.

Considerações finais do capítulo

A teoria Sociolingüística, ao relacionar língua e sociedade, vem jogar por terra a idéia da homogeneidade lingüística, demonstrando que o fenômeno da variação é intrínseco a todas as línguas. Esse paradigma inaugura, por conseguinte, a concepção de língua dinâmica contraditando com a visão homogeneizante e estática postulada por outras correntes de pensamento, dentre estas, o prescritivismo.

A mudança de concepção de língua vai implicar necessariamente alteração na concepção de gramática, o que, por sua vez, possibilita uma ressignificação da dimensão que a norma-padrão assume, sobretudo em se tratando de ensino.

Vários estudiosos que têm se debruçado sobre o estudo da variação lingüística vêm, através dos muitos projetos de cunho sociolingüístico, dando importantes contribuições para o fortalecimento de uma pesquisa qualitativa no Brasil.

No próximo capítulo, veremos o papel político da sociolingüística no contexto do ensino de língua portuguesa no país.

4. SOCIOLINGUISTICA: O VIÉS POLÍTICO

Apresentação

Neste capítulo do trabalho, apresentamos uma outra contribuição da Sociolingüística. Para além da descrição da língua em uso, esta ciência possibilita o diálogo de saberes com outras áreas das ciências humanas como, por exemplo, a Educação. Nessa perspectiva, traz à luz da discussão, o papel político que o lingüista pode e deve desempenhar na transformação de uma sociedade como a brasileira, notadamente marcada pela exclusão social, “ao estudar com afinco, as idéias difundidas na sociedade em torno das noções de correção lingüística, de bem falar e de escrever “certo” ” (Bagno, 2001, p.21).

Esse alargamento do campo de atuação da Sociolingüística, aqui denominamos de “viés político”. Assim sendo, discutiremos a política lingüística, a que Calvet (2002) chama de Sociolingüística na prática, especificamente no que se refere ao ensino da língua, e em seguida, abordaremos a questão dos direitos lingüísticos, situados no escopo dos direitos humanos, buscando identificar, na principal legislação brasileira voltada para o ensino, as bases legais que abrigam a defesa desses direitos.