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3. VARIAÇÃO LINGUISTICA: PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

3.4. NORMA PADRÃO

Como vimos, na perspectiva tradicional, a concepção de língua homogênea e estável é uma abstração que se reduz à norma. Esta norma é alcunhada de culta na visão tradicional e veicula a idéia de língua certa porque falada pelos segmentos socialmente favorecidos que têm mais acesso a leituras, aos bens culturais da sociedade, à escola, enfim. Para Bagno (2001), entretanto, o termo norma “culta” carrega uma grade de critérios avaliativos para o estabelecimento de juízos de valor dicotômicos (certo vs errado, bonito vs feio, português vs não português) e comporta uma forte conotação ideológica. Ao conjunto de prescrições tradicionais veiculadas pelas gramáticas normativas, pela prática pedagógica conservadora e pelos empreendimentos puristas da mídia ele sugere o nome de norma-padrão, uma vez que todo padrão é estabelecido com vistas a uma uniformização e uma homogeneização de formas e usos, situando-se, por conseguinte, por cima e por fora de toda variabilidade e de toda heterogeneidade.

De acordo com o autor (op.cit.), embora a norma-padrão tenha como característica precípua a concepção de uma língua descontextualizada, arrancada de suas condições de produção histórica e social, é impossível negar a força que a mesma assume na sociedade. Para melhor apreender o conceito de norma, sugere ele que o mesmo deve ser analisado fora do campo estritamente lingüístico e deve se recorrer a uma visão transdisciplinar levando-se em conta outros pontos de vista, como o antropológico, o histórico, o sociológico, o pedagógico, o jurídico. Afinal, assevera o autor que a idéia de norma tem assento na idéia consagrada de que parece não ser possível existir vida social totalmente desprovida de normas.

Numa visão antropológica da questão da norma, Aléong (2001) defende que o ponto de partida é a constatação de que a língua é um fato social. E como tal constitui um veículo simbólico que faz parte de um conjunto de meios de interação que constituem as bases

da interação simbólica na vida social. E acrescenta que a sociedade, em sendo mais do que a soma de indivíduos, é organizada segundo princípios ou regras que enquadram ou condicionam o comportamento individual e, portanto, o comportamento lingüístico.

Ao tentar explicar como se dá a regularidade do comportamento lingüístico na sociedade, enquanto aparelho de controle, Aléong (op.cit.) parte dos seguintes pontos: 1) a organização social da sociedade funciona com o auxílio de instituições como a família, a escola, entre outras, que estão no princípio da estrutura social; 2) a vida social é constituída de interações constantes entre indivíduos, o que leva a uma identidade individual e uma identidade social conforme o pertencimento a camadas ou grupos sociais definidos; 3) a consciência ou a percepção de si, dos outros e da situação é largamente condicionada pela realidade dos indivíduos.

A partir destes três pontos, Aléong (op.cit.) estabelece a diferença entre o normativo e o normal, ancorando-se numa visão de sociedade pautada pela heterogeneidade dos componentes de sua organização social:

O normativo e o normal são noções relativas, cujos campos de aplicação são definidos pelos confins do grupo social nos quais eles se manifestam. Isso quer dizer que, a partir do momento em que uma sociedade não é um todo homogêneo, mas conhece divisões e distinções de caráter social e econômico, o normativo e o normal são susceptíveis de variar de um grupo de indivíduos para outro. De igual modo, o desvio ou o afastamento em relação ao normativo é susceptível de adquirir significações muito diferentes conforme a natureza do grupo (Aléong, 2001, p.148- 149).

A visão de Aléong é reveladora de uma sociedade em que os conceitos de normativo e de normal são passivos de serem relativizados. Isto nos mostra que a norma não deve assumir um caráter inexorável, embora seja inegável sua presença no jogo das configurações da sociedade.

Rey (2001), ao tratar da tendência da sociedade ao julgamento lingüístico e a transferência desse julgamento para o plano prescritivo, mostra que isto leva a uma definição de norma única. Este procedimento reflete a estrutura social (socioeconômica) vigente, cujo juízo de valor sobre o uso lingüístico e o desejo de moldá-lo segundo a ideologia dominante está socialmente arraigado.

Mostra o autor, entretanto, que a crítica que se faz à forma arcaica da atitude normativa não vem no sentido de se rejeitar toda a norma, afinal, entende ele, que nenhuma

sociedade pode abrir mão de todas as normas. Defende que o se deve fazer é fiscalizar sua construção e modificá-la com base nos resultados de pesquisas.

Neves (2006) defende que o usuário da língua deve obter todas as orientações sobre os padrões lingüísticos de eleição na sociedade e deve dominar esse padrão socialmente estabelecido. E reforça o pensamento de Rey, no que se refere à fiscalização de como é construída a norma-padrão. Para tanto, defende de forma categórica que o lingüista não pode apenas declarar guerra à atitude prescritivista e alhear-se da discussão ignorando essa necessidade do falante:

Ao lingüista – e ao gramático legítimo – não é facultado ensejar que essa função sociopoliticocultural seja preenchida por empacotadores de preceitos, sem preparo e sem legitimidade para tratar as relações entre ciência lingüística e prescrição lingüística, e, portanto, sem legitimidade para distribuir lições. É apenas do estabelecimento seguro de tais relações que pode nascer o necessário equilíbrio (Neves, 2006, p.62-63).

O entendimento de Neves (op.cit.) é partilhado também por Bortoni-Ricardo (2004), para quem toda padronização é impositiva, embora reconheça que não deixa de ser também necessária, uma vez que está “na base de todo estado moderno, independentemente de regime político, na formação do seu aparato institucional burocrático, bem como no desenvolvimento do acervo tecnológico e científico” (2004 p.14-15). À defesa das duas autoras vem somar-se a de Mollica (2007), que reconhece que, como os padrões lingüísticos estão sujeitos à avaliação social positiva e negativa, os falantes precisam apropriar-se das variedades de prestígio, pois disso vai depender a sua mobilidade e sua inserção na escala social.

Para Bortoni-Ricardo (op.cit.) o problema não parece estar na existência de um código-padrão, mas no acesso restrito que grandes segmentos da população têm a ele. A escola brasileira, segundo ela, é norteada para ensinar a língua da cultura dominante e considera que tudo o que se afasta desse código é defeituoso e deve ser eliminado. E assim, vai gerando a inacessibilidade de tantos ao padrão socialmente estabelecido.

Mollica (2007) sugere que, na escola, o trabalho que possibilite o aprendizado dessa linguagem socialmente estabelecida deve ser feito a partir de textos reais. Os exercícios a partir de tais textos ajudarão o aluno a sistematizar o conhecimento lingüístico adquirido.

É necessário, para tanto, como defende Possenti (1999), que os professores estejam convencidos de que o domínio efetivo e ativo de uma língua dispensa o domínio de

uma metalinguagem técnica. O aluno pode dominar a linguagem socialmente prestigiada sem ter que se debruçar sobre as infinitas regras da gramática normativa.